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O modelo autônomo de letramento, concebido nas décadas de 1970/1980, teve como grandes representantes os pesquisadores Goody (1968), Olson (1977) e Ong ([1982]2011). Na perspectiva de estudo desse modelo de letramento, as discussões conduzidas nas pesquisas desenvolvidas em tal época consideram a escrita como superior à oralidade. Nesse mesmo período, também sedimenta a teoria da “grande divisão” (cf. STREET, 1984), que é o estabelecimento da relação entre oralidade/escrita com um ponto bem marcado entre ambas as modalidades de usos da língua.

A ideia de “autonomia” vem da compreensão de que, nesse modelo, a escrita seria um elemento completo por si só e a interpretação do texto (escrito) não dependeria do contexto em que é produzido (KLEIMAN, 1995). Conforme a autora, a interpretação seria regulada pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito, isto é, não necessitaria de mecanismos que caracterizam a oralidade, pois nesta, “[...] em função do interlocutor, mudam-se rumos, improvisa-se, enfim, utilizam-se outros princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou consistência interna, que acabam influenciando a forma da mensagem” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Nessa

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acepção, haveria diferenças marcantes entre escrita e oralidade no processo de comunicação, sendo que a compreensão da comunicação oral estaria vinculada à função interpessoal da linguagem, às relações e identidades dos sujeitos estabelecidas/construídas na interação.

O advento do modelo autônomo de letramento representa a propagação da ideia de supervalorização da escrita em diferentes setores da sociedade e a necessidade premente de sua apropriação pelas pessoas em geral, independentemente da classe social, nível econômico, realidade educacional entre outros aspectos da comunidade. Isso porque são conferidos “[...] poderes e qualidades intrínsecas à escrita, e, por extensão, aos povos ou grupos que a possuem” (KLEIMAN, 1995, p. 22). O resultado de tal pensamento, como sabemos, leva a escrita a ganhar status e faz com que ela integre parte daquilo que a escola propõe a ensinar à sociedade. Esse pensamento, ancorado principalmente nos estudos desenvolvidos por Goody (1968), Olson (1977) e Ong ([1982]2011), coloca a oralidade numa posição inferior, afetando principalmente aquela parcela da sociedade que não tem domínio da modalidade escrita da língua. Em outras palavras, significa dizer que a oralidade passa a ser vista como uma modalidade de uso desprestigiado da língua, sendo inferior à escrita.

Na obra intitulada “Oralidad y escritura: tecnologias de la palavra”, Ong ([1982]2011) discute as relações entre oralidade e o conhecimento da escrita. Esta, por sua vez, é colocada pelo autor como superior à “oralidade primária”, que é aquela oralidade das pessoas que desconhecem totalmente a escrita.

A escrita faz com que as ‘palavras’ pareçam semelhantes às coisas porque concebemos as palavras como marcas visíveis que indicam as palavras aos decodificadores: podemos ver e tocar tais palavras inscritas em textos e livros. As palavras escritas constituem reminiscências. A tradição oral não possui este caráter de permanência (ONG, [1982]2011, p. 20, tradução nossa)47.

Nessa mesma direção, o sistema formal de ensino do mundo contemporâneo, como sabemos, introduz as pessoas no aprendizado da escrita, menosprezando-se a oralidade, ou seja, aquela variedade de língua que as crianças e os jovens trazem de seus lares, apreendida no seio familiar e/ou nas comunidades locais.

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Do original em Espanhol: “La escritura hace que las “palavras” parezcan semejantes a las cosas porque concebimos las palavras como marcas visibles que señalan las palavras a los decodificadores: podemos ver y tocar tales “palavras” inscritas em textos e libros. Las palavras escritas constituyen remanentes. La tradición oral no posee este carácter de permanência”.

No entanto, surge a compreensão de que o letramento não é unívoco nem neutro, mas apresenta uma dimensão plural (letramentoS) e não se restringe apenas à escrita. Ou seja, estende-se aos diferentes usos da oralidade, da escrita e suas tecnologias nas práticas sociais, o que refuta e coloca em xeque a teoria do modelo autônomo defendido principalmente por Ong ([1982]2011).

Brian Street, em sua obra intitulada Literacy in theory and practice (1984), posiciona-se contrário ao modelo autônomo de letramento, fortalecido principalmente pela ideia da dicotomia entre oralidade e escrita estabelecida por Ong ([1982]2011). Street (2014) sustenta que a principal razão das críticas dirigidas a esse modelo deve-se ao fato de que ele propaga que o letramento se limita a um conjunto de capacidades cognitivas dos sujeitos e pode ser mensurado nos usuários da língua. Quando ouvimos falar em “baixo letramento”, “nível de letramento” ou “grau de letramento” (STREET, 2014, p. 9), deparamo-nos com uma visão focada no sujeito e nas capacidades de uso apenas da modalidade escrita da língua, evidenciando a concepção de letramento autônomo.

O resultado de tal concepção nas esferas dominantes da sociedade é o modelo de letramento autônomo, tal como difundido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), pela classe média, pelos agentes públicos, órgãos educacionais e grupos dominantes detentores do poder político e econômico, “[...] pressupõe uma única direção em que o desenvolvimento do letramento pode ser traçado e associa-o a ‘progresso’, ‘civilização’, liberdade individual e mobilidade social” (STREET, 2014, p. 44). Na verdade, essa visão considera o letramento uma “variedade independente”, dissociada de outras práticas de uso da língua, como a oralidade, em diferentes situações de interação.

De acordo com Kleiman (1995, p. 18-19), letramento seria “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita48, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Ao estabelecer que fosse um sistema simbólico usado em “contextos específicos” e com “objetivos específicos”, depreendemos que essa concepção de letramento coloca em dúvidas a classificação dos sujeitos em dois grupos distintos: alfabetizados e não alfabetizados. Além disso, as práticas educativas envolvendo leitura e escrita seriam

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Apesar de Kleiman (1995) limitar o conceito de letramento nesse excerto à “escrita”, defendemos em nosso estudo que os letramentos também incluem práticas de “oralidade”, pois estas envolvem diferentes práticas sociais de uso da linguagem verbal.

algo de que os atores sociais podem necessitar ou não. No âmbito do sistema formal de ensino, muitas vezes dominado pela seleção de certos textos e o padrão de escrita mais prestigiado pela sociedade, introduz o chamado letramento dominante (cf. KLEIMAN, 1995; STREET, 2014). O aluno, na perspectiva desse modelo de letramento, apresenta competências individuais e deve ser capaz de apreender o funcionamento da língua (especialmente da escrita alfabética) para desenvolver práticas de leitura e de escrita mais valorizadas no meio social, a exemplo do contexto escolar.

A escola, por ser uma das agências de letramento mais importantes, tem como principal objetivo oferecer uma educação formal voltada às reais necessidades de determinado grupo social ou comunidade que a circunscreve. No entanto, quase sempre o modelo de letramento privilegiado nas práticas educativas é o autônomo. Mas, se analisarmos com acuidade o contexto em que a escola está inserida, levando em consideração a formação dos professores, os objetivos da educação formal definidos pelos órgãos oficiais de ensino que cuidam da política pública educacional do Estado e os anúncios/discursos propagados nos meios de comunicação de massa (TV, rádio, revistas, jornais, blogs, portais eletrônicos, entre outros), veremos que há forças externas imbricadas, tão fortes, a ponto de a unidade escolar nem sempre conseguir equacionar uma formação que mire em primeiro plano o letramento ideológico dos estudantes em processo de formação. A tudo isso, podemos relacionar as noções de contexto estabelecidas por Blommaert (2008) e de cultura, por Geertz (2008) e Thompson (2009).

O contexto, pelos mais variados aspectos que pode caracterizá-lo, é um elemento relevante no estabelecimento de interações sociais mediadas pelas práticas de leitura ou de escrita. Embora tal termo apresente concepções diferentes, como ocorre na área de estudos da linguagem, assumimos neste trabalho a definição de contexto estabelecida por Blommaert (2008). Para o autor, “alguns fenômenos de fala e linguagem” podem ser vistos como “contextos” de textos. Dito de outra forma, “[...] os contextos não são características de textos individuais, mas de economia de comunicação e textualização mais amplas” (BLOMMAERT, 2008, p. 101). Depreendemos que a expressão “economia de comunicação” foi empregada em referência às “trocas” e “negociações” realizadas nas interações sociais entre os interlocutores, sejam elas envolvendo a leitura ou a escrita. Já “textualização” está relacionada à interpretação ou construção de sentido do texto (oral ou escrito) pelos

interlocutores em determinada situação de interação. Por trazermos em nosso estudo a escrita mediada por gêneros discursivos como um dos principais objetos de análise, ao situá-la no espaço em que é produzida (a escola, a sala de aula, a família e a comunidade), a ideia de contexto apresentada por Blommaert (2008) nos permite estabelecer uma aproximação com o conceito de cultura. Tal se justifica porque os letramentos são práticas situadas, dotadas de natureza social, histórica, ideológica, linguística e cultural, pois envolvem certos atores sociais de determinada comunidade.

Ao tomarmos cultura numa visão de natureza histórica e etnográfica, é possível percebermos o caráter interpretativo que constitui esse vocábulo. Em um de seus estudos a respeito do método de investigação do fenômeno cultural – centrado na etnografia –, Geertz (2008, p. 5) define que a cultura é constituída por “teias de significados” tecidas pelo homem nas relações estabelecidas no convívio social. Nesse sentido do vocábulo, as nossas interpretações ou perspectivas dentro de dado grupo social seriam “responsáveis” pelos nossos gestos, ações, atitudes, comportamentos. Para reforçar essa ideia, Thompson (2009, p. 175) afirma que a cultura é uma “hierarquia estratificada de estruturas significativas” (THOMPSON, 2009, p. 175), que consiste em ações, símbolos, sinais, manifestações verbais e conversações. Portanto, para compreendermos as práticas e eventos de letramentos recorrentes no contexto da escola-campo da nossa pesquisa, precisamos conhecer, primeiramente, a escola, sua proposta formativa (alicerçada nos princípios da Pedagogia da Alternância), os colaboradores do estudo e a comunidade que circunscreve a unidade escolar. Ou seja, todos esses elementos fazem parte e estão envoltos à cultura em que a unidade educativa investigada encontra-se inserida. Assim, ao analisarmos as diferentes práticas e eventos de letramentos precisamos levar em consideração as relações de poder, bem como aspectos de natureza cultural, histórica, social, política, ideológica e econômica.