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As dimensões sociais de usos da leitura e da escrita nas práticas sociais, já reconhecidas em muitos estudos, sedimentaram o letramento ideológico. Este modelo foi gestado por pesquisadores vinculados ao chamado “Grupo Nova Londres”, sendo Brian Street (1984; 2014) um dos principais representantes.

Considerando-se a concepção e a perspectiva do letramento ideológico, depreende- se que ele nasceu como uma crítica ao modelo autônomo.

Os Novos Estudos do Letramento, por constituírem a perspectiva teórica que ancora esta tese, levam-nos a assumirmos no trabalho a concepção de que o letramento constitui um fenômeno de natureza estritamente social, vinculado às práticas de usos da leitura e da escrita recorrentes em determinada comunidade. Por isso, é fundamental conhecermos e compreendermos o contexto sociocultural em que a comunidade focalizada na pesquisa está inserida, pois esta pode sofrer influências capazes de dimensionar o(s) modelo(s) de letramento nas práticas de leitura e de escrita.

Considerando que existem vínculos estreitos estabelecidos entre língua, letramento e sociedade, na perspectiva de modelo ideológico de letramento defendido nos estudos de Street (1984), podemos afirmar que as práticas de letramentos, por serem de natureza plural, podem sofrer mudanças segundo a realidade do contexto social (cf. KLEIMAN, 1995). Esse modelo favorece a articulação de aspectos culturais e questões de poder ligados diretamente aos usos da escrita nas práticas sociais. O letramento ideológico, ao contrário do modelo de letramento autônomo disseminado na escola, proporciona questionamentos acerca de práticas letradas e insere as pessoas na relação que se mantém com tais práticas, contextos e demais sujeitos envolvidos nas interações sociais (KLEIMAN, 1995).

O letramento, além de ser caracterizado pelos modelos autônomo e ideológico, focalizados anteriormente, envolve outros elementos, como os eventos e práticas de letramentos. Street (2012, p. 75) lembra que apreender a concepção de eventos de letramento é tão importante para os pesquisadores quanto para os praticantes, pois possibilita “[...] focalizar uma situação particular onde as coisas estão acontecendo e pode-se vê-las enquanto acontecem”. Cada situação de interação representa um tipo de evento em que acontece a leitura e/ou a escrita, ou seja, nesse exemplo dado pelo autor temos de fato um evento de letramento. Na concepção de Barton e Hamilton ([1998]2012, p. 7, tradução nossa)49, eventos de letramento “[...] são episódios observáveis que resultam de práticas e são moldados por elas”. Considerando que os eventos de letramento são atividades que o

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Do original em Inglês: “[…] are observable episodes which arise from practices and are shaped by them”.

letramento exerce determinada função, eles são episódios que emergem das práticas e se vinculam a diferentes instituições sociais, cujo conjunto de rotinas/atividades pode abranger interações mais formais (como aquela do local de trabalho, da escola, da igreja e dos órgãos públicos) e menos formais (como as do ambiente familiar ou lar e do cotidiano) (BARTON, HAMILTON, [1998]2012).

Por sua vez, “as práticas de letramento referem-se a essa concepção cultural mais ampla de modos particulares de pensar sobre a leitura e a escrita e de realizá- la em contextos culturais” (STREET, 2012, p. 77). Ou seja, as práticas de letramento constituem situações de interação sociocultural mediadas pela leitura, pela escrita e/ou pelas suas tecnologias, envolvendo diretamente determinados atores sociais. Com base em Street (2012), podemos afirmar que eventos e práticas de letramento não constituem o mesmo elemento, mas caminham lado a lado. Isso porque

O conceito de ‘práticas de letramento’ se coloca num nível mais alto de abstração e se refere igualmente ao comportamento e às conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos usos da leitura e/ou da escrita. As práticas de letramento incorporam não só os ‘eventos de letramento’, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos populares desses eventos e as preconcepções ideológicas que os sustentam. (STREET, 2014, p. 18)

Conforme a esfera social de uso da linguagem, serão empreendidos diferentes eventos e práticas de letramentos. Isso exige não só visualizar ou descrever tais eventos e práticas, porém compreendê-los segunda a ótica do contexto social de uso da linguagem e as relações (sociais, culturais e de poder) estabelecidas.

Na obra de Barton e Hamilton ([1998]2012), os autores investigam os letramentos locais, considerando os usos da leitura e da escrita no ambiente familiar, economia, “paisagem urbana”, livros, jornais, logotipos, entre outros. A pesquisa, de natureza etnográfica, teve duração de três anos e focalizou os usos e significados da leitura e da escrita em uma comunidade representada por pessoas de um bairro de Lancaster, cidade do noroeste da Inglaterra. A pesquisa destaca a influência da globalização nas práticas e eventos de letramentos no mundo contemporâneo, além da influência trazida pelos imigrantes a essa comunidade inglesa.

Esse estudo revelou que as pessoas – em suas vidas cotidianas e nas atividades mediadas pelo uso social da leitura e da escrita – de certa forma estabelecem conexões entre “o local e o global”. Por ser um processo de duas vias,

o estudo ressalta a importância de compreendermos as práticas situadas de letramento e os letramentos situados, que são o foco da investigação na comunidade focalizada. Além disso, Barton e Hamilton ([1998]2012) discutem o chamado “letramento para o trabalho” e o “letramento para aprendizagem”. O primeiro estaria ligado às práticas sociais de leitura e de escrita vinculadas ao ambiente de trabalho das pessoas; já o segundo seria recorrente nas práticas educacionais do contexto escolar.

Para ampliar a exposição a respeito de eventos e práticas de letramentos, exemplificamos uma pesquisa de Street (2012). Nesse trabalho de campo, realizado em uma comunidade camponesa no interior do Irã, envolvendo uma pesquisa etnográfica, Street (2012) identificou três tipos diferentes de práticas de letramentos, conforme os domínios sociais aos quais os participantes da pesquisa estavam vinculados: a) práticas de letramento maktab: ligadas à escola primária religiosa islâmica; b) práticas de letramento escolarizadas: vinculadas ao ensino nas escolas públicas “modernas”; e c) práticas de letramento comerciais: recorrentes nas transações comerciais ou compra e venda de frutas a serem transportadas à cidade e ao mercado.

A identificação dessas três práticas de letramentos permitiu ao pesquisador estabelecer as relações abaixo entre certas identidades e o vínculo a práticas sociais particulares dos participantes do estudo, quais sejam: a) letramento do

maktab: estava ligado aos ensinamentos que eram transmitidos por meio de textos

do Corão pela autoridade (religiosa) da comunidade local. As crianças que estudavam no maktab adquiriam competências específicas para utilizar os materiais letrados disponíveis no contexto social em que se encontravam; b) letramento

escolarizado: ligado às práticas educativas modernas desenvolvidas nas escolas,

com novos conteúdos, tonava-se um elemento potencial no sentido de sensibilizar os jovens camponeses a migrarem para cidades em busca de emprego; e c) letramento comercial: favoreceu o crescimento do uso de gêneros escritos (“banais”) como notas, cheques, listas de produtos, identificação de caixas na comercialização de grandes quantidades de frutas (STREET, 2012; 2014).

Ao articularmos os resultados do estudo de Street (2012) com os dados de nossa pesquisa de campo, podemos afirmar que eles dialogam em alguns aspectos, como: (i) os temas dos (08) Planos de Estudo (PE) estudados pelos colaboradores de nossa pesquisa durante um ano letivo eram voltados ao meio rural e às práticas

agrícolas; (ii) os estudantes colaboradores são filhos de camponeses e residem no campo; (iii) a proposta formativa da alternância, desenvolvida nas atividades por meio de diferentes eventos e práticas de letramentos, fomentam vínculos e práticas sociais não só com o letramento autônomo, mas também com o letramento voltado para o trabalho.

Na produção do Caderno da Realidade (CR) na escola-campo, o “rigor” exigido por alguns monitores nos registros escritos desse gênero mira, evidentemente, o desenvolvimento do letramento autônomo pelos jovens em processo de formação, como ilustra a Figura 5:

Figura 5 – Conclusão e avalição do PE – Registro no CR

Como mostra o texto da Figura 5, as correções de palavras no texto do aluno e o recado deixado pelo monitor na parte inferior do texto corroboram que o domínio da escrita (variedade de prestígio da língua) está em primeiro plano. Apesar dessa constatação, as intervenções do monitor podem ser consideradas inapropriadas, ou seja, não ajudam no desenvolvimento de capacidades cognitivas e de interação do aluno em formação. Há uma sanção genérica, sem indicações de como “melhorar a escrita”, que problemas ortográficos foram identificados, estando ausentes

elementos que orientassem para possibilidades de “aprofundar mais no assunto relatado”.

Na perspectiva de letramentos visibilizada por meio da intervenção ou observação do monitor (professor formador) no texto do estudante, fica implícita a proposição (mais recorrente na escola) de preparar os atores sociais em processo de formação para o trabalho, ao preconizar o desenvolvimento de capacidades para lidar com a linguagem escrita e as informações, mas deixando em segundo plano, em especial, aquilo que é mais relevante e que dialoga diretamente com a noção de letramento ideológico, numa perspectiva mais ampla: a formação do ser humano para a cidadania plena por meio da linguagem e não apenas para a instrumentalização individual do aluno para o mundo do trabalho e seus processos produtivos.

Portanto, as intervenções docentes não podem se limitar apenas a aspectos formais de uso da língua, ao desenvolvimento do letramento escolar. Particularmente, considerando a importância do tema gerador (Agricultura familiar) do PE focalizado no texto da Figura 5, seria relevante, por exemplo, que em seu comentário o monitor instigasse o estudante a trazer para a avaliação aspectos da política pública para o desenvolvimento da agricultura familiar, já que tal política foi abordada durante as atividades de estudo do tema. Certamente, provocar os estudantes a ampliarem o texto da Conclusão e avaliação do PE avaliando, por exemplo, a efetivação de tal política pública na região também seria uma forma de empoderá-los, já que os ajudaria a reconhecer seus direitos enquanto cidadãos (FREIRE; SHOR, [1986]2003), além de contribuir para o letramento ideológico. Embora tenham sido apresentados à turma colaboradora da pesquisa durante algumas etapas de desenvolvimento do tema do PE, os programas (por exemplo, Programa de Aquisição de Alimentos e Programa Nacional de Alimentação Escolar) governamentais que garantem o fomento à agricultura familiar e a aquisição de alimentos dos pequenos agricultores pelo Governo não aparecem no texto da Figura 5. Apesar disso, são programas que podem ajudar a fortalecer a produção no campo e elevar a qualidade de vida dos camponeses brasileiros. O monitor, por sua vez, deve ajudar o aluno não só a adquirir e melhorar as técnicas de produção no campo ao desenvolverem um tema. Os estudantes também necessitam aprimorar conhecimentos acerca de questões sociais e políticas inerentes a qualquer tema, já que estas impactam nas vidas das pessoas.

Por outro lado, o conjunto de temas dos PE selecionados pela equipe escolar com a participação da comunidade local e desenvolvidos com a turma participante da pesquisa, como: Agricultura familiar, Solo, Jardinagem e paisagismo, Criação de

aves, Olericultura, Piscicultura, Apicultura e Agroextrativismo permite-nos

afirmarmos que, por focalizarem atividades ligadas ao trabalho camponês e envolverem eventos de letramento situados no meio rural, como as Visitas de estudo e Pesquisas nas comunidades, favorecem aos jovens o desenvolvimento do letramento ideológico.

Figura 6 – Visita de estudo – PE Olericultura

Figura 7 – Pesquisa do PE – PE Apicultura

Esta imagem registra a Visita de estudo dos alternantes a uma horta para ampliar os conhecimentos sobre o tema do PE Olericultura

A foto ilustra a entrevista do questionário Pesquisa do PE – Apicultura, concedida por um apicultor ao aluno colaborador Alfredo. Aos fundos, há 04 caixas (apiários) em que são criadas abelhas do gênero Melipona Foto: Pesquisa do Autor (04/09/2014). Foto: Pesquisa do Autor (12/10/2014).

Ao estudar o tema olericultura ou apicultura, por exemplo, o jovem não se limita ao estudo de textos técnicos acerca desses assuntos ou às aulas ministrados por monitores (técnicos/agrônomo) que acontecem dentro das quatro paredes da sala de aula no Tempo Escola. As Visitas de estudo ou a Pesquisa do PE, conforme ilustradas nas Figuras 6 e 7, trazem outros eventos de letramento ligados à formação dos alunos e usos da escrita, da leitura e da oralidade, mas situados na própria comunidade. Os registros fotográficos mostram que alguns dos estudantes tomam nota durante as atividades.

Em outras palavras, podemos afirmar que os camponeses, os estudantes vinculados aos CEFFA sabem plantar, cultivar, colher; mas querem aprender

técnicas que vêm das práticas acadêmicas, neste caso, da principal agência de formação: a escola. Contudo, as práticas e eventos de letramentos focalizados contribuem para a construção do conhecimento e se situam na própria comunidade local, colocando em evidência as experiências dos camponeses no processo de formação e desenvolvimento do letramento.

Certamente, as práticas e eventos de letramentos ilustrados nas imagens vão além daquilo que a escola conservadora propõe a ensinar em termos de letramento; não é uma formação reduzida à escrita por si mesma. Além da interação com o monitor (formador), os estudantes participantes da pesquisa também interagem com os atores sociais da comunidade local, reforçando que a formação proposta pela Pedagogia da Alternância nos CEFFA não se limita ao desenvolvimento do letramento autônomo.