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4 TECNOLOGIAS E SUBJETIVIDADE

4.2 A Espetacularização da Intimidade

Como já assinalado no tópico anterior, somos impelidos a agir sob a máxima da publicidade que dita que “quem não é visto não é lembrado”. Diante desse pressuposto, voluntária ou involuntariamente, referenciamos nossas ações a partir de como achamos que estas vão repercutir em nosso “público”. Assim, na medida do possível, ficamos tentando montar estratégias a fim de otimizar nossa imagem e minimizar os riscos de uma exposição negativa. Desse modo, em tempos de hiperexposição, estamos a todo momento fazendo uma espécie de curadoria de nossas performances.

Partindo dessa perspectiva, Zuin e Gomes (2019, p.384), assinalam que: Na atual sociedade da Idade Mídia, na qual ser significa ser midiática e eletronicamente percebido, cada vez mais a publicidade se metamorfoseia no elixir da vida e, portanto, da própria aparência de personalidade. Esta nova ontologia se fundamenta na necessidade de que as imagens e comentários sejam continuamente publicados, principalmente por meio das redes sociais, pois, caso contrário, há o risco de alguém se transformar numa não-existência viva na sociedade da revolução microeletrônica.

Sibilia (2016), em seu livro O Show do Eu, faz uma ampla análise antropológica acerca do fenômeno do exibicionismo atual. Neste trabalho, ela discorre sobre as origens desse processo, evidenciando que suas raízes antecedem o advento da internet e explica como isso vai se intensificando progressivamente, juntamente com transformações socioculturais, até chegar ao ponto que vivenciamos hoje. Ao retornar a gênese desse fenômeno, conclui que as tecnologias digitais, ao contrário do que muitos pensam, não são causadoras, mas sim ferramentas que potencializam o processo que já se estruturava há algum tempo.

Ao falar sobre isso, Bauman (2008), evidencia que esse novo evento social se fundamenta em um conjunto de fatores que conduzem as pessoas a incorporarem a suas ações princípios mercadológicos. Dito de outra forma, a sociedade capitalista,

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em sua cultura de consumo, promove também a valoração das pessoas tal como uma mercadoria.

Desse modo, as pessoas sentem-se provocadas a se transformarem em produtos atraentes e desejáveis a fim de atenderem as demandas do mercado. Para tanto, fazem o máximo possível, agregando valor a si mesmos — moldando o corpo, indo a lugares onde “todos” estão indo, comprando coisas que estão na moda — e divulgando todas suas experiências na maior “vitrine” do mundo, a internet. Conforme Bauman:

São, ao mesmo tempo, os promotores das mercadorias e as mercadorias que promovem. São, simultaneamente, o produto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores. Todos habitam o mesmo espaço social conhecido como mercado. [...] O teste em que precisam passar para obter os prêmios sociais que ambicionam exige que remodelem a si mesmos como mercadoria, ou seja, como produtos que são capazes de obter atenção e atrair demanda e fregueses (BAUMAN, 2008, p.13).

Presenciamos atualmente uma sociedade do espetáculo que privilegia as aparências e segrega os que não conseguem se adequar a essa lógica do capitalismo. A forma como nos apresentamos passou a ser o parâmetro essencial para definir quão interessantes somos para sociedade. No teatro social, o nosso egocentrismo e megalomania são valorizados assim como a exposição voluntária de nossas intimidades cotidianas. De certo, isso se dá a serviço do mercado e também de uma necessidade narcísica de visibilidade.

O psicanalista Christian Dunker (2017), ao falar sobre o fenômeno do exibicionismo, reitera esses posicionamentos anteriores dando como exemplo o comportamento das pessoas nas redes sociais. Segundo ele, nesses meios de interação, as pessoas se envolvem umas com as outras não só a fim de fazer novas amizades, mas também na tentativa de tamponar o vazio existencial que sentem. A partir dessa perspectiva, entende-se que quanto mais “vazia” e imatura emocionalmente a pessoa se sente, mais potente é sua necessidade de

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reconhecimento e visibilidade e maior a probabilidade de vir a se prejudicar em consequência dos atos performáticos que fará em busca de seu objetivo.9

Além disso, ainda conforme Donker (2017), experimentamos uma nova gramática de reconhecimento narcísico, onde não basta consumir é preciso fazer disso um signo social e, por vezes, um signo social fundamentado na humilhação a partir do consumo conspícuo. Essa expressão se refere ao gesto de consumir bens e serviços com o objetivo de ostentá-los. Ou seja, ter não se faz suficiente, é preciso exibir e, para além disso, é preciso ver no outro o olhar de inveja.

Consoante a isso, De Andrade e Santos (2018), entendem que na sociedade contemporânea, por meio das redes sociais digitais, “a exposição ao outro numa forma de exteriorização de si e o julgamento do outro como forma de controle e autopromoção cumprem papéis cruciais para a inflação do ego” (p.5). Além disso, falam também sobre outro fenômeno, o da competitividade. Este também se associa às redes e é “traduzido na linguagem dos games, a qual traz à tona um universo mediado por imagens e regras, encarregado de moldar os sujeitos de forma lúdica, num universo imaginário” (DE ANDRADE; SANTOS, 2018, p.5). Sendo assim,

a dinâmica dos jogos empolga e incita aderência às regras com o objetivo óbvio de o usuário – que se coloca na posição de competidor – obter recompensas. O ciberespaço tem incentivado a disseminação e consolidação de espaços gamificados. [...] com regras bem definidas, sistemas de premiação, compensação e punição, e não apenas com características lúdicas, a gamificação visa ao maior rendimento e às mudanças de comportamento (Ibid., p.5).

Dessa forma, o intuito da gamificação é fomentar desafios e estratégias a fim de atingir certos objetivos. Sob essa lógica, são premiados com recompensas aqueles que atingem as metas estabelecidas e, para quem não consegue, punições. Esse sistema de recompensas e punições não se mostram eficazes em termos de

9 Entre os diversos exemplos reais que corroboram com a comprovação dessa hipótese, podemos citar o recente caso trágico da blogueira Aline Araújo que resolveu casar-se consigo mesma, em um suposto ato de empoderamento, mediante ao fato de seu noivo ter terminado o relacionamento um dia antes da cerimónia. Aline, que sofria de depressão e transtorno de ansiedade e falava

abertamente sobre isso em suas redes sociais, recebeu críticas positivas e negativas sobre sua escolha, mas a grande repercussão se deu mesmo dias depois, quando em um momento de crise, cometeu suicídio se jogando do 9° andar do prédio em que morava (MARRONE, 2019).

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mudanças duradouras de comportamento, mas se sustentam por tempo suficiente para que alguns objetivos sejam alcançados (DE ANDRADE; SANTOS, 2018).

Como podemos inferir, as redes sociais digitais, onde podemos interagir, nos apresentar e sermos vistos por um grande número de pessoas a todo momento e em escala global, transformou-se no grande catalisador de comportamentos de nossa época. Ademais, o mundo virtual tornou-se uma porta escancarada que dá acesso ao que podemos chamar de âmbito privado de nossas vidas.

Sibilia (2016), ao descrever a genealogia do exibicionismo contemporâneo, faz uma diferenciação entre esse sujeito que passa a falar de si mesmo em primeira pessoa na modernidade — em seus diários e livros autobiográficos — e o sujeito pós- moderno — com seus blogs, fotoblogs, vlogs, e perfis nas diversas mídias sociais digitais. Segundo a autora, o primeiro, ao falar de si, dificilmente vislumbrava qualquer publicidade, aquilo era íntimo, restrito a ele mesmo e guardado como um segredo (os diários geralmente tinham cadeados e eram escondidos). Bem diferente deste, o autor/narrador/protagonista contemporâneo escreve e fala sobre si a quem esteja disposto a o prestigia-lo, pois acredita que sua vida e seu modo de ser merece atenção.

Inspirada pelos estudos feitos por Foucault e Deleuze sobre a sociedade, Sibilia (2016) também elabora que esses deslocamentos subjetivos são fruto de contextos culturais distintos. Na modernidade, sob a égide de uma “sociedade disciplinar”, onde o âmbito público e o privado possuíam uma nítida separação, o sujeito tendia a ser mais discreto e introspectivo. Já na “sociedade de controle” a qual vivemos, com espaço público e a esfera privada misturados sob a narrativa de que é importante ser notado, os sujeitos inclinam-se a divulgação constante de si. Nas palavras da autora: O fenômeno de exibição da intimidade, [...] parece ser fruto de um deslocamento dos eixos em torno aos quais as subjetividades modernas se constituíam. [...] registra-se um abano daqueles lócus interior, em proveito de uma gradativa exteriorização do eu. Por isso, em vez de solicitar a técnica da introspecção, que procura sondar dentro de si para decifrar o que é, as novas práticas incitam o gesto oposto: impelem a se mostrar, tendo como alvo o olhar do outro (SIBILIA, 2016, p.153).

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As subjetividades modernas se arquitetavam levando muito em conta essa fronteira bem definida, transitando com cuidado entre ambos os tipos de ambientes, e sabendo que cada um deles vigoravam diferentes proibições e permissões. Agora, porém, as coisas mudaram. Entre outros motivos, porque inventamos - e utilizamos com avidez - um conjunto de dispositivos capazes de infiltrar agilmente as paredes dos lares derrubando muitos desses antigos pudores, mesmo que o façam de modos sutis, confusos e complexos (SIBILIA, 2016, p.346).

Em decorrência dessas transformações, cabe o questionamento: a quem interessa e quem lucra com todo esse dilúvio de informações pessoais sendo produzidas a todo momento? Conforme Zuin e Gomes (2019, p. 381):

O alcance e efeito do mundo virtual e das redes sociais nos parecem avassaladores, não nos dá o direito de escolha de participar ou não dessa rede mundial virtual/real. Se por um lado, o acesso nos permite encontrar e alcançar lugares, pessoas e documentos inimagináveis há pouquíssimo tempo, por outro, somos invadidos diariamente, por pessoas, empresas, e setores da sociedade, que não temos sequer ideia de quem quer que seja. Só por esse aspecto, já fica difícil estabelecer uma fronteira clara entre o público e o privado. [...] é como se o público e o privado se amalgamassem e se tornassem uma coisa só.

Levando esses aspectos em consideração, no próximo tópico finalizamos a discussão deste capítulo falando sobre as implicações de estarmos inseridos em um contexto de hiperexposição.