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Práticas acadêmicas de escrita e abordagem do letramento acadêmico

O trabalho de Lea e Street (2014) aborda o letramento no contexto educacional, mas a análise de dados tem como foco principal o “modelo de letramentos acadêmicos”, embora sejam explicitados os “modelos de habilidades de estudo” e o “modelo de socialização acadêmica”. A pesquisa foi desenvolvida em duas instituições: o King’s College de Londres e a Universidade Aberta, do Reino Unido. Na primeira, são analisadas produções escritas de alunos vinculados ao Programa de Desenvolvimento do Letramento Acadêmico (3h/a por semana durante um ano) voltado à preparação de jovens pré-universitários (nível A), no intuito de familiarizá-los com a escrita acadêmica, além de prepará-los para o ingresso no ensino superior. Já na segunda, a pesquisa envolve a análise de material didático por professores (tutores) dos cursos de Direito. Nas duas pesquisas, os “déficits dos alunos” não são o foco. Ao optar pelo modelo de letramentos acadêmicos, considera-se como “primeiro plano a variedade e a especificidade das práticas institucionais e a luta dos estudantes para que essas práticas façam sentido” (LEA; STREET, 2014, p. 491).

Nesse estudo a respeito da produção textual de alunos no contexto universitário, Lea e Street (2014) estabelecem três modelos ou perspectivas de letramento acadêmico, quais sejam: (i) modelo de habilidades de estudo, (ii) modelo de socialização acadêmica e (iii) modelo de letramentos acadêmicos.

Na perspectiva “habilidades de estudo”, a escrita e o letramento são reconhecidos como habilidade individual e cognitiva. Em outros termos, acredita-se que aquilo que o estudante aprende em determinado nível de ensino possa ser transferido para outro contexto. Por centrar-se nas habilidades individuais, o aluno seria capaz de “guardar” na mente um modelo de gênero que aprendeu durante o Ensino Médio, por exemplo. Entretanto, Street (2010, p. 547) afirma que o modelo de habilidades de estudo sofre críticas por envolver “aspectos linguísticos superficiais”, transferir a responsabilidade dos professores (em suas disciplinas) de apoiar seus alunos para outras pessoas, além de não valorizar a relação entre a escrita e a construção do conhecimento. Depreende-se que os aspectos elencados endossam a ideia de que, nesse modelo, a escrita seria vista como um “produto”, e não o resultado de um processo dialógico marcado por idas e voltas entre “aprendiz” e “formador”, isto é, pela interação entre aluno e professor ao longo do processo de produção textual.

Por outro lado, o modelo de socialização acadêmica reconhece que as diferentes áreas do conhecimento e disciplinares possuem gêneros e discursos peculiares que favorecem a construção do conhecimento pelos estudantes. Ou seja, as práticas educativas são mediadas pelo uso de diferentes gêneros em situação específica. Nessa perspectiva, os “estudantes adquirem modos de falar, escrever, pensar e interagir em práticas de letramento que caracterizavam membros de comunidade disciplinar ou temática” (LEA; STREET, 2014, p. 479). Dito de outra forma, pressupõe-se que o conhecimento é “construído” na interação com outros atores sociais, e não “transferido” individualmente como no modelo de habilidades de estudo.

Embora seja constituído por aspectos dos modelos de habilidades de estudo e de socialização acadêmica,

[...] o modelo dos letramentos acadêmicos é o que melhor leva em conta a natureza da produção textual do aluno em relação às práticas institucionais, relações de poder e identidades; em resumo, consegue contemplar a complexidade da construção de sentidos, ao contrário dos outros dois modelos (STREET, 2010, p. 546).

No modelo de letramentos acadêmicos, ao produzirem gêneros discursivos, os estudantes devem articulá-los, de alguma maneira, às questões de poder, identidade e produção de sentido. Tais questões estão presentes de modo tácito nas

práticas de letramento em contextos institucionais particulares (LEA; STREET, 2014). Conforme essa perspectiva, é possível dizer que os gêneros são compreendidos como “relativamente estáveis” no sentido do termo de Bakhtin (2006), já que a escrita se constitui por meio de um processo dialógico, e não como um produto por si só, fruto do trabalho individual do aluno.

Para ampliar as reflexões acerca do letramento acadêmico no contexto da educação superior – em diálogo com Street (2010) e Lea e Street (2014) –, o estudo desenvolvido por Zavala (2010) não se limita a discutir apenas a situação (na rotina da academia) enfrentada por uma acadêmica de origem camponesa, falante do Quíchua50, frente aos desafios impostos pelo letramento acadêmico em uma universidade do Peru. As discussões da autora vão muito além de um olhar avaliativo sobre a escrita escolar e a acadêmica; não se reduz apenas em mostrar a importância do letramento acadêmico, fundamental para quem chega à academia. Busca-se compreender, em outro viés, os motivos que justificam o “letramento acadêmico”, assim como explicações que o vinculam diretamente ao domínio de poder pelos grupos dominantes. Para Zavala,

[...] o letramento acadêmico não é só uma técnica da qual as pessoas podem se apropriar por meio de recursos mecânicos, mas um fenômeno que está entrelaçado com aspectos epistemológicos, ou seja, com formas de construir conhecimento. As formas de escrita caminham juntas às formas de pensar e as operações cognitivas envolvidas são, por sua vez, inseparáveis da compreensão subjetiva e contextualizada que a pessoa faz do mundo(ZAVALA, 2010, p. 81).

Nessa acepção, em uma sociedade tão desigual como é a nossa, pode-se afirmar que o reconhecimento de conhecimentos de grupos minoritários (a exemplo dos camponeses) só será possível quando ocorrerem mudanças e transformações nas pessoas que mantêm o poder em suas mãos, seja político, econômico ou dentro de qualquer instituição, como as universidades. Não basta apenas os menos favorecidos (camponeses, indígenas, quilombolas) almejarem que seus conhecimentos, saberes, crenças devem ser aceitos ou validados; antes de qualquer coisa, os grupos dominantes precisam ser sensíveis para que a transformação crítica aconteça de maneira ampla, acolhendo todas as pessoas e seus conhecimentos.

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O Quíchua (ou Quéchua) é uma das famílias de línguas indígenas mais importantes da América do Sul, falada principalmente por pessoas de grupos étnicos originários das regiões dos Andes, situadas em países como Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Chile e Argentina.

A pesquisa de Zavala (2010) reforça ainda que precisamos ter, principalmente, não só um olhar avaliativo sobre a escrita escolar e o letramento, mas também acerca da realidade (saberes, cultura, identidade) dos participantes do estudo. Isso porque “a aquisição do letramento constitui a apropriação de práticas discursivas orais e escritas que se desenvolvem como parte de como as pessoas dão sentido a sua experiência no processo de sua socialização” (ZAVALA, 2010, p. 81). Em outras palavras, é preciso considerar o contexto sociocultural dos atores sociais envolvidos na pesquisa e da unidade de ensino que estamos a investigar.

Para finalizar este tópico, trazemos uma pesquisa de Marinho (2010) desenvolvida no Brasil, cujo enfoque é a escrita acadêmica e as condições de produção do gênero resenha jornalística por alunos de um curso de Pedagogia em formação inicial. Os resultados do estudo mostraram que a produção dos discentes não atingiu o que se esperava, sendo ocasionada pelos seguintes fatores: a) ausência ou limitação de um trabalho/estudo sistematizado do gênero alvo da produção (resenha) antes de propor a escrita com os estudantes; b) limitação das etapas de produção quanto à proposta de “escrita como trabalho”; c) evidência de formação deficiente (na Educação Básica) dos alunos quanto à escrita acadêmica e escrita de gêneros da esfera universitária; d) incapacidade ou limitação dos estudantes em formação inicial frente à prática de produção textual; e) pouca familiaridade dos alunos universitários com a escrita, não só acadêmica, mas geral. Esses fatores elencados por Marinho trazem elementos evidenciados nas pesquisas de Street (2010), Lea e Street (2014) e Zavala (2010). Contudo, não podemos esquecer que

o aluno é aprendiz de uma escrita [na escola ou na universidade], não tem um lugar legítimo, de autoridade, na maioria dos gêneros que produz. É possível que nós, professores, projetemos nesses textos dos alunos expectativas pouco compatíveis com as suas experiências e conhecimentos sobre esses gêneros (MARINHO, 2010, p. 368).

Marinho (2010), ao discutir a escrita acadêmica e as condições de produção de um gênero, aborda um quadro real da situação (na rotina da academia) enfrentada por muitos discentes e docentes pelo letramento acadêmico. Conforme sugere a autora, poderíamos questionar: “a universidade, os cursos de formação de professores estariam reproduzindo os mesmos ‘vícios’ ou ‘erros’ que tão bem apontamos nas práticas de escrita da escola do ensino médio e fundamental?”

(MARINHO, 2010, p. 378). Portanto, às vezes, fazemos severas críticas à Educação Básica culpando-a e seus professores pela pouca familiaridade de alunos (pré-) universitários com o letramento acadêmico, mas nos esquecemos de que os mesmos problemas e dificuldades estão presentes na universidade. Tais questões serão apontadas na análise de dados da nossa pesquisa, considerando os textos produzidos pelos alunos colaboradores da escola-campo, bem como as intervenções dos monitores presentes nos textos.