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O SEGUNDO DUALISMO PULSIONAL

3.1. Sabina Spielrein e a pulsão de morte

3.1.3. Bastidores históricos

Die Destruktion Als Des Erdens (1912) integra um dos três principais textos

produzidos por Sabina Spielrein. Nele, a autora faz uso da expressão “pulsão de morte” antes do emprego por Sigmund Freud. De acordo com Carotenuto (1984) e Cromberg (2008), a autora o escreve em 1911, mas de acordo com Covington e Wharton (2003) o texto foi escrito entre 1906 e 1907, quando contava com apenas 22-23 anos, afirmação sustentada pela publicação de extratos inéditos do diário em alemão de Spielrein.

Antes de sua publicação em 1912 no Jahrbuch, ela o envia a Jung, seu principal interlocutor, o qual retarda a publicação de seu texto por seis meses, provavelmente para que a segunda parte de Metamorfose e símbolos da libido (1912), de sua autoria de, fosse publicada. Cromberg (2008) é partidária da ideia de que Jung retarda intencionalmente a publicação do texto de Spielrein na tentativa de controlá-lo e corrigi-lo. Aquela era uma época de edificação da psicanálise, cujas discussões teóricas eram ferrenhas entre Freud e seus discípulos. As diferenças conceituais entre Freud e Jung começavam a ficar mais evidentes e iriam desaguar na ruptura definitiva. Autores como Cromberg (2008) são da opinião de que o exemplar de número três do Jahrbuch für

Psychopatologische und Psychoanalystische Forschungen é um documento histórico.

Nele, Freud publica suas Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um

caso de paranoia (dementia paranoides [1911]), conhecido como “o caso Schereber” e

Rank lança seu texto sobre o narcisismo, além da publicação da segunda parte do texto de Jung, já citada.

Em setembro de 1910, no dia seguinte ao nascimento da filha de Jung, Spielrein tem um encontro com ele e escreve em seu diário:

Devíamos começar o trabalho e, em vez disso, falamos da pulsão sexual/pulsão de morte, da representação do duplo pensamento na forma da morte, das teorias da Dementia Praecox, do mundo dos antepassados. [...] Encorajou-me a escrever o novo trabalho sobre a pulsão de morte, mas disse-lhe que devia antes terminar o meu último trabalho. Amanhã estarei de novo com ele e nos propusemos permanecer no trabalho. O meu único desejo é, no

momento, permanecermos ‘amigos’ também amanhã (CAROTENUTO, 1984, p.208).

Em 19 de outubro de 1910, Spielrein escreve:

Em segredo, esboça-se dentro de mim o trabalho sobre “a pulsão de morte”, que, nos primeiros momentos de desespero, queria abandonar e, depois, a ideia de quanto é justificado o processo de destruição que está na base da Dementia Praecox (CAROTENUTO, 1984, p. 216).

A destruição como causa do devir (1912) é escrito em meio a intensa relação

amorosa com Jung. Em 24 de outubro de 1910, Spielrein escreve em seu diário:

Devo por algo na cabeça para que a paixão que sinto por ele não me torne febril! Oh, meu Deus, pelo menos à noite quero ter paz para poder finalmente reunir a força necessária para eu iniciar o meu novo trabalho ‘sobre a pulsão de morte’! (CAROTENUTO, 1984, p.219).

Em 26 de novembro de 1910, Spielrein registra em seu diário o medo de ser plagiada por Jung. Ela escreve em seu diário:

Dentro em breve, também eu estarei na vigília do grande acontecimento, e penso nas palavras que meu amigo escreveu com a maior seriedade: “Hoje é um dia particularmente solene: a véspera do meu exame final. Espero com calma, mas minha alma está muito tensa”. Sim, era um momento belíssimo. E eu? Também para mim o exame é um momento tão solene? Devo admitir que não sei o que sinto realmente. Para mim, o exame é um mal necessário. Os meus pensamentos devem estar alhures, longe... e me oprime o difícil ‘depois’. Sim, a primeira meta que quero conseguir é um lugar na associação psicanalítica, graças ao trabalho que estou fazendo agora [a tese de psiquiatria sobre esquizofrenia], e que espero esteja à altura. Mas, para mim, é mais importante o segundo trabalho: “sobre a pulsão de morte”. Devo admitir que tenho muito medo de que o meu amigo, que queria se referir a esta minha ideia em seu trabalho de julho, mencionando a minha prioridade a respeito, tenha agora, ao contrário, se apropriado do desenvolvimento do meu pensamento, já que tem a intenção de lhe fazer referência em seu trabalho de janeiro [As metamorfoses da libido]. Por que sinto em mim esta desconfiança

sem motivo? Gostaria muito que fosse infundada, porque meu segundo trabalho será dedicado ao meu estimadíssimo professor, etc. Como poderia estimar uma pessoa que mente, que rouba minhas ideias, que não é amigo, mas somente um mesquinho rival sem escrúpulos? Amá-lo? Mas o amo! O meu trabalho está cheio de amor! Amo-o e o odeio, porque não me pertence. Não posso ficar em sua frente como uma tolinha estúpida! Não, lá no alto, orgulhosa e estimada por todos! Devo ser digna dele e o pensamento que criei deve estar ligado a meu nome [...] (CAROTENUTO, 1984, p 221-222).

Em 29 de novembro de 1911, Sabina Spielrein apresenta na Bergasse 19 A

destruição como causa do devir para a plateia presente naquela quarta-feira. Na

verdade, o material apresentado foi intitulado “Sobre a transformação”. Freud o comenta numa carta a Jung. Jung responde que o texto da jovem russa é uma produção autônoma e que o material precisava de uma revisão para que pudesse ser publicado no

Jarbuch. (Op. Cit. Carotenuto, 1984). No início de 1912 o texto segue para publicação.

Spielrein temia o plágio de Jung. Em 14 de junho de 1912, Freud lhe escreve:

[...] Tudo que me escreve sobre si mesma me interessa bastante, mesmo que não seja novo. Depois de nossa conversa sobre o problema, eu faço minha sem reservas vossa concepção da prioridade em questão. O germe desta ideia se encontra certamente nos nossos primeiros trabalhos; e se quiséssemos ser rigorosos, se deveria encontrar uma clara apreensão dessa ideia no Trauma e mito, de Abraham. Jung deve ter esquecido esta passagem quando você lhe ditou as frases da conferência, e eu também quando escrevi estas notas na Imago65. No conjunto, essa questão de prioridade não é importante. No mês de outubro, eu esperarei uma decisão sua quanto à sua vinda a Viena bem como à revisão de sua dependência de Jung. Eu vos agradeço muito por aquilo que dissestes inteligentemente a Jung; à parte isso, ele não poupa esforços em agravar (...) [palavra ilegível] até a ruptura (GUIBAL; NOBÉCOURT, 1981, p. 211-212).

65 Imago: Revista criada por Sigmund Freud em 1912 e dirigida por ele, juntamente com Hanns Sachs e Otto Rank. O título foi tomado de empréstimo ao romance publicado em 1906 pelo escritor suíço Carl Spittler (1845‐1924), Prêmio Nobel de literatura de 1919 (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 372).

Em 20 de janeiro de 1913, Freud escreve a Spielrein e lhe informa sobre uma resenha de seu texto elaborada por Federn66. Nessa mesma carta, lhe comunica o rompimento definitivo com Jung.

Meu relacionamento pessoal com seu herói germânico rompeu-se em definitivo. Ele se comportou muito mal. Desde que você me enviou aquela primeira carta, minha opinião a respeito dele mudou muito. A cooperação científica, no entanto, presumivelmente será mantida. [...]. O primeiro número do Zeitschrift67, uma prova do qual está diante de mim agora, traz uma resenha de sua última colaboração mais extensa. Tomamos a liberdade de criticá-la com franqueza, conforme o pessoal de Zurique nos pediu expressamente. Não fique zangada e encare-a com indulgência (KERR, 1997, p.478).

A resenha elaborada por Federn não leva em conta as ideias prevalentes do texto de Spielrein. A autora redefine o desejo sexual como problemático para o eu, salienta a presença de representações de morte e destruição na neurose e na psicose, elucida a questão da regressão na esquizofrenia e, fundamentalmente, ela faz protagonizar a questão da repressão no desejo sexual. Esses são os aspectos principais defendidos por Spielrein, os quais não aparecem na resenha de Federn. Por isso mesmo, Kerr (1997) afirma que se trata de uma encomenda depreciativa e equivocada do texto de Sabina. O discípulo freudiano dá a entender que Spielrein se limitava a provar que a destrutividade era componente indispensável à sexualidade e, na rota de sua resenha, Federn avalia o trabalho como um tratado esquisito do sadomasoquismo.

No final da resenha Federn, muda de opinião, passando da crítica depreciativa para elogios que não se encaixam com seu pensamento inicial. Há suspeitas de que as palavras finais tenham sido introduzidas por outra pessoa, não nomeada, defende Kerr (1997): “sem considerar sua verdade objetiva, o artigo, graças à sensibilidade da autora quanto aos relacionamentos emocionais, me parece também uma contribuição para a

66 Paul Federn (1871‐1950), psiquiatra e psicanalista americano, analisado por Freud, foi o quinta membro a se filiar à Sociedade Psicanalítica de Viena. Teve papel muito importante nas reuniões das quartas feira, considerado como um de seus pilares, atuando como formador de alunos. É considerado um freudiano ortodoxo e assim se manteve até o final de seus dias (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 228‐ 230).

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análise da modalidade mística de pensamento que é tão importante para a humanidade” (Ibidem). Kerr afirma que alguém em Viena havia percebido como se harmonizavam o texto de Spielrein com a segunda parte de Transformações e símbolos da libido, de Jung. O artigo de Spielrein era fortemente influenciado por Jung. Na medida em que as divergências entre Freud e Jung foram se acentuando é plausível prever o destino de Sabina. Em 9 de fevereiro de 1913, Freud lhe responde: “você já fez um bom trabalho sério e importante e tem todo o direito de parar por um tempo e recompor seus pensamentos” (Kerr, 1997, p.480). Cromberg (2008, p.209) escreve que Sabina não viveu a rejeição de seu trabalho a partir da resenha de Federn, na medida em que ela nada registra a esse respeito em seu diário.