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Os quatro aparecimentos destacados da relação entre visível e inaudível indicam o caminho do confronto, como dominação e subordinação, com o visível audível: nos três primeiros, o visível inaudível aparece como outra visibilidade, sucessivamente não-discurso empírico, duas vezes, e não-discurso transcendental; já no último, o visível inaudível é mesma visibilidade, como discurso, e combate, então, a auditibilidade da visão.

O primeiro aparecimento da relação entre visível e inaudível está localizado no décimo-sétimo parágrafo do terceiro capítulo, “A formação dos objetos”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a crítica à interpretação do discurso como história do referente (ver AS, p. 54-5).

Há um abandono da possibilidade da história do referente:

Mas não se trata (...) de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”, “despresentificá-las”; conjurar sua rica, relevante e imediata plenitude, que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o

tesouro enigmático das “coisas” anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam (...) (AS, p. 54, grifo nosso)84

O visível inaudível (coisas silenciosas) é o pré-discurso como não-discurso – e há um conflito entre este visível inaudível, que precisa da dualidade ou do binarismo da dominação do visível inaudível em relação à subordinação do visível audível, e o visível audível representado pela permanência no discurso.

O segundo aparecimento da relação entre visível e inaudível está situado no décimo- nono parágrafo do terceiro capítulo, “A formação dos objetos”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a crítica à busca do aquém do discurso (ver AS, p. 55-6).

Há uma crítica à busca do aquém do discurso como retorno às próprias coisas, à “plenitude viva da experiência”: “Não se volta ao aquém do discurso – lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; (...) fica-se, tenta-se ficar no nível do próprio discurso.” (AS, p. 55, grifo nosso) Este confronto entre duas visibilidades, o visível das coisas e o visível do discurso, indica a diferença entre audível e inaudível: “Essas regras [próprias da prática discursiva] definem não a existência muda de uma realidade, (...) mas o regime dos objetos.” (AS, p. 56, grifo nosso) O visível audível (discurso) versus o visível inaudível (experiência muda de uma realidade) mostra o choque contra o dualismo ou binarismo que precisa do jogo de remissão entre o visível audível e o visível inaudível mediante hierarquia como dominação e subordinação85.

O terceiro aparecimento da relação entre visível e inaudível está presente no oitavo parágrafo do sexto capítulo, “A formação das estratégias”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a crítica ao recurso do aquém do discurso para a descrição das estratégias (ver AS, p. 76-7).

A descrição das estratégias discursivas recusa a remissão ao visível inaudível como origem do discurso:

É preciso notar que as estratégias (...) descritas não se enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamental. Todos esses grupamentos de enunciados que devemos descrever não são a expressão de uma visão do mundo que teria sido cunhada sob a forma de palavras (...) (AS, p. 76, grifo nosso)

O visível inaudível (mudez de uma visão do mundo) está em confronto com o visível audível (discurso): na perspectiva criticada, é preciso jogar com a dominação do visível inaudível em

84 Foucault admite a possibilidade da história do referente como resgate de uma experiência surda (visível

inaudível), fazendo menção ao livro História da loucura, mesmo que tal não seja o projeto de A arqueologia do saber. Ver AS, p. 54-5.

relação à subordinação do visível audível; já na perspectiva defendida, existe apenas o visível audível.

O quarto aparecimento da relação entre visível e inaudível está localizado no primeiro parágrafo do segundo capítulo, “O original e o regular”, da quarta parte, “A descrição arqueológica”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise crítica da história das ideias como descrição de figuras globais (ver AS, p. 161-2).

Para a história das ideias, existem dois tipos de formulações, as valorizadas (novas, inéditas, originais, criativas) e as banais ou cotidianas (antigas, repetidas, tradicionais, maciças): “A cada um dos dois grupos a história das ideias atribui um status; além disso, não os submete à mesma análise.” (AS, p. 161) A análise das formulações banais ou cotidianas permite descrever uma série de figuras globais:

(...) manifesta a história como inércia e marasmo, como lento acúmulo do passado e sedimentação silenciosa das coisas ditas; os enunciados devem aí ser tratados em massa e segundo o que têm em comum; sua singularidade de acontecimento pode ser neutralizada; perdem sua importância também a identidade de seu autor, o momento e o lugar de seu aparecimento; em compensação, é sua extensão que deve ser medida: até onde e até quando eles se repetem, por que canais se difundem, em que grupos circulam, que horizonte geral delineiam para o pensamento dos homens, que limites lhe impõem e, caracterizando uma época, como permitem distingui-la das outras. Descreve-se, então, uma série de figuras globais. (AS, p. 161-2, grifo nosso)

O visível inaudível (sedimentação silenciosa das coisas ditas) é a neutralidade ou o esquecimento86 da singularidade de acontecimento ou de aparecimento em nome da unidade global: o visível audível (formulações do discurso) perde sua condição de auditibilidade (singularidade de acontecimento) devido à diluição global. É um uso quase metafórico da auditibilidade, como se a voz estivesse associada à singularidade e o esquecimento da audição à massificação global87.