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Alguns aspectos históricos da relação Palavra-Espírito

3. A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO COM BASE NO TEXTODA DE

3.2. Alguns aspectos históricos da relação Palavra-Espírito

O Concílio de Constantinopla (381 d.C.) é importante para a definição da Igreja sobre a divindade do Espírito, e o é também para nosso trabalho: nesse evento conciliar a Igreja responde oficialmente à controvérsia acerca da divindade do Espírito Santo, após longos debates361 sobre a divindade de Cristo, que, em Niceia (325 d.C.), teria sua divindade afirmada. Em Constantinopla a Igreja reconhece a divindade do Espírito. Este Concílio é ponto de chegada!

A controvérsia sobre a divindade do Espírito contribuiu para o progresso da reflexão da relação entre a Palavra e o Espírito, pois, após Niceia, foram aparecendo outros debates que punham em dúvida a divindade do Espírito. Até meados do quarto século (350), a divindade do Espírito Santo não havia sido posta em questão. “Não havia um discurso formal reconhecido pela Igreja sobre a personalidade do Espírito Santo.”362 A disputa sobre sua divindade e a posição oficial da Igreja viria somente em Constantinopla (381), mas aquela acerca da divindade do Espírito havia começado lá pelo ano de 360. Tinham surgido dúvidas sobre este ponto, disseminadas pela Ásia Menor e parte da África (Egito) e especialmente em Constantinopla. Punha-se em dúvida a divindade do Espírito Santo a reboque da afirmação de Ário (250-336) de que Cristo era criado, e não consubstancial a Deus Pai. Os “trópicos” já afirmavam a não divindade do Espírito Santo. Alegavam não encontrar nas Escrituras a comprovação de sua geração, como está clara a geração do Filho. Os trópicos eram fiéis cristãos de Serapião, bispo de Thmuis, no Delta do Nilo,363 e diziam que, se o Espírito Santo for divino, ou é gerado pelo Pai, sendo então irmão de Jesus, ou, se for gerado pelo Filho, o Pai é seu avô.364

Foi necessária a refutação desse pensamento. Do Oriente surgiram Atanásio e Basílio de Cesareia, e do Ocidente, Hilário de Poitiers. Foram os maiores expoentes contrários à heresia de Macedônio e os pneumatômacos.365 Macedônio, arcebispo de Constantinopla pregava que o Espírito Santo era criatura de Cristo, assim como Cristo era criatura do Pai, segundo Ário. Portanto, o Espírito é inferior ao       

361

Refiro-me aos grandes debates acerca da divindade de Cristo, que foram travados mais intensamente nos cem anos anteriores e que foram tratados oficialmente no Concílio de Niceia (351).

362

SESBOÜÉ, Bernard (org.). O Deus da salvação, v. I. São Paulo: Loyola, 2002, p. 227.

363Id., ibid., p. 228. 364Id., ibid.

365

Filho e mais ainda ao Pai. A este arcebispo de Constantinopla e seus seguidores foi dado o nome de macedonianos ou de pneumatômacos, defensores do pensamento de Macedônio. Mais tarde, porém, os discípulos de Macedônio, foram denominados “pneumatômacos”, combatentes inimigos do Espírito Santo, por seu extremismo contra sua divindade.

Os debates em torno da divindade do Espírito são relevantes para o objetivo deste trabalho, pois constituem o ponto de chegada depois de longo tempo de debates sobre a Trindade. Não seria possível pensar uma reflexão sobre a relação entre Palavra e Espírito sem considerar a evolução acerca da divindade do Espírito. Portanto, os debates em torno da divindade de Cristo e a subsequente afirmação do Espírito em Constantinopla são primordiais para uma elaboração consistente da relação entre as duas pessoas divinas, sendo preciso um Concílio.366 Teodósio o convoca para dissipar as heresias em seu império.367 Por isso o Concílio de 381 completou Niceia no que concerne à divindade do Espírito. Não chega a dizer que o Espírito é Deus ou consubstancial ao Pai e ao Filho, mas diz: “Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”.368

Quando dizemos relação entre Palavra e Espírito na Dei Verbum, não se trata em princípio da relação das duas pessoas divinas no seio da Trindade. Nosso trabalho agora não busca uma reflexão que aborde a relação das pessoas divinas em sua vida intradivina, mas especificamente, a partir da encarnação, que é o que nossa pesquisa aponta na Dei Verbum. Evidentemente não se trata de desconsiderar o “antes” da encarnação da Palavra,369 mas nosso foco restringe-se ao que consta da Dei Verbum, que é a teologia da revelação. E revelação quer dizer a autocomunicação de Deus, isto é, a revelação de Deus que se faz ad extra, em nossa história, em nossa vida humana.

A reflexão sobre a relação Palavra-Espírito não é tão atual. Na Bíblia370 encontramos suas raízes, e o Vaticano II de certo modo resgatou sua relevância.       

366

ALBERIGO, G. História dos concílios..., op. cit., p. 104. O Concílio citado é o de Constantinopla (381 d.C.).

367

As heresias formuladas pelos macedônios e os pneumatômacos.

368Id., ibid.; cf. Denz. 150.

369Verbum Domini, n. 6. Nesta exortação sobre a Palavra de Deus, reconhece-se evidentemente que

o Verbo de Deus é preexistente a sua encarnação. Diz o texto: o Verbo preexiste à criação. E, portanto, no coração da vida divina, há a comunhão, há o dom absoluto.

370

Artigos bem interessantes sobre o Espírito Santo na Bíblia: MARTÍNEZ, Daniel. El artesano: el Espíritu Santo en la Bíblia. Soleriana, v. 23, n. 10, dez. 1998, Montevidéu, p. 145-171; CARMONA, A.

Podemos citar, por exemplo, a referência às pessoas divinas nas quatro constituições, SC, DV, LG, GS.371 Após o término do Concílio (8/12/1965), foram desenvolvidos significativos estudos sobre a relação entre Cristo e o Espírito.372 Pontualmente, o Vaticano II imprimiu uma renovada reflexão sobre a relação entre Cristo e o Espírito, rompendo com o pensamento pré-conciliar do “cristomonismo, inaugurando uma nova reflexão mais cristocêntrica”,373 e assim associando o Cristo ao Espírito.

Houve tentativas de elaboração dessa relação entre Cristo e o Espírito, assumindo vários nomes: “Espírito-cristologia, ou cristologia no horizonte do Espírito, ou ainda cristologia pneumática, ou simplesmente cristologia espiritual”.374 Tais pontos de vista buscavam elaborar teologicamente a relação entre Cristo e o Espírito. Na patrística falava-se de uma cristologia do Espírito,375 ainda que fosse um tema complexo para aquela época.376 Os padres dos primeiros quatro séculos configuraram várias maneiras de conceber a relação Cristo-Espírito. Inicialmente Clemente, Ignácio de Antioquia, Pastor de Hermas e Justino tinham uma compreensão arcaica377 da relação Cristo-Espírito, entendendo o Espírito como um “elemento divino preexistente de Cristo. Desta forma há certa confusão entre Cristo       

Rodríguez. El Evangelio del Espíritu Santo. Proyección, v. 45, n. 189, abr.-jun. 1998, Granada (Esp), p. 123-138; GUIMARÃES, Almir Ribeiro. O Espírito Santo no Novo Testamento. Grande Sinal, v. 27, n. 5, jul. 1973, Petrópolis (RJ), p. 335-351; idem. O Espírito Santo no Antigo Testamento. Grande Sinal, v. 26, n. 3, abr. 1972, Petrópolis (RJ), p. 163-170.

371

Ali na Lumem Gentium encontramos a afirmação de que o sagrado Concílio é congregado no Espírito Santo (LG 1); noutro lugar, o Espírito santifica a Igreja (LG 4). Nesta constituição o Espírito Santo aparece cerca de 70 vezes. Na constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, a Gautium et Spes, encontramos 35 referências ao Espírito Santo; reconhece a comunidade de Cristo reunida pelo Espírito Santo (GS 1) e que a Igreja no mundo é conduzida pelo próprio Espírito (GS 3). Das Constituições, porém, a Sacrosanctum Concilium é a que menos referência faz ao Espírito.

372

Podemos elencar uma grande variedade de trabalhos sobre o tema da relação entre Cristo e o Espírito no tempo do pós-Vaticano II, mas preferimos os assinalados a seguir. São vários os artigos que tratam sobre o Espírito Santo e Jesus: GRANADO, Carmelo. Cristo y el Espíritu. Proyección, v. 45, n. 189, abr.-jun. 1998, Granada (Esp), p. 91-108; HAMMES, Érico João. O Espírito Santo e Jesus. Teocomunicação, v. 32, n. 138, dez. 2002, Porto Alegre, p. 659-683; PIKAZA, Xabier. Hijo eterno y Espíritu de Dios. Preexistencia de Jesús, concepción virginal, persona del Espíritu. Salamanca (Esp): Secretariado Trinitario, 1987; idem. El Espíritu Santo y Jesús: delimitación del Espíritu Santo y relaciones entre pneumatología y cristología. Salamanca (Esp): Secretariado Trinitario, 1982; SANTANA, Luiz Fernando Ribeiro. O Espírito Santo na vida de Jesus. Por uma cristologia pneumática. Atualidade Teológica, a. XIV, n. 36, set.-dez. 2000, Rio de Janeiro, p. 265-292; ELENA, S. del C.Espíritu de Dios..., op. cit.,p. 375-405, 1999.

373

HAMMES, É. J. O Espírito Santo..., op. cit., n. 138, dez. 2002, p. 659. Congar diz que a reflexão inaugurada pelo Vaticano II da relação entre Palavra e Espírito de certa forma ameniza os danos e os riscos de um cristomonismo, mas também de um pneumatocentrismo (CONGAR, Y. A palavra e o Espírito..., op. cit., p. 8).

374 Id., ibid., p. 660. 375Id., ibid., p. 661. 376

MADONIA, N. Cristo siempre vivo..., op. cit., p. 107.

377

e o Espírito”.378 Depois, em Irineu, Hipólito e Tertuliano, há uma evolução, porém persiste uma oposição entre “carne e espírito e suas derivações de caráter antropológico. Mas aqui o Espírito já vai adquirir a concepção de Pessoa trinitária”379 Após isso já se alcança a concepção de “logos”. Desta concepção do logos fazem parte Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio e Hilário.380 Somente com Basílio, podemos pensar numa “teologia do Espírito, porque há um aprofundamento da divindade do Espírito”.381

Mais tarde, já na época medieval, não se pode comparar o pensamento então atingido com o da época anterior, com sua maior profundidade e plenitude, devido a certa decadência na reflexão sobre o Espírito Santo.382

3.3. A relação Palavra-Espírito com base nas referências ao Espírito no texto da Dei Verbum

No texto da Dei Verbum ocorre 25 vezes a referência ao Espírito. É com base nestas referências que podemos elaborar as grandes linhas de reflexão sobre a relação entre Palavra e Espírito, que, em síntese, podemos agrupar em quatro:

A) 1ª Linha de reflexão: Cristo no Espírito, tem-se acesso ao Pai (DV 2).

Entendemos que por duas Pessoas divinas, Cristo e Espírito, chegamos à plenitude da comunhão trinitária. Ora, só podemos alcançar esta comunhão se nos deparamos com as três Pessoas divinas: o Filho, o Espírito e o Pai. Caso contrário, não haverá uma comunhão trinitária. Disto nos fala o texto da Dei Verbum. Em Cristo e no Espírito certamente seremos introduzidos na comunhão trinitária. São Basílio já indicava a fé nas três pessoas divinas quando numa celebração usa a

       378Id., ibid. 379Id., ibid. 380Id., ibid. 381Id., ibid. 382

SCHÜTZ, Christian. Introducción a la pneumatología. Salamanca (Esp): Secretariado Trinitário, 1991, p. 101.

fórmula batismal: “Ao Pai, pelo Filho, no Espírito”.383 Podemos dizer que esta fórmula de fé na Trindade já era professada nas comunidades cristãs e na comunidade de Basílio. Esta comunhão na vida trinitária também encontra sua base na Sagrada Escritura (cf. 1 Jo 1, 2-3). Noutro momento, a Dei Verbum deixa clara a vontade de Deus, isto é, que tenhamos a comunhão em Deus:

“na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15 1415) e convive com eles (cf. Bar 3,38), para convidá-los e admitir à comunhão com Ele” (DV, 2).

A “comunhão” é relevante na Dei Verbum, pois caracteriza essencialmente a riqueza deste documento, tanto quanto o próprio Concílio, que é realizado em vista e por causa da comunhão. Evidentemente que a Dei Verbum e o Concílio Vaticano II são um reflexo desta comunhão entre as Pessoas divinas. Boff manifestou esta perspectiva quando falou de um Deus de comunhão, a tal ponto afirmando reconhecer que no “princípio está a comunhão”.384 Esta perspectiva de um Deus da comunhão encontra seu perfeito significado nos termos “pericórese”, “circun- incessão”, “circum-insessão”,385 que, todos os três, expressam bem o que significa um Deus de comunhão.

B) 2ª Linha de reflexão: O Espírito e a inspiração: o hagiógrafo e as Escrituras (DV, 7, 9, 11, 20).

Das diversas linhas de reflexão, o tema da inspiração, juntamente com o da tradição, foi o que mais gerou tensões durante o debate sobre a revelação divina. Esse tema constitui uma das referências mais claras e insistentes na Dei Verbum. Codina, em sua obra de iniciação à pneumatologia, explica que o Espírito é aquele que inspirou as Escrituras, os profetas e também os escritores sagrados,386 e é por isso que há certamente uma conexão íntima entre Escrituras, seus escritores e o modo pelo qual lemos a Bíblia.387

      

383

MADONIA, N. Cristo siempre vivo..., op. cit., p. 171-174. Cf. também CONGAR, Y. Creio..., op. cit., v. 1, p. 103.

384

BOFF, L. A Santíssima Trindade é..., op. cit., p. 21.

385Id., ibid. Cf. também DCT, p. 397-406, sobre o termo “comunhão”. 386

CODINA, V. “Não extingais...”, op. cit., p. 35.

387

CODINA, V. “Não extingais...”, op. cit., p. 35. Diz o texto que, conforme os padres – Orígenes, entre outros –, as Escrituras devem ser lidas sob a inspiração do mesmo Espírito que as fez surgir. Ainda na mesma obra: todas as escrituras estão plenas do Espírito; e não é possível entendê-las sem

A temática da inspiração passou por um longo processo de evolução388 até chegar à Dei Verbum. Sua primeira aparição oficial foi no Concílio de Florença.389 No início do cristianismo não se faziam questionamentos sobre os textos das Sagradas Escrituras, se eram ou não de origem divina. O tema da inspiração foi crucial para salvaguardar a origem divina das Escrituras Sagradas.

O tema da inspiração é cercado de controvérsias, e nem sempre é tão fácil de expô-lo com clareza. O Vaticano II já reconhecia efetivamente a inspiração como fundamento da equação Bíblia = Palavra de Deus.390 Para chegar até ali, porém, a reflexão sobre o tema da inspiração percorreu um longo caminho. Do ponto de vista do judaísmo, já se entendiam as Sagradas Escrituras como inspiradas por Deus;391 nos profetas e por eles, já era evidente a aceitação da inspiração.392 É com base neste mesmo ponto de vista que os santos padres começam a estruturar seu pensamento, mesmo sendo na época patrística que se começa a veicular a expressão “ditado”.393 Nos tempos da patrística já se intensificava uma profunda “relação entre Palavra de Deus, a palavra humana e Deus que inspira o escritor humano”.394 De certo modo, os padres no cristianismo nascente vão acabar afirmando que o escritor sagrado é “instrumento” de Deus.

Lá pelos limites da Idade Média, Santo Tomás diz: “o autor principal da Sagrada Escritura é o Espírito Santo, e o homem é seu autor instrumental”.395 No Concílio de Trento houve tentativas pontuais de retomada da reflexão sobre a inspiração,396 e só no século XVII podemos dizer que novas luzes seriam lançadas sobre esse tema. De lá até o Vaticano I, não houve grandes progressos. Somente com o advento do Concílio Vaticano I, já no século XIX, publicações promissoras são lançadas acerca da inspiração, reafirmando a origem divinamente inspirada da

      

a ajuda do Espírito. “O Espírito é aquele que acompanha a Palavra, é a boca de Deus que antecipa e anuncia a Palavra.”

388

BOFF, L. Conceitos de inspiração ao tempo do Vaticano II. REB, v. 23, fasc. 1, mar. 1963, p. 104- 121. Vale a pena ler o texto sugerido, ainda que publicado pouco antes do Vaticano II. Ele aborda a natureza da inspiração (cf. TOBIAS, José Antônio. Natureza da inspiração. São Paulo: Herder, 1961; ARENS, E. A Bíblia sem..., op. cit., p. 237-272).

389

Denz. 1334.

390

MANNUCCI, V. Bíblia palavra..., op. cit., p. 139.

391Id., ibid., p. 158. 392

ARTOLA, A. M. A Bíblia..., op. cit., p. 185.

393Id., ibid., p. 188. 394

MANNUCCI, V. Bíblia palavra..., op. cit., p. 161.

395Id., ibid., p. 167. 396Id., ibid., p. 173.

Escritura.397 Por esse século, o papa Leão XII publica a Encíclica Providentissimus Deus, o primeiro documento do Magistério ordinário que tenta uma descrição da natureza da inspiração.398 É um marco nesses estudos. Mais tarde, em consequência dos debates sobre a inspiração, é publicado outro importante documento oficial da Igreja, a Encíclica Spiritus Paraclitus do papa Bento XV (1920), assumindo a mesma perspectiva da encíclica de Leão XIII.399 Mas é com outra encíclica, a Divino Afflante Spiritu, de Pio XII (1943), que se ratificam de fato e de vez os progressos nos estudos em torno da inspiração. Esta encíclica tornou-se referência para grande parte dos exegetas, por suas orientações acerca da Sagrada Escritura.

O Vaticano II retoma o tema da inspiração como forma de reconhecer a origem divina das Escrituras. Esse tema é uma importante contribuição para a compreensão da unidade entre cristologia e pneumatologia, porque reconhece ser Palavra divina somente a que é inspirada pelo Espírito Santo.400

Numa perspectiva bíblica, tanto o Antigo como o Novo Israel já consideravam a Palavra de Deus não apenas a revelação (história e palavra), mas também a sua notícia escrita, o Livro Sagrado,401 levando-se em conta o Antigo Testamento (especialmente a Torá). Israel sempre a considerou como divina, porque lhe foi dada por Deus por intermédio de Moisés no “pacto sinaítico”.402

No Novo Testamento, para Jesus e a Igreja primitiva, a Palavra escrita não podia ser anulada (cf. Jo 10,35).403 Nos evangelhos, reconhecemos em Jesus a revelação definitiva de Deus. Por isso, a Boa Nova de Jesus é verdadeiramente a Palavra de Deus,404 e isto se verifica também nas pregações dos apóstolos, tanto quanto nos escritos apostólicos.405

Pondo, entretanto, o olhar na trajetória de como a Igreja tratava o tema da inspiração,406 de imediato podemos afirmar, mesmo superficialmente, que a teologia,       

397

MANNUCCI, V. Bíblia palavra..., op. cit., p. 175.

398Id., ibid., p. 177. 399Id., ibid.

400

A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo (DV, 9).

401

MANNUCCI, V. Bíblia palavra..., op. cit., p. 127.

402Id., ibid., p. 128. 403Id., ibid., p. 133. 404Id., ibid., p. 136. 405Id., ibid., p. 137. 406

até o Vaticano II, falhou quanto ao silêncio na reflexão sobre a função do Espírito e que a própria teologia deveria ter posto em evidência a influência pessoal exercida por ele.407 Pois o tema da inspiração é bem mais amplo do que imaginamos. É possível pensar esse “fenômeno” até fora das tradições cristãs. Podemos reconhecer em outras tradições religiosas as Escrituras Sagradas inspiradas pelo Espírito Santo.408 A inspiração está presente em diversas denominações religiosas não cristãs, e permite refletir sobre ela de forma mais encantadora, embora talvez menos apaixonada, por não possuirmos a exclusividade. Mas o que nos importa é a inspiração em relação à Palavra de Deus, por sua importância em nossa vida cristã, sendo a Sagrada Escritura um elemento constitutivo do mistério da Igreja reunida na Palavra de Deus.409

C) 3ª Linha de reflexão: O Cristo ressuscitado envia o Espírito de verdade (DV, 4, 6, 11, 17,19)

Outra reflexão importante sobre a relação entre Cristo e o Espírito é quando tratamos do evento da ressurreição de Cristo e o envio do Espírito da verdade410. Há uma intrincada associação entre as duas Pessoas divinas na ressurreição, com uma sutil diferença na relação entre Cristo e o Espírito antes e depois da ressurreição. Durante a vida “terrena” de Jesus, ele é conduzido pelo Espírito: é concebido,411 é ungido no batismo,412 é levado ao deserto,413 inicia a missão pelo Espírito.414 Após a sua ressurreição, entretanto, há certa inversão: passa a ser Cristo quem doa o Espírito e o entrega aos discípulos e à comunidade.415

O Espírito que o Cristo agora ressuscitado dá é o mesmo que o conduziu em sua vida terrena. Na ressurreição de Cristo situa-se evidentemente o “centro e o vértice da unidade entre Cristo e o Espírito ou a cristologia pneumatológica, sendo a

      

407

DTF, p. 123.

408Id., ibid. 409Id., ibid.

410 ARENS, E. A Bíblia sem..., op. cit., p. 213-237.  411 Cf. Lc 1,35. 412 Cf. Lc 3,21-22. 413 Cf. Lc 4,1-2. 414 Cf. Lc 4,16 e ss. 415 Cf. Jo 20, 22-23.

Páscoa o seu núcleo”.416 Somente após a ressurreição de Cristo será possível o envio do outro paráclito, porque, livre da morte e de suas amarras, é que se tornará possível “doar o Espírito”.417 O ressuscitado envia o Espírito da verdade. Envia o mesmo Espírito que enquanto em vida (terrena) conduzia Jesus. Deste modo, só o ressuscitado pode dar o Espírito da verdade. Há aqui uma conexão profunda e misteriosa. A verdade do Espírito adquire um sentido pedagógico: está ligada intimamente à preservação da memória do Cristo.418

João (o evangelista) é mais claro quanto à referência ao Espírito, quando se trata da verdade. O outro paráclito (o Espírito) cuidará de manter o que Jesus anunciou (palavras e gestos). Neste sentido, a verdade está vinculada essencialmente ao “ensino, que está relacionado à revelação. Desse modo, o Espírito exerce uma função docente, de recordar. É um ensino interior, uma iluminação das palavras de Jesus para o pleno entendimento de sua pessoa e obras”,419 pois a obra do Espírito não é outra coisa senão a continuação, o prosseguimento da “obra de Jesus”.420

A verdade é um tema delicado para o evangelho e para a Igreja. Não foi e não é tarefa simples a sua abordagem. Nunca se imaginou pensar que o que está na Bíblia fosse outra coisa senão a plena verdade. Questionamentos e interrogações sobre a verdade, enquanto objeto de investigação, não passavam nos horizontes da fé. Jesus em pleno julgamento, antes de sua crucifixão, havia sido interrogado por Pilatos sobre o que é a verdade (cf. Jo 18,38). Ele próprio (Jesus) já anunciava ter nascido e vindo para dar testemunho da verdade (cf. Jo 18,37). O Espírito não poderia ter outra tarefa, a não ser a mesma de Jesus, isto é, preservar a verdade anunciada por ele. Por isso, o Espírito continuará a missão de Jesus.

Até nos limites da Idade Média, tudo era pacificamente aceitável quanto à verdade bíblica. Não se punha em xeque a verdade emanada da Bíblia ou do que Jesus dissera. É nos tempos da idade moderna, porém, com o advento do racionalismo, das ciências empíricas e do caso Galileu, por causa da defesa do