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Para começar, dentre os termos mais recorrentes da presença, o acontecimento (l’événement). Analisaremos dezessete aparecimentos da presença como acontecimento, destacando, por um lado, sua relação (de harmonia) com o discurso da visão, através do contato com a pedagogia da visão e, principalmente, com a estrutura de argumentação da constatação da visão, e, por outro lado, sua relação (de harmonia) com os outros elementos do discurso da visão, espaço, através da indissociabilidade, e especificidade, e sua relação (de conflito) com os elementos do discurso da miscigenação, relação, multiplicidade e tempo.

O primeiro aparecimento da presença como acontecimento está localizado no sexto parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da renúncia dos temas que garantem a continuidade do discurso (ver AS, p. 27-8).

A renúncia aos temas que garantem a continuidade do discurso é a permanência no visível como presença (e espaço):

É preciso renunciar a todos esses temas [origem secreta e originária, e dito já- dito como jamais-dito ou não-dito] que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos [sic], nessa pontualidade em que aparece (...) (AS, p. 28, grifo nosso)207

A presença é o acontecimento como irrupção (relação entre presença e tempo: tempo da presença, presença no tempo) e o aparecimento na pontualidade (relação entre presença e espaço: presença no espaço - indissociabilidade entre presença e espaço, já que a presença sempre acontece no espaço).

O segundo aparecimento da presença como acontecimento está situado no nono parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a apresentação do projeto de descrição dos acontecimentos discursivos como oposição à análise da língua (ver AS, p. 30-1).

A suspensão das formas imediatas de continuidade tem como consequência a liberação de um domínio para a análise: “Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um.” (AS, p. 30, grifo nosso) A presença é o acontecimento (do enunciado). O enunciado é efetivo (falado ou escrito, audível ou visível, e audível/falado como possibilidade de remissão ao visível/escrito208), quer dizer, a presença é o acontecimento como efetividade ou permanência no visível (acontecimento do enunciado efetivo ou visível). O domínio liberado é o do conjunto de todos os enunciados efetivos como acontecimentos, ou seja, porque há efetividade (permanência no visível como presença) existe totalidade (visão absoluta ou total): a presença dos enunciados como acontecimentos efetivos autoriza a vontade de visibilidade absoluta ou total209. Os enunciados efetivos, como acontecimentos, estão dispersos, quer

207 Erro de tradução: ao invés do plural “acontecimentos” deveria ser o singular “acontecimento”. Ver supra

comparativamente no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o segundo aparecimento da relação entre invisível e audível (sobre como o invisível audível, a ausência como escuta do secreto, domina o visível inaudível, a presença do discurso manifesto como escrita aparente). Ver supra também no “Capítulo 2 – Epistemologia da percepção: relação entre visível e invisível” o terceiro aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão (sobre como a permanência no visível e a consequente eliminação do invisível estão associados à importância da presença e à busca da visão específica como necessidade de minúcia).

208 Ver supra no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o primeiro aparecimento

da relação entre visível e audível (sobre a indistinção ou indiferenciação entre visível e audível como possibilidade de remissão do audível ao governo da visão).

209 Ver supra no “Capítulo 2 – Epistemologia da percepção: relação entre visível e invisível” o terceiro

aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão (sobre como a efetividade como permanência no visível e o limite ou a totalidade autorizam a vontade de visibilidade absoluta ou total).

dizer, há relação entre presença (acontecimentos dos enunciados efetivos) e multiplicidade (dispersão dos acontecimentos) – de qualquer forma, a dispersão ou multiplicidade é controlada pela totalidade ou vontade de visão absoluta ou total, já que a dispersão de acontecimento dos enunciados refere-se à totalidade dos enunciados efetivos. Os enunciados considerados em sua instância própria indicam a singularidade de cada um, ou seja, existe relação entre presença (enunciados como acontecimentos efetivos) e especificidade ou singularidade (propriedade da instância de cada um). Caracterizemos de outro modo o domínio imenso liberado à análise: “... o material que temos a tratar, em sua neutralidade inicial, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos...” (AS, p. 30, sublinhado nosso) A presença é o acontecimento (discursivo - do enunciado) e o aparecimento. Existe relação entre presença (acontecimento) e multiplicidade (população): população de acontecimentos discursivos. Há relação entre presença (acontecimento) e espaço (discurso): os enunciados acontecem no discurso (presença no espaço, espaço da presença, indissociabilidade entre presença e espaço). O projeto de descrição dos acontecimentos discursivos aparece a partir da neutralidade inicial proporcionada pela suspensão das formas imediatas de continuidade: a presença é o aparecimento. A comparação entre análise da língua e descrição dos acontecimentos discursivos permite distinguir o projeto de descrição: “O campo dos acontecimentos discursivos (...) é o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas...” (AS, p. 30-1, grifo nosso) A presença é o acontecimento (discursivo). Há relação entre presença (acontecimento), espaço (campo) e multiplicidade – o espaço da presença múltipla, o campo dos acontecimentos discursivos – e existe a identificação da efetividade (quer dizer, do espaço da presença múltipla como efetivo, o campo dos acontecimentos discursivos é efetivo) que permite o reconhecimento da finitude ou do limite (espaço da presença múltipla como finito ou limitado, o campo dos acontecimentos discursivos é sempre finito e limitado) como autorização da vontade de visibilidade absoluta ou total210. A questão fundamental da descrição dos acontecimentos do discurso é: “... como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (AS, p. 31, grifo nosso) A presença (acontecimento, aparecimento) é sempre singular ou específica (um determinado, e não outro) e espacial (em seu lugar). A relação entre presença, especificidade e espaço permite caracterizar a permanência no visível como busca da visão

210 Ver supra no “Capítulo 2 – Epistemologia da percepção: relação entre visível e invisível” o terceiro

aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão (sobre como o reconhecimento do limite ou da finitude autoriza a vontade de visibilidade absoluta ou total).

específica (necessidade de minúcia): a visão solitária e soberana é sempre singular porque fixa a presença no espaço211. Daí o risco da imobilidade do olhar: a especificidade da visão que fixa a presença no espaço.

O terceiro aparecimento da presença como acontecimento está localizado no décimo- primeiro parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da primeira utilidade da manutenção em suspensão das unidades admitidas, a restituição da singularidade de acontecimento do enunciado (ver AS, p. 32).

A manutenção em suspensão das unidades admitidas tem por objetivo a restituição da singularidade de acontecimento do enunciado:

(...) a supressão sistemática das unidades inteiramente aceitas permite, inicialmente, restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento (...); faz-se, assim, com que ele surja em sua irrupção histórica; o que se tenta observar é essa incisão que ele constitui, essa irredutível – e muito frequentemente minúscula – emergência. (AS, p. 32, grifo nosso)

A presença é o acontecimento, o surgimento, a irrupção histórica, a constituição de incisão, a emergência - do enunciado. Há relação entre presença e especificidade: singularidade de acontecimento, irredutível emergência (do enunciado) – todo acontecimento é singular, toda emergência é irredutível (a presença é sempre específica):

Por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequências, por mais facilmente esquecido que possa ser após sua aparição, por menos entendido ou mal-decifrado que o suponhamos, um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. (AS, p. 32, grifo nosso)

A presença é a aparição, o acontecimento (do enunciado).

Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação (...) (AS, p. 32, grifo nosso)

A presença é o acontecimento (estranho do enunciado), a existência (remanescente do enunciado). O audível (articulação de uma palavra) e o tátil (gesto de escrita) estão vinculados ao visível (existência remanescente na materialidade de qualquer forma de registro212: relação entre presença, espaço e tempo – a presença é permanência no visível: o visível precisa da

211 Ver supra no “Capítulo 2 – Epistemologia da percepção: relação entre visível e invisível” o terceiro

aparecimento da estrutura de argumentação da constatação da visão (sobre a relação entre a busca da visão específica como necessidade de minúcia e a vontade de visibilidade absoluta ou total).

212 Ver supra comparativamente no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o

segundo aparecimento da relação entre visível e audível. Ver supra também, no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos”, “Relação entre audição, tato e visão”.

presença e a presença é sempre visibilidade). Existe relação entre presença e especificidade: acontecimento único (do enunciado).

O quarto aparecimento da presença como acontecimento está situado no décimo- segundo parágrafo do primeiro capítulo, “As unidades do discurso”, da segunda parte, “As regularidades discursivas”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da segunda utilidade da manutenção em suspensão das unidades admitidas, a possibilidade da apreensão de outras formas de regularidade ou de outros tipos de relações (ver AS, p. 32-3).

A segunda utilidade da suspensão das unidades admitidas é a possibilidade da descrição de relações discursivas e não-discursivas: “Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos (...) é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações.” (AS, p. 33, grifo nosso) A presença é o aparecimento (do espaço) e o acontecimento (discursivo). Há relação entre presença, espaço e miscigenação: a presença do espaço (aparecimento do espaço discursivo) e o espaço da presença (espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos) – indissociabilidade entre presença e espaço - remetem à descrição de jogos de relações discursivas (entre enunciados e entre grupos de enunciados) e não-discursivas: “... relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política).” (AS, p. 33, grifo nosso) O não-discursivo é presença (acontecimento), ou seja, visível (audível ou inaudível), e a possibilidade de relação entre as duas visibilidades (discursiva e não-discursiva) ocorre mediante remissão última ao visível discursivo213.

O quinto aparecimento da presença como acontecimento está localizado no vigésimo- quarto parágrafo do segundo capítulo, “A função enunciativa”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise do regime de materialidade repetível do enunciado (ou da diferença entre enunciação e enunciado) – ver AS, p. 116-7.

A enunciação é singular: “A enunciação é um acontecimento que não se repete; tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir.” (AS, p. 116, grifo nosso) A enunciação é a relação entre presença (acontecimento), especificidade (singularidade), espaço (situação) e tempo (data): “Diremos que há enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem sua individualidade espaço-temporal.” (AS, p. 116, grifo nosso) A enunciação é a fixação da presença (emissão de signos) no espaço e no tempo como singularidade (individualidade), cujo risco é a imobilidade do olhar. O enunciado

213 A tese de que o visível não-discursivo remete, em última instância, ao visível discursivo foi enunciada no

é repetível: “Ora, o próprio enunciado não pode ser reduzido a esse simples fato [sic] da enunciação, pois ele pode ser repetido apesar de sua materialidade...” (AS, p. 117, grifo nosso)214 A repetibilidade do enunciado é a sua diferença em relação à enunciação, entretanto ele possui materialidade, por isso a relação entre presença (acontecimento), espaço (materialidade), tempo e especificidade também é fundamental. Tanto enunciação quanto enunciado são visíveis (materiais), daí a importância da presença (como acontecimento) – no espaço.

O sexto aparecimento da presença como acontecimento está situado no vigésimo- oitavo parágrafo do segundo capítulo, “A função enunciativa”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise do campo de utilização do enunciado como princípio de variação de sua identidade (ver AS, p. 120).

A repetibilidade (manutenção da identidade) do enunciado se opõe à singularidade da enunciação mediante a definição do espaço (campo de utilização): “A constância do enunciado, a manutenção de sua identidade através dos acontecimentos singulares das enunciações, seus desdobramentos através da identidade das formas, tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se encontra inserido.” (AS, p. 120, sublinhado nosso) Para a enunciação, a presença (acontecimento) é sempre singular – relação entre presença e especificidade. Para o enunciado, a presença (acontecimento) depende do espaço (campo de utilização) – relação entre presença e espaço.

O sétimo aparecimento da presença como acontecimento está localizado no segundo parágrafo do terceiro capítulo, “A descrição dos enunciados”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a fixação do vocabulário (definição de performance verbal ou linguística e de formulação) – ver AS, p. 123-4.

Há relação entre as definições de performance verbal ou lingüística e de formulação:

Se aceitarmos chamar performance verbal, ou talvez melhor performance linguística, todo conjunto de signos efetivamente produzidos a partir de uma língua natural (ou artificial), poderemos chamar formulação o ato individual (ou, a rigor, coletivo) que faz surgir [sic], em um material qualquer e segundo uma forma determinada, esse grupo de signos: a formulação é um acontecimento que, pelo menos de direito, é sempre demarcável segundo coordenadas espaço-temporais, que pode ser sempre relacionada a um autor, e que eventualmente pode constituir, por si mesma, um ato específico (...) (AS, p. 123, sublinhado nosso)215

A definição de performance verbal ou linguística estabelece a relação entre identificação da efetividade (portanto, necessidade da presença, quer dizer, permanência no visível) – signos

214 Problema de tradução: ao invés de “fato” deveria ser “acontecimento”. 215 Problema de tradução: ao invés de “surgir” deveria ser “aparecer”.

efetivamente produzidos - e reconhecimento do limite ou da finitude através da totalidade (todo conjunto de signos efetivamente produzidos) -, daí a possibilidade da vontade de visibilidade absoluta ou total. A definição de formulação estabelece a presença como ato de aparecimento, como acontecimento. Esta presença tem relação com o espaço e o tempo, e com a especificidade: acontecimento (aparecimento) ou ato específico demarcável segundo coordenadas espaço-temporais.

O oitavo aparecimento da presença como acontecimento está situado no décimo- sétimo parágrafo do quarto capítulo, “Raridade, exterioridade, acúmulo”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise da remanência dos enunciados (ver AS, p. 143).

A remanência dos enunciados se opõe ao retorno à formulação como acontecimento passado: “Essa análise [enunciativa das formas específicas de acúmulo] supõe que os enunciados sejam considerados na remanência que lhes é própria e que não é a do retorno sempre possível ao acontecimento passado da formulação.” (AS, p. 143) A formulação é a presença (acontecimento) e somente é possível retornar a ela (portanto, ela é visível) justamente porque tem presença (acontecimento). A remanência (dos enunciados) é a permanência na visibilidade, é a presença: há relação entre presença, especificidade e tempo, já que a remanência (presença no tempo) dos enunciados é própria (específica).

O nono aparecimento da presença como acontecimento está localizado no quarto parágrafo do quinto capítulo, “O a priori histórico e o arquivo”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a definição de arquivo (ver AS, p. 148).

A definição de arquivo estabelece relação entre presença e espaço:

(...) temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. (AS, p. 148, sublinhado nosso)

O arquivo é a relação entre presença (enunciado como acontecimento – e/ou aparecimento) e espaço (enunciado como coisa: campo de utilização), quer dizer, só há presença no espaço e o espaço é presença (por isso a presença do espaço e o espaço da presença são indissociáveis) – a permanência no visível é esta necessidade da presença e, consequentemente, do espaço.

O décimo aparecimento da presença como acontecimento está situado no quinto parágrafo do quinto capítulo, “O a priori histórico e o arquivo”, da terceira parte, “O

enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a definição de arquivo (ver AS, p. 148-9).

A análise da definição de arquivo expõe a terminologia da presença:

Trata-se (...) do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, (...) [tenham surgido] tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo; (...) nasçam segundo regularidades específicas (...) (AS, p. 148-9, grifo nosso)

A presença é o surgimento, o aparecimento ou o nascimento (de tantas coisas ditas) – o nascimento específico é a relação entre presença e especificidade. Continua a definição de arquivo: “O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.” (AS, p. 149, grifo nosso)216 Existe relação entre presença (aparecimento como acontecimento) e especificidade (singularidade): aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares - a presença é sempre específica. Depois, o arquivo como sistema de enunciabilidade:

O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. (AS, p. 149, sublinhado nosso)

Há indissociabilidade entre presença (enunciado-acontecimento) e espaço (corpo em que se dá) – notemos que a caracterização do espaço ocorre como corporeidade. A seguir, o arquivo como sistema de funcionamento: “O arquivo não é, também, o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressurreição; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de seu funcionamento.” (AS, p. 149, sublinhado nosso) O modo de atualidade do enunciado-coisa (o arquivo como sistema de seu funcionamento) é a presença como presente. Por fim, o arquivo “... é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria.” (AS, p. 149, sublinhado nosso) Há relação entre presença (existência) e multiplicidade: arquivo diferencia os discursos em sua existência múltipla (presença múltipla)217. Existe relação entre presença, multiplicidade, tempo e especificidade: arquivo especifica os discursos em sua duração própria (presença múltipla no tempo específico)218.

216 Ver supra comparativamente no “Capítulo 1 – Epistemologia da percepção: relação entre os sentidos” o

oitavo aparecimento da relação entre invisível e inaudível (especificamente sobre a relação entre necessidade da presença e permanência no visível audível).

217 Sobre a diferença como multiplicidade, ver supra no “Prólogo – Discurso da historicidade” todos os

aparecimentos da palavra “historicidade”.

218 Sobre a diferença como especificidade, ver supra no “Prólogo – Discurso da historicidade”, o sexto, o sétimo,

o nono e o décimo aparecimento da palavra “historicidade”. Sobre a diferença como tempo, ver supra no “Prólogo – Discurso da historicidade”, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e o nono aparecimento da palavra “historicidade”.

O décimo-primeiro aparecimento da presença como acontecimento está localizado no sexto parágrafo do quinto capítulo, “O a priori histórico e o arquivo”, da terceira parte, “O enunciado e o arquivo”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a definição de arquivo (ver AS, p. 149-50).

O arquivo define um nível particular: “... o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação.” (AS, p. 150, grifo nosso) A presença (surgimento, acontecimento) está relacionada à multiplicidade (de enunciados): visão de múltiplas presenças. Continua a definição do nível particular do arquivo: “... entre a tradição e o esquecimento, ele [o arquivo] faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É [sic] o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados.” (AS, p. 150, sublinhado nosso)219 O arquivo é a presença como aparecimento (das regras de uma prática) e como formação (dos enunciados). Há relação entre presença e tempo: formação e subsistência (quer dizer, presença e permanência no tempo), mas também transformação ou modificação (presença no tempo). O arquivo é um instrumento conceitual da visibilidade (da permanência no visível) porque garante presença (permanente).

O décimo-segundo aparecimento da presença como acontecimento está situado no primeiro parágrafo do segundo capítulo, “O original e o regular”, da quarta parte, “A descrição arqueológica”, de A arqueologia do saber. Seu contexto é a análise crítica da história das ideias como reencontro da linha contínua de uma evolução e como descrição de uma série de figuras globais (ver AS, p. 161-2).

A história das ideias distingue duas categorias de formulações, as antigas (repetidas, tradicionais, banais) e as novas (inéditas, originais) – as criações são aquelas “... que aparecem pela primeira vez...” (AS, p. 161, grifo nosso) A presença é o aparecimento. O grupo das formulações banais (como descrição de uma série de figuras globais)

(...) manifesta a história como inércia e marasmo (...); os enunciados devem aí ser tratados em massa e segundo o que têm em comum; sua singularidade de acontecimento pode ser neutralizada; perdem importância também a identidade de seu autor, o momento e o lugar de seu aparecimento (...) (AS, p. 161-2, grifo nosso)

A presença é manifestação (da história), acontecimento (há relação entre presença e especificidade: singularidade de acontecimento) e aparecimento (existe relação entre

presença, espaço e tempo: momento e lugar de aparecimento)220. Ainda sobre as formulações originais (como reencontro da linha contínua de uma evolução): “No primeiro caso [reencontro da linha contínua de uma evolução através das criações], a história das ideias descreve uma sucessão de acontecimentos de pensamento; (...) reconstituímos a emergência das verdades ou das formas...” (AS, p. 162, grifo nosso) A presença é o acontecimento e a emergência. Há relação entre presença e tempo: sucessão de acontecimentos. Uma breve observação: como há uma crítica da história das ideias, a terminologia da presença aparece como oposição ao funcionamento da própria história das ideias mediante a defesa da arqueologia: assim, a presença como acontecimento não deve ser entendida em função do pensamento (remissão ao invisível), mas sim em virtude do discurso (permanência no visível)221.

O décimo-terceiro aparecimento da presença como acontecimento está localizado no