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4 TECNOLOGIAS E SUBJETIVIDADE

4.3 Olhar Panóptico das Tecnologias Digitais

Diante da capacidade pervasiva das novas tecnologias digitais, há grande receio quanto ao que se pode ser feito com a ampla quantidade de dados que estão sendo armazenados a partir de nossas interações. Com afirma Sibilia (2016), passamos por um momento histórico onde estamos cada vez mais expostos. Nesse contexto, o controle sobre a nossa privacidade parece está fragilizado.

Kappler et al. (2018), explica esse fenômeno afirmando que as sociedades modernas desenvolveram uma variedade de tecnologias e técnicas para identificar, medir e influenciar pessoas e objetos. Dispositivos inteligentes, como os smartphones, auxiliam e monitoram seus usuários em todos os aspectos de suas vidas. Com isso, grandes quantidades de dados são coletadas e se estabelece uma nova modalidade

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econômica baseada nas análises das interações digitais, algo que tem se mostrado muito lucrativo para algumas empresas.

Ao passo que fomos criando formas cada vez mais sofisticadas para nos expor, também fomos ficando mais suscetíveis a vigilância, a perseguição, ao bullying e a possibilidade de sermos controlados e coagidos. Nossa privacidade passou a estar sempre em “xeque”. Com isso, informações pessoais produzidas mediante as interações que fazemos diariamente com a rede — ao comprar com cartão de crédito, postar, curtir e comentar nas redes sociais ou mesmo fazer uma simples pesquisa pela internet — geram uma infinidade de dados sobre nossas condutas e preferências e estes estão sendo armazenadas e oferecidas a quem queira comprar por empresas como o Google (KOHN; MORAES, 2007).

Monteiro Goulart e Da Silva Zuchetto (2016), apontam que mesmo levando em consideração o contato facilitado com o ambiente virtual que nos possibilita melhorias na forma como trabalhamos, estudamos e nos comunicamos, não devemos de forma alguma negligenciar os perigos dos quais estamos cada vez mais expostos. Para estes autores, os principais riscos estão no âmbito da violação do direito fundamental da privacidade. E isso acontece tanto por uma exposição voluntária por parte dos usuários, como pela não adequação dos ordenamentos jurídicos em desenvolver mecanismos que nos protejam. Sendo assim, até que esse cenário seja modificado, fica a cargo de cada pessoa o cuidado de zelar por sua privacidade.

Nesse mesmo sentido, Zuin e Gomes (2019), salientam que mesmo já havendo alguns esforços para estabelecer legislações com fins regulatórios de utilização da internet, “ainda não há controle suficiente para aquilo que nos chega, como propaganda, como um simples bom dia, como uma linda canção, uma poesia, uma piada, um alerta ou uma Fake News, com força, inclusive, de decidir uma eleição” (p.5-6).

Partindo da ideia da estrutura panóptica de Bentham, Byung-chul Han, em seu livro Sociedade da Transparência (2018), evidencia que vivenciamos o começo de um novo tipo panóptico; um panóptico “aperspectivístico digital”. Conforme o filósofo, a arquitetura do controle de Bentham foi um fenômeno bem compatível a uma sociedade disciplinar cuja sua configuração se amparava na premissa de manutenção do controle. Eram submetidos a esse desenho estrutural: os presídios, fábricas,

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hospitais e escolas. Han (2018), descreve a arquitetura dessas instituições da seguinte forma:

As celas ordenadas uniformemente em torno da torre de controle estão rigorosamente isoladas umas das outras, de modo que os detentos não podem se comunicar entre si. As paredes que separam as celas são as responsáveis para que tampouco os detentos possam ver uns aos outros. Assim, eles são expostos à solidão em vista de um melhoramento, é o que afirma Bentham. O olhar do observador alcança cada canto da cela, enquanto que ele próprio permanece invisível para os presos (HAN, 2018, p.106 -107).

Conforme Bentham apud Han (2018), “a essência disso consiste, então, na centralidade da situação do inspetor, combinada com os conhecimentos bem- sucedidos e os dispositivos mais eficazes para ver sem ser visto” (p.107, tradução nossa). Isto é, nesse tipo de panóptico a visão sobre o outro se dá sob uma perspectividade unilateral. Assim, é criada a impressão de estar sob vigilância permanente e submetido a uma estrutura de poder e domínio. Diferente desse modelo perspectivista,

O panóptico digital do século XXI é aperspectivístico na medida em que não é mais vigiado por um centro, não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico. A distinção entre centro e periferia, essencial para o panóptico de Bentham, desapareceu totalmente. O panóptico digital surge agora totalmente desprovido de qualquer ótica perspectivística, e isso é que constitui seu fator de eficiência. A permeabilidade transparente aperspectivística é muito mais eficiente do que a supervisão perspectivítica, visto que é possível ser iluminado e tornando transparente a partir de todos os lugares, por cada um (HAN, 2018, p.106).

Além disso,

se os presos do panóptico de Bentham têm a ciência de estarem constantemente sendo observados por um vigia, ilusoriamente os habitantes do panóptico digital imaginam estar em total liberdade. [...] contrariamente à população carcerária, que não tem comunicação mútua, os habitantes digitais estão ligados em rede e têm uma intensa comunicação entre si. O que assegura a transparência não é o isolamento, mas a hipercomunicação. A especificidade do panóptico digital é sobretudo o fato de que seus frequentadores colaboram ativamente e de forma pessoal em sua edificação e manutenção, expondo-se ao mercado panóptico (HAN, 2018, p. 107-108). Sendo assim, o autor conclui que na “sociedade da transparência” a qual vivemos, todo o globo está tornando-se em um único panóptico. Nesse potente dispositivo não existe um lado externo, ele é total e contínuo. Não há como escapar.

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Portando, é categórico ao afirmar que “a coação por transparência, hoje, não é um imperativo explicitamente moral ou biopolítico, quem se ilumina completamente se expõe e se oferece a exploração econômica” (HAN, 2018, p.113).

De Andrade e Santos (2018, p.3), contribuem afirmando que:

Se, por um lado, o mundo digital nos colocou face à constituição de um sujeito outro, com novos anseios e novas possibilidades, atravessado pelas relações em rede, por outro, o uso excessivo das tecnologias digitais nos propôs um outro desafio: o de refletir sobre os impactos que tais tecnologias podem causar, frente à riqueza de dispositivos produzidos e compartilhados, os quais, muitas vezes, são financiados pelo próprio capitalismo, a fim de gerar mais serviços e produtos, e, consequentemente, mais consumo e consumidores. Ademais, isso tudo se dá com o “aval” dos sujeitos-usuários, que controlam a si e ao outro, oferecendo as informações espontaneamente para que o sistema invada a sua tela com toneladas de sugestões que vão de um par de sapatos até o plano para suas próximas férias.

Assim, inspirados pelos estudos de Zuboff (2015) e Cinnamon (2017), De Andrade e Santos (2018), argumentam sobre o advento de um novo modelo de negócio: o capitalismo de vigilância. Segundo esses autores, “o capitalismo de vigilância é uma nova lógica de acumulação: a acumulação de dados por meio das tecnologias da informação, as quais observam o usuário full time [o tempo todo]”(DE ANDRADE e SANTOS, 2018, p. 4). Desse modo, muitas empresas da internet estão fazendo uso de dispositivos de vigilância na web a fim de controlar ou impelir comportamentos a seus usuários.

Essas empresas descobriram a importância de produzirem dados detalhados sobre os usuários, suas preferências como consumidores, seus padrões de comportamento, suas esperanças, crenças e desejos. Um vasto valor econômico é gerado para as corporações que controlam essa arquitetura digital, já que os dados são produzidos sem a total ciência do usuário ou algum tipo de compensação a ele (DE ANDRADE; SANTOS, 2018, p. 4).

Conforme esses autores, estamos sendo constantemente observados por diversas empresas, principalmente pelo Google: maior empresa detentora de informações dos usuários e uma das primeiras a adotar o capitalismo de vigilância como forma de obter lucro.

Até onde se sabe, nossos dados são usados, na maioria das vezes, para identificar possíveis demandas dos usuários e gerar mais vendas. Isso pode ser notado quando fazemos uma pesquisa aleatória sobre algum produto ou serviço e daí,

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instantaneamente, começam a aparecer ofertas de todos os tipos em nossas telas ao acessarmos qualquer outro site.

Todavia, a mineração de dados possui outras aplicações muito mais complexas e impactantes para sociedade. Como exemplo, podemos citar o recente caso da extinta empresa britânica de consultoria política Cambridge Analytica, acusada de se apropriar indevidamente de dados pessoais de usuários do Facebook. Todo o processo tornou-se público e levantou várias questões acerca dos métodos da

Cambridge Analytica principalmente, sobre se nossa privacidade estaria ou não

assegurada pelas plataformas digitais e também acerca das implicações desse novo tipo de estratégia de campanha política para a democracia (NEWSWIRES, 2019).

Detalhes sobre esse caso foram apresentados no documentário Privacidade

Hackeada (2019), produzido e dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer, disponível

na Netflix. No filme, são demonstradas evidências e relatos sobre a ilegalidade da obtenção das informações pessoais de milhões de pessoas por parte da Cambridge

Analytica e imagens do julgamento envolvendo o Facebook — que inclusive foi

investigado e multado em US$5 bilhões. Além disso, insinua-se que esses dados obtidos ilegalmente foram usados para manipular as eleições presidenciais nos EUA e no plebiscito sobre a saída do Reino Unido do bloco econômico europeu em 2016, Brexit.

Desse modo, percebe-se a importância de se estabelecer limites para algumas práticas e também a necessidade de que o acesso à informação seja facilitado para que as pessoas não sejam manipuladas tão facilmente e consigam se proteger.

No tocante ao que foi apresentado até aqui, concluímos que as características identificadas nesse novo contexto não são apenas oriundas do advento das novas tecnologias. Há também que ser levado em conta, entre outras coisas, os aspectos socioeconômicos e culturais pré-existentes e os interesses objetivos e subjetivos dos próprios sujeitos.

Diante disso, é possível concluir que estamos presenciando várias transformações radicais em nossa sociedade e em nossa subjetividade, mas tais transformações já se desenvolviam antes mesmo das novas invenções. Desse modo, entendemos que as tecnologias não são as responsáveis pela criação de novos processos, mas sim viabilizadoras e catalizadoras de processos já existentes que

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vigoravam timidamente e após a criação de novas ferramentas penetraram na sociedade sendo agora praticados de modo mais complexo e intensificado.

Ademais, ao percebermos o quanto essas tecnologias têm sido incorporadas no contexto sociocultural e econômico, vemos que o profissional da Psicologia poderá se deparar em seu trabalho com problemáticas relativas aos efeitos advindos dessa configuração. Sendo assim, as reflexões feitas nesta pesquisa poderão ajudar este profissional a compreender a amplitude das transformações atuais e como estas podem afetar o modo de vida e a saúde de seus pacientes.

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