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É preciso esclarecer de antemão que a relação entre invisível e inaudível é a mais criticada de A arqueologia do saber. Isto se explica devido ao máximo afastamento do ideal epistemológico-perceptivo do governo soberano da visão solitária. Todos os dez aparecimentos da relação entre invisível e inaudível destacados mostram o conflito com o visível, ou então com a aliança entre visível e audível, portanto, no fundo, o maior perigo é a própria invisibilidade, cuja união com a inauditibilidade faz parte de uma estratégia deliberada e necessária, devido à possibilidade de remissão do audível ao visível, inserida num contexto de guerra perene.

O primeiro aparecimento da relação entre invisível e inaudível está localizado no décimo parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da oposição entre a descrição do discurso e a história do pensamento (ver AS, p. 31-2).

69 Mas aqui vale a história com cara de anedota relatada por Eribon a respeito da crítica à generalização de

Foucault. Quando do início de um curso de “psicologia geral” na universidade de Clermont-Ferrand, Foucault logo previne os alunos: “A psicologia geral, como tudo que é geral, não existe.” (ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 144)

70 Guerra entendida, simultaneamente, como identificação da singularidade através da exterioridade das

Há uma crítica à história do pensamento como análise alegórica: “A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que se dizia no que estava dito?” (AS, p. 31) O funcionamento desta alegoria mostra a aliança entre invisível e inaudível:

Aí [história do pensamento] (...) não se pode reconstituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos. Mas esse conjunto é tratado de tal maneira que se tenta encontrar, além dos próprios enunciados, a intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas; de qualquer forma, trata-se de reconstituir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos, de restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas escritas e, às vezes, as desarruma. (AS, p. 31, grifo nosso)

Notemos que a união de invisível e de inaudível (a palavra muda do texto invisível) é um caso de conflito como dominação do invisível inaudível em relação à subordinação do visível audível – e há uma relação de harmonia, como desigualdade, entre visível e audível (a voz que escutamos percorre as linhas escritas), ou entre visão e audição, com a preservação de suas respectivas especificidades e diferenças71.

O segundo aparecimento da relação entre invisível e inaudível está situado no sétimo parágrafo do quarto capítulo, “A formação das modalidades enunciativas”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise das modalidades de enunciação como espaço de exterioridade em que há a dispersão descontínua das posições de subjetividade e como crítica ao recurso a um sujeito transcendental (função sintética) e a uma subjetividade psicológica (função unificante) [ver AS, p. 61-2].

A análise das modalidades de enunciação considera o discurso como espaço de exterioridade desvinculado do fenômeno de expressão: “Se esses planos [de dispersão descontínua do sujeito] estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva.” (AS, p. 61, grifo nosso) Há uma aliança entre invisível e inaudível (consciência muda) que combate a união entre visível e audível (prática discursiva) - e existe um processo de indiferenciação ou de indistinção entre visível e audível que mostra uma relação de harmonia como igualdade72.

O terceiro aparecimento da relação entre invisível e inaudível está presente no décimo parágrafo do sétimo capítulo, “Observações e consequências”, da segunda parte, “As

71 Sobre a relação entre visível e audível, ver infra “Relação entre visível e audível”.

72 Foucault menciona a dispersão descontínua dos diversos planos de onde o sujeito fala (ou lê, como remissão

regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise dos sistemas de formação como crítica ao trabalho do pensamento (ver AS, p. 83-4).

A descrição dos sistemas de formação (dos objetos, das modalidades de enunciação, dos conceitos e das estratégias) está aquém da análise da disposição final como construção acabada do discurso. Entretanto, é necessário fazer uma ressalva para evitar a confusão e é justamente aí que aparece a relação entre invisível e inaudível: “Mas é preciso que fique claro que se ela [a análise dos sistemas de formação] permanece na retaguarda em relação a esta construção última, não é para se desviar do discurso e apelar para o trabalho mudo do pensamento...” (AS, p. 84, grifo nosso) A aliança entre invisível e inaudível (pensamento mudo) combate a união entre visível e audível (discurso como texto ou fala) – o visível e o audível, nesta estratégia de guerra em relação ao invisível inaudível, sofrem um processo de indiferenciação ou de indistinção mediante relação de harmonia como igualdade73.

O quarto aparecimento da relação entre invisível e inaudível está localizado no décimo-primeiro parágrafo do sétimo capítulo, “Observações e consequências”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise das formações discursivas como permanência na dimensão do discurso versus a passagem ao pensamento (ver AS, p. 84-5).

A análise das formações discursivas se opõe à descrição que valoriza o jogo da língua e do pensamento. Tal descrição supõe “... sob a fina superfície do discurso, toda a massa de um devir em parte silencioso: (...) um ‘pré-discursivo’ que se apóia em um essencial mutismo.” (AS, p. 84, grifo nosso) Este pré-discursivo significaria a remissão do discurso ao pensamento ou a passagem do visível audível ao invisível inaudível:

(...) essas relações [sistemáticas múltiplas], por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto, não são, por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se mesmo qualificá-las de ‘pré-discursivas’, mas com a condição de que se admita que esse pré-discursivo pertence, ainda, ao discursivo, isto é, que elas não especificam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representações que seriam, mais tarde, e de uma forma jamais inteiramente necessária, transcritas em um discurso (...). Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior (...). Permanecemos na dimensão do discurso. (AS, p. 84-5, grifo nosso)

Há um combate entre a defesa do visível audível (discurso como exterioridade de um texto ou de uma conversa) e a crítica do invisível inaudível (pensamento ou consciência como interioridade silenciosa ou muda): enquanto a aliança harmoniosa entre o visível e o audível rechaça o invisível inaudível (e há preservação das especificidades, como desigualdade, à

73 O processo de indiferenciação ou de indistinção entre o visível e o audível aparece mediante a afirmação do

custa da possibilidade de remissão do audível ao visível, como igualdade)74, o invisível ligado ao inaudível precisa da relação de conflito como jogo de dominação e de subordinação, como constante remissão do visível audível ao invisível inaudível.

O quinto aparecimento da relação entre invisível e inaudível está situado no décimo- primeiro parágrafo do segundo capítulo, “A função enunciativa”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da relação do enunciado com seu sujeito enquanto dissociação entre o sujeito do enunciado e o autor da formulação como produtor de intenção de significação (ver AS, p. 105-6).

Há uma crítica à análise interpretativa, que remete a multiplicidade de sujeitos dos enunciados à unidade do autor da formulação como produtor de intenção de significação:

De uma maneira geral, parece, pelo menos à primeira vista, que o sujeito do enunciado é precisamente aquele que produziu seus diferentes elementos com uma intenção de significação. Entretanto, as coisas não são tão simples. Sabe- se que, em um romance, o autor da formulação é o indivíduo real cujo nome figura na capa do livro (ainda se coloca o problema dos elementos dialogados e das frases que se referem ao pensamento de um personagem; ainda se coloca o problema dos textos publicados sob pseudônimo: e sabemos todas as dificuldades que esses desdobramentos suscitam para os defensores da análise interpretativa quando querem relacionar, de uma só vez, todas essas formulações ao autor do texto, ao que ele queria dizer, ao que pensava, enfim, ao grande discurso mudo, inaparente e uniforme sobre o qual se apóia toda essa pirâmide de níveis diferentes) (...) (AS, p. 106, grifo nosso)

O invisível (inaparência), ligado ao inaudível (mudez), é criticado devido à função de dominação (unificação) exercida em relação à subordinação (da multiplicidade) do visível associado ao audível (texto) – há uma indiferenciação ou indistinção entre o visível (texto visto e lido) e o audível (texto visto e lido) como possibilidade de remissão do audível ao visível (texto lido porque visto)75.

O sexto aparecimento da relação entre invisível e inaudível está presente no décimo- quarto parágrafo do segundo capítulo, “A função enunciativa”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da dissociação substancial e funcional entre o sujeito do enunciado e o autor da formulação (ver AS, p. 109)76.

O sujeito do enunciado não é idêntico ao autor da formulação: “... não é (...) a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição...” (AS, p. 109, grifo nosso) Há um combate entre a defesa do visível

74 Ver infra “Relação entre visível e audível”.

75 Sobre esta relação de harmonia como igualdade, mas também de conflito como dominação e subordinação, ver

infra “Relação entre visível e audível”.

(terreno das palavras como corpo visível) subordinado versus a crítica à dominação do invisível inaudível (intuição silenciosa).

O sétimo aparecimento da relação entre invisível e inaudível está localizado no décimo-terceiro parágrafo do terceiro capítulo, “A descrição dos enunciados”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise do enunciado como não visível nem oculto (ver AS, p. 130-1).

A descrição da função enunciativa está no limite da linguagem, já que o enunciado é não visível nem oculto e, portanto, está na superfície do discurso:

Mas o fato de que se pode descrever essa superfície enunciativa prova que o ‘dado [sic] da linguagem não é a simples laceração de um mutismo fundamental; que as palavras, as frases, as significações, as afirmações, os encadeamentos de proposições não se apóiam diretamente na noite primeira de um silêncio (...) (AS, p. 130, grifo nosso)77

O inaudível (mutismo, silêncio) aparece vinculado ao invisível como transcendência:

A possibilidade de uma análise enunciativa, se for estabelecida, deve permitir erguer o suporte transcendental que uma certa forma de discurso filosófico opõe a todas as análises da linguagem, em nome do ser dessa linguagem e do fundamento em que se deveria originar. (AS, p. 131, grifo nosso)

O invisível inaudível (transcendência muda ou silenciosa) é combatido pelo visível (ser da linguagem): o inaudível aparece subordinado à dominação do invisível – no fundo, o maior perigo é sempre o invisível, que necessita da aliança com o inaudível, já que a condição de auditibilidade pode remeter ao visível78.

O oitavo aparecimento da relação entre invisível e inaudível está situado no quinto parágrafo do quinto capítulo, “O a priori histórico e o arquivo”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise do arquivo como sistema de aparecimento dos enunciados (ver AS, p. 148-9).

O arquivo é a presença, o visível audível: “O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.” (AS, p. 149, grifo nosso) Daí a crítica ao invisível inaudível:

Trata-se [conceito de arquivo] (...) do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, (...) que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito (...); que em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam segundo regularidades específicas (...) (AS, p. 148-9, grifo nosso)

77 Erro de tradução: faltou apóstrofe após a palavra “dado”.

O combate entre o visível audível (aparecimento do dito) e o invisível inaudível (pensamento ou espírito mudos) mostra a recusa do dualismo ou binarismo como incessante dominação do invisível inaudível em relação à subordinação do visível audível.

O nono aparecimento da relação entre invisível e inaudível está presente no quinto parágrafo do primeiro capítulo, “Arqueologia e história das ideias”, da quarta parte, “A descrição arqueológica”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a crítica da história das ideias como análise histórica que privilegia os temas da gênese, da continuidade e da totalização (ver AS, p. 158-9).

A história das ideias é caracterizada da seguinte forma: “Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das ideias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje [1969] tradicional, de análise histórica.” (AS, p. 158) Esta análise histórica mostra a dominação do invisível (cegueira) inaudível (surdez) em relação à subordinação do visível (aparência):

Ela [história das ideias] é a análise dos nascimentos surdos [gênese], das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem- número de cumplicidades cegas [continuidade], dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra [totalização]. (AS, p. 158, grifo nosso)

O décimo aparecimento da relação entre invisível e inaudível está localizado no vigésimo parágrafo da “Conclusão” de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da função crítica do livro (ver AS, p. 238-9)79.

A “ingratidão” das pesquisas anteriores de Foucault, notadamente História da

loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas, faz com que A arqueologia do saber seja um livro de “afastamento de dificuldades preliminares”80: “Sei o que pode haver de árido no fato de tratar os discursos não a partir da doce, muda e íntima consciência que aí se exprime, mas de um obscuro conjunto de regras anônimas.” (AS, p. 238, grifo nosso) Há uma crítica ao visível audível (os discursos) subordinado devido à dominação do invisível inaudível (muda e íntima consciência)81.

Relação entre invisível e audível

79 Ver infra comparativamente o décimo-sétimo aparecimento da relação entre visível e audível.

80 Este “afastamento de dificuldades preliminares” tem caráter metodológico e é um componente da estratégia de

guerra de A arqueologia do saber próximo da “marcação da singularidade pela exterioridade das vizinhanças”. Neste sentido, ver, comparativamente, o vigésimo-terceiro parágrafo da “Introdução” e este vigésimo parágrafo da “Conclusão”: AS, p. 19-20, p. 238-9, respectivamente.