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A estrutura de argumentação da constatação da visão é uma mecânica de funcionamento que tem etapas sucessivas encadeadas: da crítica da dominação do invisível em relação à subordinação do visível nasce o projeto de eliminação do invisível; resta, então, a defesa da permanência no visível como visão solitária e soberana148 que coincide com a identificação da efetividade, quer dizer, a constatação do visível como efetivo, dito ou escrito (o audível remete, em última instância, ao visível149); a seguir, surge a possibilidade da visão absoluta ou total através do reconhecimento do limite ou da finitude, ou seja, o visível efetivo é limitado ou finito, daí a totalidade do visível; por fim, aparece o perigo da unicidade da visão como reconhecimento da igualdade, isto é, a totalidade do visível é a mesma para todos. A demonstração não exaustiva da disseminação desta estrutura de argumentação da

148 Esta estrutura de argumentação da constatação da visão, da crítica da dominação do invisível em relação à

subordinação do visível como nascimento do projeto de eliminação do invisível cuja consequência é a defesa da permanência no visível como visão solitária e soberana, corresponde ao movimento conclusivo do “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos”: é a união das duas heranças filosóficas, a afirmação epistemológica e a negação metafísica, aplicadas à apologia da história (ver supra especialmente “Discurso da visão: apologia da história e crítica da metafísica”). A verificação e a crítica da dominação do invisível em relação à subordinação do visível já apareceram diante da análise da relação entre os sentidos, mais especificamente quando do contato entre audição e visão (ver supra “Relação entre invisível e inaudível”, “Relação entre invisível e audível” e o décimo, o décimo-quinto e o décimo-sétimo aparecimento da relação entre visível e audível). A defesa da permanência no visível como visão solitária e soberana já aparecera diante da análise da relação entre os sentidos, por exemplo quando do contato entre tato e visão (ver supra o primeiro e o terceiro aparecimento da relação entre tato e visão), mas especificamente quando do contato entre audição e visão (ver supra principalmente “Relação entre visível e audível”).

149 Outra constatação ou conclusão advinda do “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os

constatação da visão segundo a cronologia dos fatos privilegiará a análise de vinte e um aparecimentos como unidades simples (parágrafos) ou como blocos textuais (conjuntos argumentativos exemplares).

O primeiro aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão está localizado no sexto e no sétimo parágrafos da “Introdução” de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da crítica do documento (ver AS, p. 7-8).

A história, em sua forma tradicional, considerava o documento como rastro decifrável do passado:

(...) [o objetivo era] reconstituir, a partir do que dizem estes documentos – às vezes com meias-palavras -, o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. (AS, p. 7)

Neste sentido, a história é memória:

Digamos, para resumir, que a história, em sua forma tradicional, se dispunha a “memorizar” os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem (...) (AS, p. 8)

A história como memória, que trata o documento como rastro decifrável, representa a dominação do invisível (documento) em relação à subordinação do visível (monumento)150. Este mecanismo de dominação e de subordinação é combatido pela crítica do documento:

Ora, por uma mutação que não data de hoje [1969], mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. (AS, p. 7)

Aqui, a história é materialidade:

(...) em nossos dias [1969], a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. (AS, p. 8)151

150 Ver supra comparativamente no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o

primeiro aparecimento da relação entre invisível e audível (sobre a dominação do invisível em relação à subordinação do visível como dominação do invisível audível, o documento, e subordinação do visível inaudível, o monumento).

A história como materialidade, que trata o documento intrinsecamente, significa a eliminação do invisível (documento) e a permanência no visível (monumento). A luta entre história como memória e história como materialidade também aparece como oposição entre arqueologia e história:

Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias [1969], se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento. (AS, p. 8)

Há um movimento que corresponde à estrutura de argumentação da constatação da visão: da dominação do invisível em relação à subordinação do visível para a eliminação do invisível e a permanência no visível como visão solitária e soberana152.

O segundo aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão está situado no décimo parágrafo da “Introdução” de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da terceira consequência da crítica do documento, o tema e a possibilidade de uma história geral (ver AS, p. 11-2).

A apresentação do projeto de uma história geral é a busca da visibilidade absoluta ou total:

O problema que se apresenta – e que define a tarefa de uma história geral – é determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries [economia, instituição, ciência, religião, literatura, etc.]; que sistema vertical podem formar, qual é, de umas às outras, o jogo das correlações e das dominâncias; de que efeito podem ser as defasagens, as temporalidades diferentes, as diversas permanências; em que conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente; em resumo, não somente que séries, mas que “séries de séries” – ou, em outros termos, que “quadros” – é possível constituir. (AS, p. 11-2)

A história geral é a vontade de visibilidade absoluta ou total: busca do quadro do visível discursivo (ciência, religião, literatura, etc.) e não-discursivo (economia, instituição, etc.). Este projeto recusa e combate o tema da história global: “Uma descrição global cinge todos os fenômenos em torno de um centro único – princípio, significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dispersão.” (AS, p. 12)153 O tema da história global representa a dominação do invisível (espírito unificador) em relação à subordinação do visível (fenômenos visíveis discursivos e não-

152 Ver supra comparativamente o primeiro aparecimento da pedagogia da visão (sobre a verificação e a crítica

da dominação do invisível em relação à subordinação do visível como nascimento do projeto de eliminação do invisível cuja consequência é a permanência no visível como visão solitária e soberana, em correspondência com a etapa da necessidade de ver mais e com maior minúcia em que a invisibilidade é uma condição provisória).

discursivos)154, portanto a história geral pretende eliminar o invisível (unidade do espírito) e permanecer no visível (dispersão do espaço).

O terceiro aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão está presente do segundo ao décimo-quarto parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. É um bloco textual como conjunto argumentativo exemplar. Seu contexto é, em primeiro lugar, a apresentação do trabalho negativo de suspensão das formas prévias, certas ou imediatas de continuidade (do segundo ao oitavo parágrafo), mediante libertação do jogo de noções, tais como tradição, influência, desenvolvimento e evolução, mentalidade ou espírito (segundo parágrafo); inquietação diante de certos recortes ou agrupamentos familiares, os tipos, as formas ou os gêneros de discurso (terceiro parágrafo); suspensão das unidades do livro (quarto parágrafo) e da obra (quarto e quinto parágrafos); renúncia de dois temas ligados e opostos, a origem secreta e originária e o já-dito jamais-dito (sexto parágrafo); exposição da função e do escopo do trabalho negativo de manutenção da suspensão (sétimo e oitavo parágrafos); em segundo lugar, como consequência do trabalho negativo, a análise do projeto de descrição dos acontecimentos discursivos (do nono ao décimo-quarto parágrafo), através da exposição da oposição da descrição do discurso à análise da língua (nono parágrafo) e à história do pensamento (décimo parágrafo); da apresentação das utilidades do trabalho negativo de suspensão, sendo a primeira, a restituição da singularidade de acontecimento e da descontinuidade do enunciado (décimo-primeiro parágrafo), a segunda, a possibilidade de apreensão de formas de regularidade ou de tipos de relações na instância do acontecimento enunciativo (décimo-segundo parágrafo), e a terceira, a possibilidade de descrição de outras unidades (décimo-terceiro parágrafo); da definição de um recorte provisório como região inicial, as ciências humanas (décimo-quarto parágrafo) – ver AS, p. 23-34.

O esclarecimento do uso da descontinuidade na análise histórica como problema teórico para a história das ideias155 começa, no segundo parágrafo, com um trabalho negativo de libertação de todo um jogo de noções (tradição, influência, desenvolvimento e evolução, mentalidade ou espírito) que tem por função diversificar o tema da continuidade:

É preciso pôr em questão (...) essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e

154 Ver supra no “Prólogo – Discurso da historicidade” o primeiro aparecimento da palavra “historicidade”

(sobre como a historicidade, vinculada ao tema da história global, aparece como redução da multiplicidade à unidade, ou dominação do invisível em relação à subordinação do visível, por isso sua apresentação é via negativa e suas características basilares surgem mediante o método da transvaloração dos valores – a apresentação e o método correspondem, respectivamente, à eliminação do invisível e à permanência no visível).

essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questão de cuidado com o método e em primeira instância, de uma população de acontecimentos dispersos. (AS, p. 24, grifo nosso)

Existe uma pedagogia da visão como saída da sombra, quer dizer, abandono da aparência como ilusão (noções que têm por tarefa diversificar o tema da continuidade) e necessidade de visão diferente (aceitação de uma população de acontecimentos dispersos). E esta pedagogia da visão também é uma estrutura de argumentação da constatação da visão: a recusa do jogo do invisível e do visível ou da dominação do invisível em relação à subordinação do visível156, como eliminação do invisível, e a permanência no visível, como visão solitária e soberana.

O trabalho negativo de suspensão das formas prévias de continuidade prossegue no terceiro parágrafo, com a inquietação diante de certos recortes ou agrupamentos familiares, a distinção dos tipos ou gêneros de discursos (ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção, política, etc. – ver AS, p. 24-5), e também no quarto parágrafo, com o questionamento das unidades imediatas do livro e da obra (ver AS, p. 25-6). A mesma pedagogia da visão como passagem da aparência, como ilusão (formas prévias de continuidade), para a visão diferente como necessidade de ver mais e com maior minúcia, em que a invisibilidade da visão diferente é apenas uma condição provisória em relação à vontade de visibilidade absoluta ou total (trabalho negativo de suspensão). E a mesma estrutura de argumentação da constatação da visão, em que a crítica à dominação do invisível em relação à subordinação do visível (a lógica de funcionamento das formas prévias de continuidade) ocorre como tentativa de eliminação do invisível (trabalho negativo de suspensão) e como permanência no visível – visão solitária e soberana (visão diferente como necessidade de ver mais e minuciosamente). Em relação à unidade imediata do livro e da obra, por exemplo, primeiro existe sua apresentação como aparência ou como dominação do invisível em relação à subordinação do visível:

Aparentemente, pode-se apagá-las [as unidades imediatas do livro e da obra] sem um extremo artifício? Não são elas apresentadas da maneira mais exata possível? Individualização material do livro que ocupa um espaço determinado, que tem um valor econômico e que marca por si mesmo, por um certo número de signos, os limites de seu começo e de seu fim; estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita, atribuindo um certo número de textos a um autor. (AS, p. 25, grifo nosso)

156 Ver, especialmente, a crítica às noções de mentalidade ou espírito, em que a soberania de uma consciência

coletiva (dominação do invisível) funciona como princípio de unidade e de explicação de fenômenos simultâneos ou sucessivos (subordinação do visível) de uma determinada época: AS, p. 24.

Então, a visão diferente como necessidade de ver mais e com maior minúcia ou a busca da eliminação do invisível e a permanência no visível (invisibilidade provisória): “E, no entanto, assim que são observadas um pouco mais de perto, começam as dificuldades.” (AS, p. 25, grifo nosso)157

A análise crítica da obra como unidade imediata, certa e homogênea, no quinto parágrafo (ver AS, p. 26-7), é uma pedagogia da visão e uma estrutura de argumentação da constatação da visão:

Na verdade, se se fala com tanto prazer e sem maiores questionamentos sobre a “obra” de um autor, é porque a supomos definida por uma certa função de expressão. Admite-se que deve haver um nível (tão profundo quanto é preciso imaginar) no qual a obra se revela, em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente do autor, ou ainda das determinações históricas a que estava preso. Mas vê-se logo que tal unidade, longe de ser apresentada imediatamente, é constituída por uma operação; que essa operação é interpretativa (já que decifra, no texto, a transcrição de alguma coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo) (...) (AS, p. 27, grifo nosso)

Da aparência, como ilusão ou imaginação (obra como expressão do pensamento do autor), para a visão diferente (obra não é unidade imediata, certa e homogênea), através da necessidade de ver mais e com maior minúcia (trabalho negativo de suspensão da evidência da obra), a pedagogia da visão. Da dominação do invisível em relação à subordinação do visível (operação interpretativa) à eliminação do invisível e à permanência no visível (trabalho negativo de suspensão da obra como unidade imediata, certa e homogênea), a estrutura de argumentação da constatação da visão.

O trabalho negativo de suspensão prossegue, no sexto parágrafo, com a crítica de dois temas ligados e opostos, a origem secreta e originária e o já-dito jamais-dito, que têm por função garantir a continuidade (irrefletida) do discurso (ver AS, p. 27-8)158:

O primeiro motivo [origem secreta e originária] condena a análise histórica do discurso a ser busca e repetição de uma origem que escapa a toda determinação histórica; o outro [já-dito jamais-dito] a destina a ser interpretação ou escuta de um já-dito que seria, ao mesmo tempo, um não- dito. (AS, p. 28)159

Nos dois temas há dominação do invisível (origem secreta ou oculta e originária ou vazia; já- dito jamais-dito não-dito) em relação à subordinação do visível (começo aparente; discurso

157 No restante deste quarto parágrafo o esclarecimento da crítica à unidade imediata do livro representa a visão

diferente (como necessidade de ver mais e com minúcia) e a eliminação do invisível como permanência no visível. O mesmo processo ocorrerá no quinto parágrafo em relação à crítica da unidade imediata da obra. Ver: AS, p. 25-7.

158 Ver supra comparativamente no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o

segundo aparecimento da relação entre invisível e audível.

manifesto ou tudo que se diz). Notemos que para a origem secreta, o começo aparente é uma ilusão (a aparência é uma ilusão) que remete ao oculto (portanto, invisível); já para a pedagogia da visão, o jogo entre visível e invisível (remissão do começo aparente à origem secreta) é uma ilusão (a aparência é uma ilusão) que aponta, ao contrário, para a necessidade da visão diferente, minuciosa, como permanência no visível e eliminação do invisível. Então surge a crítica aos dois temas relacionados:

É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos [sic], nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. (AS, p. 28, grifo nosso)160 A recusa do jogo do invisível e do visível (jogo entre ausência e presença), quer dizer, a eliminação do invisível, ocorre como permanência no visível (acolhida da irrupção de acontecimento, da pontualidade de aparecimento). Notemos que “aquilo que aparece” pode ser aparência (então, remete à ilusão do jogo entre invisível e visível) ou aparecimento (e aí implica a permanência no visível como eliminação do invisível). Esta visão solitária e soberana é específica (irrupção ou pontualidade), um apelo à singularidade: para a pedagogia da visão, a visão diferente é específica, como necessidade de minúcia. Por fim, a menção ao “discurso escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos livros” é um traço de ironia da pedagogia da visão: a minúcia da visão específica exige paciência na busca da vontade de visibilidade absoluta ou total (e a poeira precisa ser eliminada através da coragem de um gesto visual e olfativo), e não preguiça da remissão do visível ao invisível (assim, a poeira somente crescerá na proporção da recusa em ver cada vez mais como conforto e segurança do apoio da incontestável invisibilidade).

A análise crítica das formas prévias de continuidade como manutenção em suspensão, no sétimo parágrafo, questiona o valor das unidades aceitas com evidência (ver AS, p. 29): “Será preciso tomá-las [as unidades aceitas] por ilusões, construções sem legitimidade, resultados mal alcançados?” (AS, p. 29, grifo nosso) A resposta a tal pergunta indica o caminho de uma pedagogia da visão:

Trata-se, de fato, de arrancá-las de sua quase-evidência, de liberar os problemas que colocam; reconhecer que não são o lugar tranquilo a partir do qual outras questões podem ser levantadas (sobre sua estrutura, sua coerência, sua sistematicidade, suas transformações), mas que colocam por si mesmas todo um feixe de questões (Que são? Como defini-las ou limitá-las? A que tipos distintos de leis podem obedecer? De que articulação são suscetíveis? A que subconjuntos podem dar lugar? Que fenômenos

específicos fazem aparecer no campo do discurso?). Trata-se de reconhecer que elas talvez não sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem à primeira vista. (AS, p. 29, grifo nosso)

Existe a passagem da aparência como ilusão (unidades aceitas com evidência, à primeira vista) à visão diferente como especificidade (aparecimento de fenômenos específicos no campo do discurso), como necessidade de ver mais e com minúcia.

O trabalho negativo de suspensão, no oitavo parágrafo, aceita as unidades inteiramente formadas com o objetivo imediato de fazer a sua crítica (ver AS, p. 29-30):

Aceitarei os conjuntos que a história me propõe apenas para questioná-los imediatamente; para desfazê-los e saber se podemos recompô-los legitimamente; para saber se não é preciso reconstituir outros; para recolocá- los em um espaço mais geral que, dissipando sua aparente familiaridade, permita fazer sua teoria. (AS, p. 30, grifo nosso)

Explicitamente, há uma pedagogia da visão: passagem da aparência como ilusão (dissipar aparente familiaridade dos conjuntos unitários aceitos) à visão diferente como necessidade de ver mais e com maior minúcia – o questionamento das unidades formadas procura saber se elas “... não são, em sua individualidade aceita e quase institucional, o efeito de superfície de unidades mais consistentes.” (AS, p. 30, grifo nosso)

A partir do trabalho negativo de suspensão das formas imediatas de continuidade, surge, no nono parágrafo, o projeto de descrição dos acontecimentos discursivos (ou da população de acontecimentos no espaço do discurso em geral) – ver AS, p. 30-1: “Trata-se de