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Variantes evolucionistas do conceito de pulsão

O PRIMEIRO DUALISMO PULSIONAL

2.4. Variantes evolucionistas do conceito de pulsão

“Muita luz será lançada sobre a origem do homem e sua história” (Charles Darwin, 1859)

A influência da teoria de Darwin sobre Freud tem início antes mesmo de sua profissionalização. Movido por um espírito investigativo, tal qual Darwin, Freud

ansiava pelo conhecimento da natureza humana. Freud deixa registrado que as teorias de Darwin atraíram-no fortemente, “pois ofereciam esperanças de extraordinário progresso em nossa compreensão do mundo” (Freud, 1990/1924, p. 20). Darwin consta dentre as influências nomeadas por Freud. Tais influências iniciaram no Gymnasium, entre os anos de 1865 e 1873. Em 1927, Freud considera o estudo da evolução essencial para a formação dos analistas. Desde a juventude Freud percebeu o segredo para se tornar um grande homem, bem como o árduo caminho que teria que percorrer. “Poder, prestígio, riqueza chegariam a ele apenas como decorrência do fato de ele ser um grande cientista” (Jones, 1989, vol. 1, p. 43). Na vida que escolheu a força de nada lhe serviu para obter poder, mas a compreensão aplicada ao comportamento humano serviu de ferramenta para suas intenções. Mas, para isso, pensava Freud, era preciso “aprender algo sobre a natureza, a posição do homem na natureza e a constituição física do homem”, ratificando que foi Darwin quem lhe apontou o caminho (Jones, idem).

Entre os anos de1870 a 1880, o interesse pela obra de Darwin estava em alta por toda a Europa. O grande diferencial a ser destacado é a forma como Freud se comporta como cientista. Investigador rigoroso, a despeito de uma controvérsia ou perturbação, tal qual Darwin, responde às críticas em todos os momentos de sua edificação teórica com a inabalável continuidade de suas pesquisas. Ao longo de toda a vida dificilmente Freud se dispôs ou dedicou seu tempo às controvérsias. “Não tinha muito desejo de influenciar seus semelhantes. Oferecia-lhes algo de valor, mas sem qualquer desejo de impor-lhes isso. Não lhe agradavam os debates, nem mesmo as discussões científicas públicas” (Jones, Ibidem, p. 44).

Darwin revolucionou a biologia de seu tempo. Originalmente a biologia era o campo de interesse de Freud. Depois a abandonou, mas continuou a basear seu trabalho nela. Em 1937, em Análise terminável e interminável, Freud chama a atenção para os fatores de natureza fisiológica e biológica, insuscetíveis às influências psíquicas, fazendo uma analogia com a força constituinte da pulsão em contraste com a fraqueza do eu. Darwin simbolizava a dimensão biológica, concedendo-a o papel de agente capaz de atuar sem reserva ou sujeição temporal.

A principal influência de Darwin no pensamento freudiano pode ser discernida quanto à abordagem histórica do desenvolvimento e da evolução. Em seus textos, Freud

se refere a Darwin cerca de vinte vezes (Ritvo, 1992), desde sua correspondência com Silberstein, que durou de 1871 a 1881, até Moisés e o monoteísmo, escrito em 1939.

As referências a Darwin são sempre positivas. Para o criador da psicanálise, Darwin era “o grande Darwin”. Em 9 de setembro de 1875, após visita a parentes em Manchester, Inglaterra, escreve a seu amigo Silberstein:

Quanto a livros, trago poucos comigo; mas as relações que travei com livros científicos ingleses vão me levar, nos meus estudos, a ficar sempre do lado dos ingleses, que agora passam a gozar, de minha parte, um preconceito extremamente favorável: Tyndall, Huxley, Lyell, Darwin, Thompson, Lockyer, entre outros (FREUD, 1875/1995, Carta, 54, p. 148).

Ainda na Carta 54 escrita a Silberstein, deixa registrado o desejo de ter “um laboratório e tempo livre, ou um navio no oceano com todos os instrumentos de que precisa o pesquisador” (idem). Certamente essa fantasia do jovem Freud traz reminiscências de seu admirado Darwin, que passara fecundos anos no Beagle. As referências à Darwin têm essa natureza idealizada e livre de ambivalência.

Ao longo da segunda metade do século XIX, desenvolvimento e evolução eram palavras em voga, e ambas eram expressas em alemão pelo mesmo termo –

Entwicklungsgeschichte. Em 1862, Heinrich Haeckel defende a teoria da evolução das

espécies de Darwin, colocada pela primeira vez no fórum de ciência alemã. Biólogo e filósofo na Universidade de Iena entre 1862 e 1909, Haeckel torna-se um cuidadoso divulgador da teoria de Darwin, defendendo que a abordagem darwiniana da origem das espécies era a chave para a solução dos problemas do mundo. Afirma que é preciso conhecer os processos de evolução e transformação para poder dizer algo da espécie. Freud se vale da abordagem histórica como a chave para a solução da neurose, constituindo uma premissa básica para a teoria psicanalítica, fornecendo, por essa via, um dos quatro grandes pontos de vista metapsicológicos – o genético ou darwiniano. Desde essa época, o passado histórico é tratado como condição sine qua non para a compreensão do presente.

Após o retorno de Manchester, Inglaterra, em 1875, já citado, Freud inicia trabalho no laboratório de Carl Clauss, chefe do Instituto de Anatomia Comparada na Universidade de Viena. Clauss era um divulgador da teoria de Darwin e concede a Freud a oportunidade de realizar pesquisas no laboratório sob sua responsabilidade. Em Trieste, cidade situada a nordeste da Itália, inicia a tarefa determinada por seu professor: verificar a recente afirmação de um pesquisador polonês, Simone de Syrski, sobre gônadas em enguias. “Era uma descoberta assombrosa – se pudesse ser comprovada”, registra Freud em seu relatório (Gay, 1989, p. 46), pois mostraria como infundada a ideia tradicional da enguia como um animal hermafrodita. O estudo com as enguias ensinou a Freud que o empreendimento de uma pesquisa requer observação paciente e rigorosa, “o tipo de atenção concentrada que mais tarde julgaria indispensável ao ouvir seus pacientes (Gay, Idem).

Ernest Brücke será o próximo mentor de Freud. Trabalhando no laboratório de fisiologia de Brücke afirma ter encontrado sossego e satisfação. Brücke era o mais iminente representante do positivismo em Viena e proporcionou a Freud o ideal de autodisciplina profissional. Foi graças a uma recomendação de Brücke que Freud conseguiu uma bolsa para estudar com Charcot, em Paris, de outubro de 1885 a fevereiro de 1886.

A França não adotou a obra de Darwin da mesma forma que a Alemanha. Os cientistas franceses se revelavam indiferentes às teorias darwinianas. Como pondera Peter Gay,

No início dos anos 1870, embora tivesse granjeado muitos adeptos importantes, a teoria da seleção natural se mantinha controversa; o perfume inebriante de uma inovação sensacional e perigosa ainda se apegava a ela. Darwin se encarrega de situar solidamente o homem no reino animal e arriscara-se a explicar seu surgimento, sobrevivência e desenvolvimento diferenciado a partir de razões totalmente seculares; as causas que operavam para efetuar transformações na ordem natural dos seres vivos, que Darwin difundira perante um mundo estupefato, não precisavam se remeter a uma divindade, por mais remota que fosse. Tudo era obra do entrechoque de forças cegas e profanas (GAY, 1989, p.49).

Em 1859, Darwin escreve A origem das espécies, que, no futuro distante, outras pesquisas tomarão rumo a partir da sua, e a psicanálise se baseará no fundamento da gradativa aquisição das faculdades mentais, tal como se verifica na teoria da neurose.

Em 1872, em seu último livro A expressão das emoções no homem e nos

animais, Darwin publica detalhadas observações que terão posteriormente influencia

sobre Freud. No livro, Darwin postula princípios capazes de explicar a expressão das emoções: hábito associado útil, antítese e o transbordamento de excitação excessiva. Freud usa de forma mais clara tais princípios darwinianos nos Estudos sobre histeria (1893-95), quando se refere ao amplo uso de simbolização que acomete a histeria. Os significantes presentes na fala da histérica, tais como ‘golpe no coração’, ‘tapa no rosto’, ‘engolir um insulto’ são termos associados e que tem um significado e servem a um propósito. A representação figurativa algum dia teve um significado literal, agora usada para expressar uma emoção por associações que as palavras carreiam. Na

Conferência XXV (1917 [1916-1917]), intitulada A angústia, Freud sugere que os afetos

são formados com base no mesmo padrão, combinando a ideia de que a ontogênese repete a filogênese, mediante a explicação fornecida por Darwin, ou seja, dos resquícios de ações que originalmente tinham um significado.

Um estado afetivo seria formado do mesmo modo que um ataque histérico e, como ele, seria o precipitado de uma reminiscência. Um ataque histérico pode assim ser comparado a um afeto individual recentemente formado, e um afeto normal com a expressão de uma histeria geral que se tornou uma herança (FREUD, 1917 [1916-1917], ESB, vol.16, p.462; AE, v.16, p.360).

Em 1926, em Inibição, sintoma e angústia, Freud repete essa concepção, mantendo-a para todos os afetos:

A angústia não é criada novamente no recalque; é reproduzida como um estado afetivo de conformidade com uma imagem mnêmica já existente. [...] Os estados afetivos têm-se incorporados na mente como precipitados de experiências

traumáticas primevas, e quando ocorre uma situação semelhante são revividos como símbolos mnêmicos. Não penso haver laborado em erro ao aproximá-los do ataque histérico mais recente e individualmente adquirido e em considerá-los como seus protótipos normais (FREUD, 1926, ESB, v.20, p.114; AE, v.20, p.89).

Em 1894, Haeckel - propagador da teoria de Darwin -, chama a atenção para o golpe dado por Darwin nas concepções antropocêntricas e geocêntricas do mundo. Em 1543, Copérnico dá um golpe mortal no dogma geocêntrico ao retirar a Terra do centro do universo. Em 1859, Darwin o fez em relação ao dogma antropocêntrico ao postular a ascendência animal da espécie humana. Em 1917, no texto Uma dificuldade no caminho

da psicanálise, Freud fala do golpe dado pela psicanálise no narcisismo humano, ao

afirmar que “o eu não é senhor em sua própria casa”. Freud considera que Darwin e seus precursores deram cabo à pretensão de superioridade humana.

A adesão inicial de Freud à teoria evolucionista, presente desde suas pesquisas como neurologista, tal como assinala Gay (1989), marcará sua presença no desenvolvimento das suas hipóteses propriamente psicanalíticas. Jones (1997) descreve as contribuições de Freud à teoria da evolução no decorrer da sua obra, mesmo reconhecendo que seus aportes ao campo da biologia foram mais acidentais que deliberados. Com efeito, as ideias expostas no Projeto para uma psicologia científica (1895), obra póstuma de Freud e marco propriamente teórico da introdução do termo

Trieb, revelam que o recurso às hipóteses do campo da biologia constitui um poderoso

ingrediente no processo de elaboração de seus princípios teóricos que encontravam na teoria da evolução uma base comum, assim como no que de original se deduz do desenvolvimento da noção de aparelho psíquico, a qual culmina com o estabelecimento da hipótese estrutural acerca da sexualidade. Tais considerações sublinham a importância do Projeto (1895) em relação ao conjunto de sua obra, mesmo considerando-se que as ideias expostas nesse trabalho somente assumiriam um estatuto metapsicológico quando a tópica dos processos psíquicos evoca outra modalidade discursiva dotada de uma concepção peculiar de realidade e de temporalidade em relação à da consciência e da biologia. Nesse sentido, é o entendimento acerca da natureza sexual da representação recalcada, vinculando sexualidade, inconsciente e recalque que tornará possível o desenvolvimento de uma reflexão psicanalítica sobre o

encontro subjetivo do organismo com o outro da ação específica, sem aspectos reducionistas.

Dos Três ensaios (1905), marco da conceituação freudiana sobre a pulsão, depreendem-se duas linhas de forças relativas a este conceito, inseridas numa teoria genético-evolucionista que, paradoxalmente, coexistem não somente no decorrer das sucessivas edições que compõem esta obra, a saber, nos anos de 1905, 1910, 1915, 1920, 1922 e 1925, mas no seu pensamento como um todo. O texto demonstra as vicissitudes da adesão de Freud às hipóteses evolucionistas, assim como as consequências que decorrem dessa adesão, a saber, as variantes evolucionistas ontogenéticas e as variantes evolucionistas filogenéticas.

Ao recusar a dimensão instintual em favor de sua formulação sobre a pulsão, e sustentar a hipótese sobre a contingência do objeto da pulsão, torna-se evidente a introdução da dimensão biológica nas suas características genético-evolucionistas.

As variantes evolucionistas ontogenéticas são variantes que abordam a gênese ontogenética e a evolução da pulsão, decomposta nos seus componentes pré-genitais e em relação dialética de derivação com o instinto (Laplanche, 1973), embora a pulsão seja descrita em termos de realidade biológica, ou seja, endógena. As pulsões também se inserem numa temporalidade que, mesmo se perfilando segundo os mesmos termos da biologia (linear, cronológica, abarcando tanto um sentido progressivo como regressivo), apresentam uma meta, a satisfação, que aponta para uma concepção dinâmica da sexualidade.

Na primeira edição dos Três ensaios (1905), Freud concebe a sexualidade infantil como um estado de anarquia e poliformismo pulsional. As pulsões parciais auto eróticas apresentam modos de satisfação independentes que predominam em determinadas etapas do desenvolvimento psicofisiológico do sujeito, e que atuam em tal ou qual parte do corpo, propícias também ao engendramento da excitação, as chamadas zonas erógenas. Com a chegada da puberdade, o funcionamento anárquico das pulsões gradualmente se organiza; as pulsões parciais dispersas se submetem a um único modo de satisfação: as zonas erógenas ficam subordinadas à primazia da genitalidade (Freud, 1905).

Depreende-se, assim, uma concepção de evolução nos termos de progressão do mais simples (as pulsões parciais da sexualidade infantil) ao mais complexo (a pulsão sexual da organização genital adulta). Concepção que também inclui a hipótese sobre uma reversão desta evolução no caso das enfermidades mentais. No pensamento freudiano, essa reversão é tratada como uma fixação nos termos de inibição do desenvolvimento que dissocia a organização e que prepara as posições em que opera a regressão da libido, tal como assinalam Laplanche e Pontalis no Vocabulário da

Psicanálise (1983).

Com os avanços da teoria da libido, em particular com a introdução do conceito de narcisismo, Freud outorga o valor de organização à sexualidade infantil. Nota-se, então, seu interesse em aprofundar sua reflexão sobre a teoria da libido a partir do estudo das neuroses de transferência e da psicose. Tal teoria surge a partir da importância atribuída ao erotismo anal em Caráter e erotismo anal (1908), para, em A

disposição à neurose obsessiva (1913), introduzir a hipótese de um estádio anal. Dentro

desta mesma ordem de considerações, na terceira edição dos Três ensaios, ocorrida em 1915, Freud introduz a hipótese de um estádio oral e, finalmente, em A organização

genital infantil (1923), a de um estádio fálico no desenvolvimento da libido. O

estabelecimento de estádios no desenvolvimento libidinal indica que não se trata mais de uma concepção de evolução de unidades mais simples em direção a unidades mais complexas, mas da coexistência de duas organizações, a infantil e a adulta, que separadas entre si pelo período de latência buscam abarcar os avatares da sexualidade humana. Assim, o advento da sexualidade adulta, com a primazia da zona genital não se inscreve no sentido de que este último estádio, no tempo cronológico, exclua os anteriores, ou seja, os modos pré-genitais de satisfação da libido, mas somente se sustenta desde que mantendo uma relação dialética com aqueles.

Laplanche e Pontalis (1983) consideram que essa mudança de perspectiva conduziu a uma nova extensão da noção de fixação. Mais do que fases do desenvolvimento da libido, a fixação engloba também a estrutura da atividade característica de cada etapa, que inclui não somente a atividade sexual e a escolha de objeto, mas também o modo como o sujeito concebe suas experiências.

Convém sublinhar que foi mediante este proceder que Freud pôde ampliar a teoria da sexualidade humana em relação às doutrinas clássicas. Com a concepção evolutiva da sexualidade humana foi possível aproximar a sexualidade infantil da sexualidade perversa, introduzindo a hipótese sobre a fixação e regressão da libido, sem mencionar o pressuposto de um estádio fálico no desenvolvimento da libido, assim como o reconhecimento no adulto de um funcionamento sexual caracterizado por modos orais e anais de satisfação. O que desvela uma concepção de evolução derivativa, na qual a genitalidade não aparece vinculada estritamente à reprodução. Ocorre, entretanto, que a concepção de uma sexualidade endógena converte a dimensão fantasística – uma das mais significativas descontinuidades do pensamento freudiano – numa "expressão secundária" desta realidade, tal como advertem Laplanche e Pontalis (1988, p. 40-41).

Dentro da concepção de sexualidade depreende-se outra representação de temporalidade, a saber, a instauração bifásica da sexualidade interposta pelo período de latência. Essa concepção já estava presente nos anos anteriores ao abandono da teoria da sedução para explicar a etiologia da histeria a propósito do caso Emma, no Projeto (1895). A ressignificação a posteriori de um evento incompreendido e excluído no interior do sujeito que, separado de um segundo tempo por uma série temporal, é retomado na elaboração desse segundo tempo. Entretanto, é transposta em um tempo pré-histórico, sugerindo uma fixação que plasmaria seus efeitos na história ontogenética do sujeito, seja na predisposição à neurose, seja nas conquistas sociais e culturais da humanidade. É precisamente dessa adesão de Freud a teorias que enfatizam a filogênese em detrimento do desenvolvimento ontogenético que se deduz uma segunda linha de força relativa à dimensão biológica do conceito de pulsão, a saber, as variantes evolucionistas filogenéticas. Tais variantes dizem respeito às teorizações de Freud nas quais, baseando-se em determinadas teorias da biologia, nesse caso, na lei bioenergética de Haeckel, segundo a qual a filogênese determina a ontogênese, postula-se o vínculo entre pulsão e filogênese. Tais teorizações atribuem à pulsão uma realidade endógena e hereditária, e desembocam na especulação acerca de uma temporalidade pré-histórica, mítica, ou seja, em teorizações sobre a origem das instituições e das neuroses em que a filogênese aparece como cenário.

Em Totem e tabu (Freud, 1913) Freud recorre a Darwin ao discorrer sobre a horda primitiva. Darwin intuía que a humanidade primitiva se agrupava em pequenas hordas compostas de um macho poderoso e várias mulheres, para demonstrar que as instituições humanas, incluindo as religiosas, derivam de instituições primitivas.

As especulações sobre a origem das instituições humanas e a relação de correspondência entre as neuroses e a filogênese da espécie, não devem ser entendidas como uma adesão cabal às hipóteses de Darwin. Delouya (1992) adverte que foi na hipótese de Spencer, segundo a qual existe um resumo na mente do indivíduo dos estágios da história da humanidade, que Freud se baseou. Partindo dessa hipótese, Freud desenvolveu uma teorização peculiar baseada na transmissão filogenética das lembranças.

A introdução do conceito de fantasias primordiais em Um caso de paranóia que

contraria a teoria psicanalítica da doença (1915) reflete esse estado de coisas.

Definidas como estruturas que modelam e dão historicidade ao complexo de Édipo, apresentam sua origem numa realidade definida como pré-histórica, que busca enquadrar as singularidades pessoais. São as fantasias de sedução, de castração, de observação da cena primária (coito parental), de retorno à vida intrauterina. A novela familiar pode ser considerada como outra das fantasias primordiais.

O interesse de Freud pelas origens, presente na relação entre ontogênese e filogênese, reflete sua inquietude naquilo que da ciência se aproxima ao mito. De todo modo, o reconhecimento da tênue fronteira existente entre mito e ciência o conduz a se distanciar quando havia “alguma dúvida interna acerca de que estava penetrando demasiado em território alheio”, segundo as palavras de Jones (1997, p. 332). Freud lida com prudência em relação às hipóteses da biologia, não sem reconhecer o caráter de mito científico de suas hipóteses. Dentro dessa mesma ordem de considerações, na 23ª das Conferências introdutórias sobre psicanálise, intitulada Os caminhos da formação

dos sintomas (Freud, 1916-1917), postula o recurso às fantasias primordiais, quando o

vivenciar aparece como rudimentar.

O evolucionismo de Freud esboçado na variante evolucionista-filogenética trata das relações entre o homem e a cultura com todos os matizes com que se supõe pensar

sobre a passagem do natural ao humano. Freud não se atém a uma ideia positivista de progresso, mas à noção de uma seleção das teorias do mundo testadas pela seleção natural. Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (Freud, 1911) a adesão às hipóteses evolucionistas efetua-se a partir de outra perspectiva. O estabelecimento de uma psicologia genética (Freud, 1911) demonstra o reflexo da influência que a Escola de Zurique exerceu sobre o pensamento freudiano, em particular