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Historiadores, autores contemporâneos e Sabina Spielrein

O SEGUNDO DUALISMO PULSIONAL

3.1. Sabina Spielrein e a pulsão de morte

3.1.2. Historiadores, autores contemporâneos e Sabina Spielrein

O esquecimento de Sabina Spielrein na história do movimento psicanalítico até 1922 suscita indagações e provoca o interesse em saber por que ela esteve ausente e não citada em obras consideradas fundamentais para a psicanálise. O interesse por Spielrein encontra amparo na nota de rodapé que Freud lhe reserva em Além do princípio de

prazer (1920), na qual reconhece o empreendimento de Spielrein na investigação de

componentes destrutivos da pulsão sexual. Os grandes biógrafos de Freud, como Jones, Roazen e Schur não fazem nenhuma referência a Spielrein; apenas Gay reserva uma breve menção a autora russa.

[...] “Por que nós próprios”, indagou-se mais tarde, ao olhar para esses anos, “precisamos de tanto tempo antes de decidirmos reconhecer uma pulsão agressiva?”. Um pouco pesaroso, ele evocou sua própria recusa defensiva de tal pulsão, quando a ideia surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e “o quanto demorou até que eu me tornasse receptivo a ela”. Freud estava pensando numa apresentação da brilhante analista russa Sabina Spielrein, nos dias pioneiros de 1911, numa das reuniões das quartas feiras à noite, na Bergasse 19, e também no artigo pioneiro dela, do ano seguinte, intitulado “A destruição como causa do devir”. Naqueles anos, Freud simplesmente não estava preparado (GAY, 1989, p. 364).

Obras de grande envergadura, como a de Grinstein, igualmente mantém Spielrein ausente. Em Lacan, não encontramos nenhuma referência a ela. Roudinesco, em Généalogies (1994), nas referências que faz à psicanálise ano a ano, de 1856 a 1991, incorpora os fatos que envolvem Spielrein no movimento psicanalítico, a partir das informações que foram surgindo com Carotenuto, analista jungiano. Spielrein também aparece no Dicionário de psicanálise (1998), de autoria de Roudinesco e Plon. Os autores afirmam que Sabina Spielrein “tornou-se a testemunha privilegiada da ruptura entre Freud e Jung. Um foi seu amante e analista, outro seria seu mestre. Mais tarde,

inventou a noção de pulsão destrutiva e sádica, da qual nasceria a pulsão de morte” (Roudinesco e Plon, 1998, p.725).

Em 1974, Aldo Carotenuto havia organizado um seminário para profissionais filiados à Associação Italiana para o Estudo da Psicologia Analítica. A partir da leitura da correspondência entre Freud e Jung, Carotenuto sente-se instigado pelo “caso clínico” citado por Jung na quarta carta à Freud. “Tratava-se de Sabina Spielrein, com quem Jung teria tido a experiência fundamental do fenômeno transferência/contratransferência” (Carotenuto, 1984, p.10). Decorrente do seminário, Carotenuto publica um livro em 1977, o qual foi lido por Carlos Trombeta, professor universitário de psicopedagogia, o qual já havia se deparado com o nome de Spielrein em pesquisas históricas sobre Claparède. Trombeta endereça o livro ao Professor George De Morsier, de Genebra, o qual o informa de que haviam sido encontrados documentos nos porões do Palais Wilson57, aparentemente relacionados a Jung, Freud e Spielrein. O achado arqueológico foi enviado para Carotenuto.

Com efeito, os documentos continham a correspondência autógrafa entre Sabina Spielrein e Jung, 46 cartas de Jung e 12 de Sabina; a correspondência entre Sabina e Freud, 21 cartas de Freud e 2 de Sabina; o diário de Sabina Spielrein entre 1909 a 1912; e, além disso, cartas de Bleuler, Rank, Stekel e pessoas menos conhecidas (CAROTENUTO, 1984, p. 11).

As pesquisas para compor uma biografia de Sabina Spielrein é um trabalho que ainda se faz. Após o trabalho de Carotenuto (1977), registros hospitalares de Spielrein no Burghölzli, estão dispostos no livro organizado por Covington e Wharton, em cujo livro estão publicados trechos não editados do diário de Sabina, as cartas de Jung a ela, além de artigos de vários comentadores.

O título do texto freudiano de 1920, Além do princípio de prazer, contém uma implicação filosófica irônica, uma vez que o uso literário da palavra Jenseits58 é usado

57 Antigo hotel na Suíça, Genebra, construído entre 1873‐75, originalmente denominado de Hotel Nacional. Em 1924, recebe o nome de Palácio Wilson em homenagem ao presidente americano Woodrow Wilson que teve um papel preponderante na criação, depois da II Guerra Mundial, da Liga das Nações (LDN) durante a Conferência de Paz de Paris em 1919. Atualmente é a sede do United Nations High Commissioner for Human Rights em Genebra

na língua alemã para indicar algo de natureza espiritual, além da existência comum, frequentemente empregado para designar algo de outra ordem, “um outro mundo”. Kerr (1977, p.532) assinala que “a filosofia idealista alemã costumava sustentar que exatamente esse anseio – o de voltar ao Paraíso, antes da expulsão de Adão e Eva – impelia o homem para cima e para frente de forma inexorável – ao novo Paraíso do espírito perfeito”. Na verdade, a leitura minuciosa do texto freudiano nos permite afirmar que não é disso que se trata, pois o que o criador da psicanálise afirma é o movimento do sujeito dirigido a estados anteriores, movimento esse que revela que esse “além” coincide com o “antes” e, portanto, ambos estão relacionados com a morte.

Freud nunca abandona essa teoria e aferra-se de forma inflexível a ela. Além do

princípio de prazer (1920) passa em revista o pensamento freudiano acerca das pulsões

e promulga uma concepção teórica da libido. O autor toma todos os aspectos inerentes às questões da sexualidade – a natureza conservadora, a tendência à fixação, a regressão – e vai além delas, ao levantar a bandeira de que a verdade mais profunda da vida psíquica é a pulsão de morte, de modo que qualquer sucesso ou insucesso terapêutico está relacionado com essa categoria conceitual.

Mas, onde entra Sabina Spielrein na construção da teoria pulsional de Freud? Em 1912, é publicado o texto A destruição como causa do devir e nele a autora usa a expressão “pulsão de morte” antes de sua utilização por Freud. Além do princípio de

prazer (1920) traz a seguinte referência a Spielrein:

Em um trabalho muito rico de ideias, ainda que para mim não todo transparente, empreende Sabina Spielrein (1912) uma parte desta investigação e qualifica de destruidores os componentes sádicos da pulsão sexual. De um modo distinto tentou A. Starcke (1914) identificar o conceito de libido com o que teoricamente há de supor de um impulso à morte. Todos estes esforços mostram o impulso em direção a um esclarecimento ainda não alcançado da teoria das pulsões (FREUD, 1920, ESB, v.18, nota 2, p. 75; AE, v.18, nota 22, p.53).

De acordo com Kerr (1977), a citação freudiana camufla ironias dirigidas a Jung e aos suíços. Em sua opinião, Spielrein “não havia defendido nenhum tipo de masoquismo primário; [...] e muito menos havia “antecipado” de forma alguma a ideia de uma pulsão de morte” (Ibidem). Para o autor, ela apenas destacou que a sexualidade

tinha aspectos destrutivos, o que está bem distante da concepção freudiana sobre a pulsão de morte.

Por coisas do destino, a citação de Freud se tornou a base da reputação de Spielrein, a tal ponto dela ser reconhecida por alguns autores como a antecipadora do conceito de pulsão de morte – o que constitui um erro, segundo o ponto de vista de Kerr (1977).

A filiação de Spielrein e Stärcke59 junto à Sociedade Psicanalítica de Viena ocorreu na mesma noite. As teorias de ambos os autores possuem muitos pontos de vista semelhantes. Stärcke, assim como Spielrein, identificou um componente destrutivo na sexualidade. Para o psiquiatra holandês, “as pulsões do eu eram de natureza centrípeta – procuravam preservar e prolongar a vida. Em oposição a eles, havia as pulsões de procriação, de natureza centrífuga, levando em última análise à renúncia e à morte” (Kerr, 1977, p.533). Os dois autores identificaram um componente destrutivo na sexualidade, mas isso não abarca e tampouco encerra a teoria da pulsão de morte construída por Freud.

Kerr (1977) afirma que A destruição como causa do devir “procura resolver o problema da repressão sexual recorrendo à descrição da sexualidade como inerentemente ambivalente com relação ao eu. De acordo com o autor, não existe “pulsão de morte” ali, nem a expressão, nem a ideia – no sentido que Freud lhe empresta – são mencionadas ali” (Ibidem, p.534). A avaliação de Kerr é que o texto reflete a vida pessoal de Sabina, desde seus personagens parentais da infância até seu caso amoroso com Jung. Embora Kerr proceda a tais afirmações, a análise que procedemos do texto A destruição como causa do devir (1912) revela um equívoco por parte do autor, pois, nos parágrafos finais de seu texto, Spielrein faz uso da expressão ‘pulsão de morte’, conforme será mostrado adiante.

Marthe Robert (1991) ressalta que a psicanálise revelou ao mundo o fenômeno da ambivalência no qual amor e ódio andam em parceria. Desse fenômeno, Adler60

59 August Starcke (1888‐1954), psiquiatra holandês, se filiou à Sociedade de Viena na mesma noite que Spielrein. Traduziu a obra de Freud para o neerlandês. Usou amplamente as ideias de Ferenczi para desenvolver suas ideias sobre o eu e sobre a repetição. Ao longo de sua correspondência com Freud, expressou sua discordância sobre a concepção da pulsão de mote. Nunca foi analisado (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.727).

60 Alfred Adler (1870‐1937), Médico e psicólogo austríaco, primeiro grande dissidente do movimento psicanalítico, fundou a Escola de Psicologia Individual, frequentou as reuniões das quartas feiras, mas

(1907) extrai sua teoria da agressividade e Stekel61 (1909) lança mão de um termo nunca antes utilizado, Thanatos, para designar os desejos de morte que comparecem nos sonhos. Robert defende que Spielrein62, em 1912, antecipa a concepção da pulsão de morte “quase ponto por ponto” (Robert, 1991, p. 273). Para a autora, a ideia que Freud refutou por ocasião da apresentação de Spielrein em 1911 foi por ele adotada em 1920. Afirma, ainda, que aquilo que Freud duvidara se torna uma certeza confessada no Mal

estar na civilização (1930), conforme consta em seu texto:

A hipótese da pulsão de morte ou de destruição encontrou resistência até entre os melhores psicanalistas. Sei como está espalhada a tendência para atribuir preferencialmente tudo o que se descobre de perigoso e de odioso no amor a uma bipolaridade original que seria à sua própria natureza. A princípio, não defendi senão a título de ensaio as concepções aqui desenvolvidas; mas com o tempo impuseram-se-me com tanta força que já não posso pensar de outra forma. Pretendo dizer que, do ponto de vista teórico, são incomparavelmente mais frutíferas que quaisquer outras. Sem desprezar ou forçar os fatos, vêm assegurar a simplificação para que tendemos no nosso trabalho científico. Reconheço que vimos sempre no sadismo e no masoquismo manifestações, fortemente impregnadas de erotismo, de uma pulsão de destruição voltada para o exterior ou para o interior; mas já não posso compreender que tenhamos sidos cegos à

nunca aderiu às teses freudianas. O rompimento entre Adler e Freud foi violento e devido a divergências teóricas insustentáveis para Freud (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 6‐8).

61

Wilhelm Stekel (1868‐1940), médico e psicanalista austríaco, foi o quarto membro fundador da Sociedade Psicológica das Quartas feiras e, depois de Adler, o segundo dissidente do movimento psicanalítico. Em 1895 publicou um trabalho que chamou a atenção de Freud, no qual abordava experiências sexuais precoces de crianças. Em 1902, após ler A interpretação dos Sonhos (1900), torna‐ se discípulo de Freud. Em 1908, seu trabalho Os estados de angústia nervosa e seu tratamento foi prefaciado por Freud. Stekel produzia muitas obras e foi o primeiro a usar o termo Thanatos. Foi acusado pelos discípulos de Freud de inventar casos para justificar suas hipóteses. Afasta‐se da Sociedade Psicanalítica de Viena em 1912, ano da publicação do texto de Spielrein. Acusou Freud de ter roubado suas ideias a respeito da pulsão de morte. Tenta retornar posteriormente à Sociedade, mas Freud lhe recusa a entrada. Em 1923, solidariza‐se a Freud por ocasião da descoberta do câncer. Apesar de sua exclusão, continuou adepto da psicanálise até o fim de sua vida (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 728‐9).

62 Sabina Spielrein apresentou A destruição como causa do devir, oralmente, numa reunião das quartas feira, cujo texto fora intitulado “Sobre a transformação”. A publicação do texto que faz alusão à pulsão de morte se deu somente em 1912, conforme decidido por Jung, o qual tinha interesse que a segunda parte de seu Símbolos e transformação da libido fosse publicado antes do texto de Spielrein.

ubiquidade da agressão e da destruição não eróticas e deixado de lhes conceber o lugar que merecem na nossa interpretação da vida (é certo que a sede de destruição voltada para dentro escapa em grande parte à nossa percepção sempre que não é imbuída de erotismo)” (FREUD, 1930, APUD ROBERT, 1964, p.274).

Robert (1991) reconhece Sabina Spielrein como antecipadora da concepção de pulsão de morte e assinala que Freud ratifica essa ideia ao escrever no Mal estar na

civilização (1930) a seguinte passagem:

Recordo-me de minha própria resistência à concepção de uma pulsão de destruição quando ela apareceu na literatura psicanalítica e de que a ela me mantive muito tempo inacessível. Por isso me surpreende pouco que os outros tenham manifestado e manifestem ainda idêntica repugnância. É claro que os que preferem contos de fadas fazem-se surdos sempre que lhes falam da tendência inata do homem para a malvadeza, para a agressão, para a destruição e portanto para a crueldade (FREUD, 1930, APUD ROBERT, 1964, p. 274).

Robert (1991) sustenta a ideia de que Freud se manteve resistente e inacessível à ideia apresentada por Spielrein (1912) para depois reconhecer a impossibilidade de permanecer cego ao mal que habita o homem.

Roudinesco (1998, p.725), psicanalista e historiadora, destaca que Sabina Nicolaievna Spielrein adquiriu posto semelhante na história da psicanálise ao de Bertha Pappeheim63 e de Ida Bauer64 devido à singularidade de sua história e por ter sido testemunha privilegiada do rompimento entre Freud e Jung. Em sua opinião, as ideias de Spielrein sobre a pulsão de destruição iriam apenas inspirar Freud na escrita de Além

do princípio de prazer (1920).

63 Bertha Pappenheim (1860‐1936), nascida em Viena, foi analisada por Breuer entre julho de 1880 e junho de 1882 e o relato do seu caso consta nos Estudos sobre a histeria (1893‐1895), como “O caso Anna O”. Ela compõe um dos mitos fundadores da psicanálise e é a partir de seu tratamento que surgiu a expressão talking cure (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 568‐572).

64 Ida Bauer constitui o primeiro grande caso analisado por Freud e consta nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) como o famoso “caso Dora”. Através da análise de Dora Freud validou suas concepções acerca da neurose (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.50‐54).

René Kaës (2000) afirma que Sabina Spielrein introduz o conceito de pulsão de morte, na medida em que ela revela o componente da morte presente na pulsão sexual como indispensável ao processo do devir.

Chambrier (2002) afirma que as afirmações de Robert (1991) são precipitadas na medida em que não levam em conta e não fazem justiça nem ao gênio, nem ao rigor de Sigmund Freud.

Como vimos, Freud faz somente uma referência nomeada a Sabina Spielrein, disposta na nota de rodapé de Além do princípio de prazer (1920), e outras três alusões ao trabalho da autora russa: duas referências no Mal estar na civilização (1930), já citadas, e outra em 1940 [1938], no Esboço de Psicanálise, capítulo II, intitulado “A teoria das pulsões”, onde registra:

Depois de muito hesitar e vacilar, decidimos presumir a existência de apenas duas pulsões básicas, Eros e a pulsão de destruição. (O contraste entre as pulsões de autopreservação e a preservação da espécie, assim como o contraste entre o amor do eu e o amor objetal, incidem dentro de Eros). O objetivo da primeira dessas pulsões básicas é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las – em resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso da pulsão de destruição, podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão, chamamo-la também de pulsão de morte (FREUD, 1940[1938], v.23, p. 173; AE, v.23, p.146).

Cromberg (2008) defende a hipótese de que Freud reconhece a precedência e importância das concepções de Spielrein e que, a partir disso, é dado início ao processo de esquecimento da precursora do conceito de pulsão de morte. Em sua opinião, a nota de rodapé de Além do princípio de prazer (1920) ratifica a precedência de Spielrein, mas também aponta para as resistências e incompreensões em torno de sua produção.

Um dos principais aspectos apontados por Spielrein em seu texto é o fato de que a morte é necessária para a criação da nova vida, que a afirmação causa negação e que a transformação é o resultado da destruição. A posição de Spielrein sugere um dinamismo ativo em jogo no tema que questiona a própria perspectiva de Freud, do psiquismo impelido pelo desejo de tranquilidade e inércia. O que impulsiona a transformação e a construção

(criação), diz Spielrein, é a pulsão de destruição (CROMBERG, 2008, p.213).