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A exigência teórica: O Projeto para uma psicologia científica

O MODO FREUDIANO DE ESPECULAÇÃO FILOSÓFICA

1.7. A exigência teórica: O Projeto para uma psicologia científica

O Projeto para uma psicologia cientifica tem importância única não só na genealogia do conceito de pulsão, mas na genealogia da psicanálise. Escrito em 1895, só veio a público meio século depois, quando seu autor já estava morto. O texto é derivado da genialidade de Sigmund Freud e das interlocuções com seu amigo mais pessoal, Wilhelm Fliess. Durante anos o Projeto existiu apenas como um segredo entre dois amigos. Num tempo onde uma teoria para ser aceita dependia da resposta da comunidade científica, Fliess era o único público do solitário Freud31.

Quando a obra inaugural da psicanálise foi escrita o Projeto já existia. Esse é um dado de valiosa importância para essa pesquisa, uma vez que é possível ler a teoria da pulsão no Projeto, portanto, antes da escrita sobre o inconsciente. Se considerarmos que os principais aspectos teóricos relativos à teoria da pulsão estão grafados no texto de 1895, podemos presumir que a pulsão é o que permitiu Freud pensar o inconsciente. A pulsão é o elemento que faz Freud pensar metapsicologicamente. Nesse sentido, o

Projeto é o texto que marca a renúncia freudiana à anatomia e permite a seu autor a

formulação de uma metapsicologia. No Projeto o termo Trieb aparece como termo e não como conceito. Intencionamos evidenciar nessa tese de doutorado como o termo pulsão ascende à categoria de conceito.

Em 1895 havia o intento freudiano em conceber uma teoria que juntasse psicologia e fisiologia – tarefa que se incumbirá o Projeto. Na época em que Freud

31 Não é intenção dessa pesquisa discorrer sobre as razões da não publicação do Projeto e dos motivos para a manutenção do texto como um segredo de alcova.

começou a escrever o Projeto havia uma exigência positiva de uma psicologia quantitativa. Apesar disso, Freud inaugura uma preocupação com o sentido e, na verdade, sabedor ou não, mantém aberto o campo investigativo das situações geradoras de traumas, neuroses. Já havia a clareza de que não era qualquer situação capaz de ocasionar a neurose, interpondo-se a noção econômica inerente ao campo pulsional, muito embora não teorizada nesse momento. A trama de representações mantem o interesse de Freud, o qual, desde o início de 1895, procura descrever os fatos sob esse novo prisma.

Com Breuer, Freud conclui que toda histeria é de defesa, a qual age sobre as representações sexuais. Freud queria explicar a defesa com postulados sólidos e palpáveis, mediante uma teoria que elucidasse o jogo de forças com o jogo de quantidade de energia. Em 16 de agosto de 1895 escreve a Fliess: “tudo o que eu estava tentando fazer era explicar a defesa, mas experimente só explicar algo que vem do âmago da natureza” (Masson, 1986, p.136-137).

Numa época em que triunfava o materialismo, Freud procura naturalizar sua psicologia, tendo em vista que apenas a matéria adquiria o estatuto de científica naquela época. Para os aspectos que não consegue explicar empiricamente, lança mão de dados e hipóteses biológicas. Afinal, Freud quer uma teoria. Mas O projeto (1895) não é apenas uma obra mecanicista. Não deve ser esquecido que a articulação das teses freudianas são derivadas de suas elaborações clínicas junto aos pacientes histéricos. Nessa medida, O projeto (1895) é uma tentativa de dar uma resposta teórica à prática clínica por Freud. O cientificismo que marca a redação do texto deve ser entendido como uma exigência positivista da época. Freud pretende oferecer leis e princípios para o funcionamento do aparelho psíquico, cujo modelo elementar é o arco reflexo, de modo a esclarecer as estruturas psicológicas a partir de bases neurológicas. O objetivo principal é explicar as conexões entre as excitações internas, os estímulos externos e as leis que regulam o fluxo ou a retenção daquilo que o autor designa por quantidade (Q) que atravessa o sistema neuronal, composto pelos neurônios (Ψ, φ, ω).

Freud estabelece a ideia de passagem e distribuição de energia através de barreiras de contato. A tópica do aparelho neurológico concebido por Freud no Projeto (1895) é feita em termos importados da anatomia. Em 1895 ainda prevaleciam

explicações neurológicas em Freud, mas ele já estava em processo de adoção das explicações psicológicas, como veremos a seguir, a partir de 1896, notadamente no texto A etiologia da histeria.

O projeto (1895) articula o modo de funcionamento do aparelho psíquico a um

sistema neuronal e trata os processos inerentes a tal aparelho como modificações quantitativas. Na verdade O projeto não é uma obra neurológica, desde que visto por outro prisma. Freud queria uma teoria científica, tendo em vista o viés acadêmico de sua época. Mas, desde a Salpêtrière, as evidências clínicas tocavam sensivelmente a escuta freudiana. Foi tal sensibilidade que lhe garantiu força em seus rompimentos e caminhos que adotou.

A tônica da quantidade já estava presente nos textos que Freud escreveu antes de 1895. A intenção de dar solução para a determinação das forças em ação é o fator impulsionador da escrita do Projeto. Freud queria dar uma base psicofisiólogica para a teoria das neuroses, a qual, nessa época, era orbitada pela hipótese da sedução. Nesse contexto o autor cria um aparato que faz uma mediação entre o corpo e as coisas do mundo, cuja ênfase gira em torno da relação organismo versus meio. A leitura do

Projeto revela a influência da teoria do trauma por um agente externo: Freud mostra-se

vinculado à concepção do trauma enquanto acontecimento real, vindo de fora, consoante com a etiologia da neurose. O curso de seu desenvolvimento teórico irá ser determinado pelo conhecimento do fluxo das excitações internas, ligadas às exigências vitais.

O modelo que Freud utiliza para a construção de seu aparelho neuronal é o do arco reflexo. No Projeto duas ideias centrais são desenvolvidas: a hipótese do neurônio – fundamento do ponto de vista tópico – e a noção da quantidade – fundamento do ponto de vista econômico. Na verdade O projeto corresponde a um modelo clínico, pois a obra se alimenta da experiência clínica freudiana. A noção de neurônio corresponde à noção de representação, enquanto a noção de quantidade equivale ao afeto. A noção da pulsão, ainda não definida no Projeto, abarcará o que Freud pensa de neurônio e de quantidade.

Do Projeto até a adoção da pulsão de vida como integrante do dualismo pulsional final, a biologia comparece de forma maciça nos textos freudianos. E até o fim

da vida Freud levanta a possibilidade dos avanços no campo biológico virem dar conta das lacunas de uma teoria puramente psicológica. A biologia é a marca de Fliess, principal interlocutor de Freud, e considerado “padrinho” da ideia de reunir numa síntese única, os campos psicológico e neurológico. “Se a noção de Q, a quantidade de energia submetida às leis do movimento, é a principal ponte do Projeto com as questões da física, os neurônios, partículas materiais, estruturas nervosas do aparelho, são sua ligação com a biologia, via fisiologia do cérebro” (Werneck, 1992, p.145). É Fliess quem fornece o subsídio teórico à base fisiológica das teses freudianas dispostas no

Projeto de 1895. Vimos que as teses constantes no Projeto decorrem de uma prática

clínica com as histéricas. É essa prática que confere a especificidade que se mantem no texto freudiano.

A intenção do texto é clara: “prover uma psicologia que seja ciência natural”, e dessa forma, “representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis”, o que deixa mais claro ainda a noção de uma economia regente do funcionamento dos processos psíquicos, muito embora seus elementos não estejam teorizados em sua totalidade no Projeto. Neurônio (N) e Quantidade (Q e Qn) serão os elementos dos quais Freud irá tratar.

Freud passa a discorrer sobre a concepção quantitativa, apresentada como primeiro teorema principal. Desde o início, a clínica freudiana revela algo relativo à intensidade, à excitabilidade determinante dos estados neuróticos com os quais tratava. A isso designou por princípio de constância, destinado a neutralizar a intensidade de excitação através da descarga, disposto no Projeto nos seguintes termos:

[...] pôde-se estabelecer um princípio básico da atividade neuronal em relação a Q... Esse princípio é o princípio da inércia neuronal: os neurônios tendem a se livrar de Q. A estrutura e o desenvolvimento, bem como as funções [dos neurônios], devem ser compreendidos com base nisso (FREUD, 1895, ESB, v.1, p.404; AE, v.1, p.340).

O princípio de inércia atua em parceria com o princípio de constância, ou seja, não atua sozinho. Se pelo princípio de inércia toda energia fosse descarregada não haveria energia para atender às exigências internas. Por isso no aparelho psíquico resta

certa quota de energia para essa finalidade. A redução da tensão a nível zero não é possível, somente intencionada, na medida em que existe outro princípio, o de constância, que assegura uma quota de energia. No Projeto a lei de constância aparece de forma secundária. Somente em 1920, em Além do princípio do prazer, Freud explicita, letra a letra, o princípio de constância como princípio independente. Em 1895, os princípios de inércia e de constância estão articulados a uma noção de suma importância para a psicanálise: a distinção entre processo primário e processo secundário.

No sentido tópico, Freud relaciona o processo primário ao sistema inconsciente e o processo secundário ao sistema pré-consciente. Em termos econômicos, a energia livre está ligada ao processo primário, enquanto a energia ligada encontra-se vinculada ao processo secundário. A análise que procede Freud acerca do sonho é o exemplo privilegiado de processo primário, tendo em vista a diminuição das necessidades orgânicas e também devido à redução da censura. O pensamento em vigília corresponde ao modo de funcionamento do processo secundário.

Do ponto de vista genético-temporal o processo secundário é o resultado de uma transformação sofrida pelo processo primário. Para Freud, o processo secundário é uma versão atenuada, camuflada do processo primário. A esse respeito escreve que:

Não pode haver dúvida de que o aparelho psíquico só atingiu sua perfeição atual após longo período de desenvolvimento. [...] a fim de chegar a um dispêndio mais eficaz da força psíquica, é necessário dar um alto à regressão antes que ela se torne completa, de maneira que não avance além da imagem mnemônica e seja capaz de buscar outros caminhos que finalmente a conduzam à desejada identidade perceptiva que está sendo estabelecida a partir do mundo externo (FREUD, 1895).

A citação dá a entender que originalmente ambos os processos primário e secundário eram indiferenciados. E também nos permite ler em suas entrelinhas o gérmen do que será nomeado por pulsão de morte, na medida em que a satisfação almejada é o nível zero de tensões, a satisfação plena. Nesse sentido parece que os

processos secundários cumprem uma função de retardo e de estabelecimento de vias mais longas e desviadas da satisfação direta.

Ainda na primeira parte do Projeto (1895) encontramos uma alusão à pulsão quando Freud fala de circunstâncias que alteram o princípio da inércia, tendo em vista o aumento de estímulos que acometem o sistema nervoso. Freud se refere aos “estímulos endógenos”, que se originam a partir daquilo que considera “grandes necessidades”: fome, respiração e sexualidade (Ibidem, p.405). Tais “estímulos endógenos” são os precursores das pulsões.

Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades [...]. Deles, ao contrário do que faz os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se; não pode empregar a Q deles para a fuga do estímulo. Eles cessam apenas mediante certas condições, que devem ser realizadas no mundo externo. Para efetuar essa ação (que merece ser qualificada de específica), requer um esforço que seja independente da Qn endógena e, em geral, maior, já que o indivíduo se acha sujeito a condições que podem ser descritas como as exigências da vida. Em consequência, o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, a reduzir o nível [da Qn] a zero). Precisa tolerar [a manutenção de] um acúmulo de Qn suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica. Mesmo assim, a maneira como realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste, modificada pelo empenho de manter a Qn no mais baixo nível possível e de se resguardar contra qualquer aumento da mesma – ou seja, mantê-la constante. Todas as funções do sistema nervoso podem ser compreendidas sob o aspecto das funções primária ou secundária impostas pelas exigências da vida (FREUD, 1990/1895, ESB, v.1, p.405-406; AE, v.1, p.341).

A citação traz elementos relativos à pulsão que serão definidos a partir de 1905, tais como a exigência de satisfação pulsional, força constante da pulsão, fonte endógena e alusão à repetição.

Em seguida, Freud apresenta o segundo teorema principal, aquele relativo a teoria do neurônio. O neurônio é concebido como suporte material do aparelho psíquico. Freud afirma que o sistema nervoso é constituído por unidades separadas, constituídos de forma semelhante, porém independente anatomicamente, mas ligados

por contiguidade, formando uma complexa rede de conexões. A quantidade (Q) é a energia que circula entre os neurônios, capaz de deslocamento e descarga. “A estrutura dos neurônios torna provável a localização de todas as resistências nos contatos [entre os neurônios], que desse modo funcionam como barreiras” (Freud, 1895, vol. 1, p. 407). A hipótese das barreiras de contato permite elucidações sobre a função da memória, no sentido da capacidade do sistema nervoso ser alterado permanentemente, contrariando a possibilidade de passagem da energia e retorno ao estado anterior. Então Freud distingue neurônio permeáveis (φ) e neurônios impermeáveis (Ψ). Os primeiros conduzem Qn, mas não a retém; os segundos são retentores de Qn. A permeabilidade e a impermeabilidade decorrem das resistências nas barreiras de contato. De modo que quanto maior a resistência nas barreiras de contato, maior a presença de neurônios retentores de energia, ou seja, de neurônios impermeáveis (Ψ). Os neurônios impermeáveis servem à memória e os neurônios permeáveis servem à percepção.

Esses neurônios (Ψ) ficam permanentemente alterados pela passagem de uma excitação. Se introduzirmos a teoria das barreiras de contato: as barreiras de contato deles ficam em estado permanentemente alterado. E como o conhecimento psicológico demonstra a existência de algo assim como um reaprender baseado na memória, essa alteração deve consistir em tornar as barreiras de contato mais capazes de condução, menos impermeáveis e, assim, mais semelhantes ao sistema φ (FREUD, 1990/1895, ESB, v.1, p.409; AE, v.1, p.344).

Significa que para que a percepção ocorra na fluidez que lhe é própria é necessário que o sistema neuronal permaneça inalterado a cada nova percepção, de modo que o sistema perceptivo se mantenha diferente do sistema de memória. Com isso Freud se refere à noção de Bahnung32: “a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios Ψ” (Idem).

O sistema φ (permeável) é destinado à recepção dos estímulos externos; o sistema Ψ (impermeável), às excitações endógenas. Mas o que faz com que um sistema seja retentor de Q e o outro não? Ambos os sistemas Ψ e φ possuem barreiras de

contato, de modo que não se pode atribuir às barreiras de contato a função da memória. Freud dá a solução para essa questão ao apontar para a estrutura e função do sistema nervoso, e não para a natureza dos sistemas permeável e impermeável. O principal a observar é que as barreiras de contato do sistema φ (permeável) permanecem inalteradas após a passagem de Qn. Por sua vez, as barreiras de contato do sistema Ψ (impermeável) são alteradas permanentemente após a passagem de Qn. As barreiras de φ não oferecem resistência à Qn, enquanto que as barreiras de Ψ oferecem resistência.

Para melhor conhecimento nosso, o sistema Ψ está fora de contato com o mundo externo; recebe apenas Q, por um lado, dos próprios neurônios φ e, por outro, dos elementos celulares no interior do corpo, tratando-se agora de determinar a probabilidade de que essas quantidades de estímulo sejam de ordem de magnitude comparativamente baixa. À primeira vista talvez pareça perturbador que devamos atribuir aos neurônios Ψ duas fontes de estímulo tão diversas comoφ e as células do interior do corpo; mas é justamente aqui que recebemos o apoio decisivo da recente histologia do sistema nervoso. Isso mostra que a terminação de um neurônio e a conexão entre os neurônios são constituídas da mesma forma e que os neurônios terminam uns nos outros do mesmo modo que os elementos somáticos; provavelmente, o caráter funcional de ambos os processos também é do mesmo tipo. É provável que as extremidades nervosas e no caso da condução intercelular sejam manejadas quantidades semelhantes. Também se pode esperar que os estímulos endógenos pertençam a essa mesma ordem de magnitude intercelular (FREUD, 1990/1895, ESB, v.1, p.415; AE, v.1, p.349).

Vinte e cinco anos depois, em Além do princípio de prazer (1920), Freud retoma a ideia de tela protetora referida na citação acima. O mundo externo é fonte de energia. O sistema φ (permeável) está mais suscetível a acometimento de Q, porque voltado para o mundo externo. Pela citação vimos que um neurônio termina em outro neurônio, protegido do contato direto com o mundo externo pelos órgãos dos sentidos, cuja função é a recepção dos estímulos oriundos do mundo externo, funcionando como tela protetora. Assim, o sistema φ está de certa forma mais protegido de invasões de Q. O mesmo não ocorre com o sistema Ψ (impermeável), o qual está em contato direto com a estimulação endógena, além das conexões com as Q exógenas de φ. No texto de 1920, Freud irá se referir a isso como a mola pulsional do mecanismo psíquico.

Esse córtex sensitivo, contudo, que posteriormente deve tornar-se o sistema Cs., também recebe excitações desde o interior. A situação do sistema, entre o exterior e o interior, e a diferença entre as condições que regem a recepção de excitações nos dois casos, têm um efeito decisivo sobre o funcionamento do sistema e de todo o aparelho mental. No sentido do exterior, acha-se resguardado contra os estímulos e as quantidades de excitação que sobre ele incidem possuem apenas efeito reduzido. No sentido do interior, não pode haver esse escudo; as excitações das camadas mais profundas estendem-se para o sistema diretamente e em quantidade não reduzida, até onde algumas de suas características dão origem a sentimentos da série prazer-desprazer. As excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em outros aspectos qualitativos – em sua amplitude, talvez -, são mais comensuradas com o método de funcionamento do sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo externo (FREUD, 1920, ESB, v.18, p.44; AE, v.18, p.28-29).

A excitação decorrente dos estímulos endógenos atua de forma constante, contrariamente às estimulações oriundas do mundo externo. A primeira consequência do acréscimo de Qn é um impulso (Drang) para a descarga. A excitação (Reiz) investe o sistema Ψ, impondo-lhe uma exigência de trabalho. Esse parece ser o sentido de “mola pulsional” a que Freud se refere no Projeto para uma psicologia científica.

Aqui, além disso, vislumbra-se uma tendência que bem poderia reger a construção do sistema nervoso a partir de diversos sistemas: uma tendência cada vez maior a manter a Qn afastada dos neurônios. Desse modo, a estrutura do sistema nervoso serviria à finalidade de afastar a Qn dos neurônios e sua função seria a de descarregá-la (FREUD, 1895, ESB, v.1, p.417; AE, v.1, p.350).

Freud assinala que os dispositivos de natureza biológica tendem a falhar quanto o limite de suportabilidade é ultrapassado. É o caso da dor, que consiste na irrupção de grandes Qn. Segundo o autor, a dor aciona ambos os sistemas Ψ e φ, constituindo o mais imperativo de todos os processos a serem descarregados.

Um terceiro sistema de neurônios (ω) é apresentado por Freud no Projeto: os perceptuais, os quais estão encarregados das sensações conscientes (Ibidem, p. 420). São encarregados da percepção e neles não há registro mnêmico. O autor presume que os neurônios ω sejam movidos por quantidades reduzidas de Qn, estando a sensação consciente ligada aos aspectos qualitativos, quando “as quantidades são tão excluídas quanto possível” – afirma (Idem). Os neurônios perceptuais também devem ser concebidos como catexizados e também requerem descarga, tais quais Ψ e φ. Os processos ω implicam em consciência; enquanto os processos Ψ são inconscientes, adquirindo uma espécie de consciência secundária após se ligarem a processos de descarga e percepção. É importante lembrar que nesse período “consciente” e “inconsciente” são termos usados adjetivamente por Freud, diferentemente do que será, num futuro próximo, enquadrado em sistema consciente e sistema inconsciente.

Ao longo do texto Freud ratifica o pressuposto inicial que alude a uma via direta entre os estímulos endógenos e os neurônios Ψ. Assim sendo, o sistema Ψ está exposto, desprotegido quanto às Q provenientes do interior do corpo, “e nesse fato se assenta a mola mestra do mecanismo psíquico” (Ibidem, p. 428). Vimos que, em 1920, o tema da falta de um escudo protetor voltado para o interior terá pauta privilegiada em Além do

princípio de prazer. Aqui no Projeto, de forma precisa, Freud antecipa suas