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As pesquisas etnográficas ganharam força no final do século XIX e início do XX. Desconfiados de que os questionamentos de filósofos acadêmicos eram inapropriados para compreender, de fato, como viviam a pessoas reais, antropólogos adotaram a etnografia como método para estudar as sociedades ou grupos humanos. Na Inglaterra, surgiram muitos pesquisadores que empreenderam pesquisas dessa natureza nas colônias britânicas, principalmente no Pacífico e na África. Para Angrosino (2009, p. 16), os pesquisadores ingleses acreditavam que tais sociedades “pareciam estar preservadas em suas formas tradicionais”. Tal situação constituía um cenário perfeito para o desenvolvimento da etnografia a respeito de culturas “exóticas”, do “outro”. E a escola de antropologia britânica, por adotar um estudo das instituições duradouras da sociedade, será denominada de “antropologia social” (ANGROSINO, 2009, p. 16). Por sua vez, Bronislaw Malinowski (1884-1942) é um dos principais representantes dessa vertente antropológica na Inglaterra e um nome importante da etnografia mundial pelos trabalhos que desenvolveu.

Já no contexto dos Estados Unidos, a maioria dos antropólogos efetivou estudos etnográficos nas comunidades indígenas norte-americanas, apesar dos modos de vida de boa parte desses povos já terem sofrido mudanças ou mesmo sido destruídos pela intervenção do colonizador europeu. Na verdade, “[...] se não se pudesse encontrar a cultura naquelas instituições, ela teria então de ser reconstruída através da memória histórica dos sobreviventes” (ANGROSINO, 2009, p. 16). Por adotar essa perspectiva investigativa, a antropologia desenvolvida pelos estadunidenses será mais conhecida como “antropologia cultural”. Um importante antropólogo cultural é Franz Boas (1858-1942), cujos trabalhos influenciaram outros etnógrafos nos Estados Unidos.

É importante lembrar que tanto Boas quanto Malinowski consideram a pesquisa de campo e a observação participante essenciais em qualquer pesquisa etnográfica. Seja na área da Antropologia, da Psicologia ou da Educação. Para esses antropólogos, o etnógrafo deve mergulhar na cultura e na comunidade em que está sendo investigada. Malinowski, por exemplo, permaneceu por quatro anos nas Ilhas de Trobriand (do Pacífico) durante a Primeira Guerra Mundial realizando um estudo de campo (cf. ANGROSINO, 2009). Claro que ele ficou impedido de deixar a

comunidade em função da guerra, mas a etnografia exige uma investigação longitudinal ancorada em diferentes instrumentos de geração de dados.

Angrosino (2009) destaca que, com a adaptação de métodos da pesquisa etnográfica de campo por antropólogos da Universidade de Chicago na década de 1920, ocorre a implementação de investigação de grupos sociais em comunidades “modernas”, sobretudo nos Estados Unidos. Como lembram Barton e Papen (2010), é após tal período que os antropólogos passaram a voltar os olhos para as suas próprias comunidades ou cultura, e não sobre o “exótico” ou o “outro”. Por sua vez, a abordagem etnográfica fomentará pesquisas em áreas como educação, negócios, saúde pública, enfermagem e comunidade, embora fossem, até então, campos “intocáveis” pela etnografia. De certa forma, as questões linguísticas passaram a ter espaço nesse tipo de pesquisa, em especial o ensino de línguas.

Por outro lado, as mudanças nas pesquisas antropológicas passam de um olhar sobre “o outro”, considerado “o exótico”, para as “próprias sociedades” dos pesquisadores. Dentro do novo cenário visual investigativo, a escrita ganhará status de objeto de pesquisa, embora já estivesse presente nos estudos antropológicos, mas tratada como objeto pouco relevante. Os antropólogos valorizavam em suas pesquisas apenas os textos das tradições orais do “outro”, como canções, poemas e encantamentos (BARTON; PAPEN, 2010). Os gêneros orais possibilitavam conhecer crenças e costumes das comunidades ou grupos sociais estudados. Com isso, a escrita e o letramento ocupavam posição marginal nas pesquisas antropológicas. Entretanto,

Examinar textos escritos é essencial para compreender como as sociedades funcionam e são organizadas, como as instituições comunicam com o público, como o trabalho está sendo feito, como indivíduos e grupos sociais organizam suas vidas e dão sentido a suas experiências e como as culturas em todas as suas variações são produzidas e reproduzidas (BARTON; PAPEN, 2010, p. 5, tradução nossa)76.

A escrita, por sua natureza, está ligada diretamente aos aspectos social e cultural dos grupos sociais ou comunidades. Não podemos esquecer que valores, costumes, crenças e comportamentos vinculam-se, direta ou indiretamente, aos textos que escrevemos ou lemos. E a etnografia apresenta características

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Do original em Inglês: “Examining written texts is essential for understanding how societies operate and are organized, how institutions communicate with the public, how work is being done, how individuals and social groups organize their lives and make sense of their experiences and how cultures in all their variations are produced and reproduced”.

apropriadas ao estudo da escrita na perspectiva antropológica, bem como de abordagem qualitativa.

Na obra Etnografia da prática escolar, André (2012) apresenta, inicialmente, um esboço dos pressupostos da abordagem qualitativa de pesquisa, tematizando a dicotomia “qualitativo-quantitativo”. Além disso, traz um panorama apontando semelhanças e diferenças entre as pesquisas de abordagem qualitativa: estudo etnográfico, estudo de caso, pesquisa participante e pesquisa-ação. Por ser o foco principal do livro, explora em pormenores a pesquisa etnográfica, trajetória histórica, principais grupos e publicações (pesquisa etnográfica) vinculados à área da educação, bem como as contribuições da etnografia no Brasil. Enquanto alternativa aos estudos da prática escolar, a autora também aborda a metodologia do estudo de caso etnográfico e questões vinculadas à validade, fidedignidade e generalização nos estudos de caso. A obra também apresenta três estudos de natureza etnográfica desenvolvidos acerca de questões vinculadas ao cotidiano escolar de ensino fundamental, além de outra pesquisa a respeito da prática de formação de professores da Educação Básica. Para finalizar, André (2012) delineia as novas direções ou tendências da pesquisa de natureza etnográfica em educação, principalmente no Brasil, destacando uma preocupação com as relações de poder, trabalho cooperativo e parceria entre pesquisador e grupo pesquisado no trabalho etnográfico. Assim, para a autora, há quatro abordagens ou tendências que subsidiam o trabalho etnográfico:

a) tornar o mais explícitas possíveis as evidências, ou pontos de apoio das interpretações;

b) recorrer à microetnografia, usando vídeos;

c) estimular o pesquisador prático, ou seja, envolver cada vez mais o professor na pesquisa;

d) utilizar arquivos interativos na troca de informações (ANDRÉ, 2012, p. 118).

Em um trabalho no qual discutem e analisam aspectos dos procedimentos de geração, segmentação, transcrição e análise de dados em pesquisas escolares situadas na área da Linguística Aplicada (LA), Garcez et al. (2014) corroboram que a prática de pesquisa microetnográfica no tocante às ações humanas mediadas pelo uso da linguagem constitui procedimentos analíticos “plenos”, além de esses autores elencarem questões teórico-práticas inerentes a tal procedimento. Apoiados nos pressupostos teórico-metodológicos dos estudos do letramento e da LA, Kleiman e

Santos (2014) investigam o letramento e a formação do professor. Para tanto, consideram fundamental a aplicação da metodologia microanalítica na análise das interações linguísticas dos colaboradores da pesquisa, pois

O olhar etnográfico sobre uma determinada realidade social e a microanálise das interações entre os sujeitos que agem nessa realidade permitem interpretar os eventos de letramento que aí se configuram e inferir as práticas sociais letradas que os subjazem e viabilizam a atualização das atividades realizadas (KLEIMAN; SANTOS, 2014, p. 188).

Ou seja, a microetnografia é apontada por Kleiman e Santos (2014), por Garcez et al. (2014) e por André (2012) como uma abordagem metodológica bastante apropriada para analisar as interações e as ações de linguagem de atores sociais nos estudos de natureza etnográfica aplicados ao contexto escolar.

Como vimos, o método etnográfico de pesquisa foi desenvolvido nas investigações da área da Antropologia, voltadas ao estudo da cultura e da sociedade por meio da descrição, da documentação e da análise de aspectos cotidianos de povos diferentes. Diferentemente da Antropologia, em que o investigador permanece longo tempo no campo (ou comunidade), mergulha na cultura de outras comunidades e adota diferentes categorias sociais a serem aplicadas na análise dos dados, dependendo do objeto investigado, a exemplo de estudos focalizando ensino de línguas, as pesquisas etnográficas não exigem que os pesquisadores cumpram literalmente os mesmos parâmetros investigativos adotados em pesquisas antropológicas. Isso ocorre porque os etnógrafos dessa área concentram seus esforços na descrição da cultura de determinado grupo social, como hábitos, rituais, crenças, valores, linguagens, significados (ANGROSINO, 2009). No âmbito do ensino, os investigadores realizam estudos focalizando a escola, os atores sociais, as diferentes práticas de ensino, as formas de organização pedagógica, interação professor/aluno, entre outros aspectos (ANDRÉ, 2012).

No contexto escolar, por apresentar algumas peculiaridades, sobretudo em relação aos tipos de atividades e de interações dos atores sociais nas práticas educativas que podem ser registradas, a etnografia ganha outros contornos, embora tenha de manter certa proximidade com a etnografia desenvolvida no âmbito da Antropologia. Ao efetuarmos pesquisa etnográfica a respeito dos letramentos no contexto escolar, por exemplo, certamente a perspectiva teórico-metodológica assumida deve focalizar a escrita ensinada/aprendida, o que as pessoas sabem,

como/quando usam a escrita. Esses aspectos vão além de “mensurar o domínio” de simples habilidades de uso da linguagem. No presente estudo, tais aspectos serão contemplados.

Desse modo, nas pesquisas de natureza etnográfica desenvolvidas no contexto educacional, o investigador deve concentrar seu olhar nas diferentes situações de interação nas mais variadas práticas empreendidas pelos participantes ou colaboradores, embora seja necessário ter um cuidado substancial com o processo, isto é, com o curso em que as atividades seguem, e não com o produto ou resultados finais (ANDRÉ, 2012).

Segundo Mason, o método de observação participante adotado nas pesquisas de natureza etnográfica permite ao investigador observar e registrar diferentes tipos de elementos do contexto em que estão inseridos os atores sociais, como “[...] ações sociais, comportamentos, interações, relacionamentos, eventos, assim como as dimensões espacial, temporal e de localização” (MASON, 2002, p. 84, tradução nossa)77. A autora ainda destaca que, para gerar dados usando o método etnográfico, o pesquisador deve fazer uma “imersão” no contexto social da pesquisa para que possa observar e registrar experiências específicas. Por isso, a pesquisa observacional requer período prolongado e recursos (principalmente financeiros) para ser executada.

Embora haja um consenso entre os pesquisadores de que a etnografia seja a “mais” apropriada para o desenvolvimento de investigações acerca dos letramentos, em um de seus estudos etnográficos a respeito de letramento, Street (2014, p. 66) adverte que “a etnografia por si só não é uma solução mágica para o ‘problema’ de investigar o letramento: sem clareza teórica, a investigação empírica do letramento apenas reproduzirá nossos próprios preconceitos, qualquer que seja o sentido que atribuamos à ‘etnografia’”. Ou seja, assim como em outros tipos de pesquisa, qualquer estudo etnográfico exigirá os pressupostos teóricos apropriados e escolhidos pelo pesquisador para alicerçá-lo. Como sabemos, a teoria é o “farol” capaz de clarear e de respaldar os fundamentos da pesquisa. Ela ocupa o papel de “guia” e de “sustentáculo” do pesquisador.

Na obra O planejamento da pesquisa qualitativa, Denzin e Lincoln (2006) situam o campo dos estudos de abordagem qualitativa, trazendo aspectos históricos,

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Do original em Inglês: “[…] social actions, behaviour, interactions, relationships, events, as well as spatial, locational and temporal dimensions”.

pesquisa-ação e o meio acadêmico, bem como questões de natureza política e ética relacionadas à pesquisa qualitativa. Os autores apresentam ainda os principais paradigmas históricos (positivismo, pós-positivismo, construtivismo, teoria crítica) e contemporâneos (feminismo, estudos culturais, teoria queer, entre outros) que sustentam e influenciam tal tipo de pesquisa em diferentes disciplinas ou áreas do conhecimento, além de apontarem conjecturas acerca do futuro da pesquisa qualitativa.

Denzin e Lincoln (2006) concebem a pesquisa qualitativa como uma gama de práticas interpretativas que pode ser articulada a outros métodos nos procedimentos de análise de dados. Em outras palavras, entendemos que por si só esse tipo de pesquisa nem sempre é suficiente para explicar certos fenômenos naturais focalizados no âmbito das ciências humanas. Esses autores lembram, por exemplo, que o emprego do método qualitativo se situa em um “campo complexo” e é marcado por momentos históricos distintos em que os estudos ocorreram.

Em seu trabalho a respeito da etnografia de sala de aula de línguas, Siqueira (2014, p. 34) esboça três características básicas que diferem a etnografia de outros tipos de pesquisas qualitativas, a saber: a) o trabalho do etnógrafo geralmente é longitudinal. Isso requer que o pesquisador permaneça por meses ou anos no contexto social do estudo; b) a pesquisa do tipo etnográfica tem ampla dimensão, cujo objetivo primordial é esboçar uma explicação descritiva e interpretativa do espaço social investigado; c) no estudo, devem-se conceber os comportamentos dos participantes tendo em vista os aspectos culturais, bem como as ações de linguagem.

Desse modo, podemos afirmar que a investigação do nosso objeto de pesquisa é de natureza etnográfica, pois focalizamos diferentes atividades e interações escolares desenvolvidas em uma turma do Ensino Básico ao longo de um ano letivo. Como veremos no capítulo (4) de análise desta tese, a convivência e o diálogo com os monitores, estudantes e outros atores sociais (pais e demais pessoas da comunidade) colaboradores do estudo proporcionaram-nos subsídios para descrevermos e compreendermos as dimensões ou papéis dos Instrumentos Pedagógicos da Pedagogia da Alternância nas práticas didático-pedagógicas assumidas pela Escola Família Agrícola Zé de Deus, assim como do contexto social investigado. Por último, o desenvolvimento da investigação gerou subsídios que

permitem caracterizar os aspectos da cultura escolar, bem como as ações de linguagem estabelecidas no âmbito da sala de aula e fora dela entre os atores.