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A experiência francesa: a vida é feita de detalhes

CAPÍTULO 4 – A CONVIVÊNCIA COMO DISPOSITIVO DE CUIDADO: A DIMENSÃO CLÍNICA

4.1 A experiência francesa: a vida é feita de detalhes

Oury (1989), situado na proposta francesa de Psicoterapia Institucional, pode ajudar a caracterizar a dimensão clínica da convivência, através de suas formulações sobre a criação e o sofrimento psíquico intenso. O autor descreve a esquizofrenia como um processo, como algo que “chega” à existência de um sujeito. Algo novo, uma ruptura (retomando outro termo jasperiano), uma bifurcação da existência. Oury retoma a ideia de Tosquelles da crise como catástrofe existencial81, vivida como um

fim de mundo. Pode ser vivida como um desabamento súbito ou ao contrário como algo progressivo. Tal catástrofe seria seguida por um tempo de “reconstrução da personalidade”, como depois do dilúvio. Esta reconstrução pode tomar uma forma delirante, uma forma de restrição do mundo, mudança total nas crenças com utilização de toda a cultura adquirida (mitologia, Bíblia, mundo técnico...). Depois da                                                                                                                

81 Com Costa (2013), entendo a crise em sua complexidade não apenas de risco, mas também de oportunidade. Apenas me permito aqui, ao tomar como foco momentâneo a dimensão do risco, pensar que dimensões clínicas do cuidado a experiência francesa pode me apontar para a reflexão sobre a convivência.

catástrofe, buscam-se os materiais para reconstruir. “É nesta perspectiva que tudo o que chamamos de “criações” ao nível da psicopatologia, tendo ou não valor “estético”, tomam lugar e podem nos servir a ver de forma mais precisa do que se trata nesta reconstrução” (OURY, 1989, p. 50, tradução livre). Talvez seja precisamente um dos objetivos da convivência constituir-se como uma espécie de

enquadre constante para esta (re)construção. Como se trata de uma reconstrução

após uma “catástrofe existencial”, o enquadre é justamente a existência82.  

Oury (1989) considera que ainda que Freud tenha vislumbrado estas questões – por exemplo, o entendimento do delírio como cura, em uma espécie de não delimitação entre si e o mundo, de modo que salvar o mundo é uma forma mais ou menos metafórica de salvar a si mesmo – esta reconstrução não pode ser suficientemente entendida apenas através de dimensões psicanalíticas83. Por isto, Oury retoma discussões artísticas e estéticas. O autor denomina ética esta posição de não considerar apenas o negativo na experiência esquizofrênica, não pensá-lo como um “sub-homem”: existe um sujeito a ser respeitado, destacando os elementos positivos nesta catástrofe existencial.  

Para entrar neste mundo particular que se cria após a “catástrofe existencial” é preciso, parece-me, conviver. Não é falar sobre, pensar, racionalizar, mas sentir (dimensão páthica) e participar. Este lugar é do páthico, onde surgem as sensações mais basais que estão na base de tudo o que é vivo na existência (OURY, 1989; MARTINS, 2003). Oury (1989), refletindo sobre o trabalho clínico, especifica que para acolher alguém é preciso colocar-se na mesma paisagem: “não é mais o visível, mas o sentir. Participamos” (p. 58). Convivendo, podemos estar na mesma “paisagem”; ao participar criamos espaço/condição para acolher a criação própria de si de cada sujeito. Esta posição de estar na mesma paisagem, o participar, o fazer junto (características/possibilidades da convivência no campo da atenção psicossocial) talvez facilite esse movimento. Adverte ainda que não se trata                                                                                                                

82 Está aí situada uma das principais críticas à Psicoterapia Institucional: ao não abrir mão de um dispositivo hospitalar forja uma existência. Esta existência nos parece forjada, pois é institucional, diferente do objetivo do campo da atenção psicossocial brasileira que, inspirado na proposta de desinstitucionalização italiana, enseja criar espaços de vida no tecido social, ainda que tenha encontrado dificuldades para concretizar este objetivo. Meu desejo é pensar/construir formas de enfrentar estas dificuldades.

83 Apesar da Psicoterapia Institucional se apoiar em uma teorização psicanalítica para compreender o sujeito e os sistemas de segregação, fica aqui evidente o esforço do autor – um dos principais expoentes da Psicoterapia Institucional – para tentar compreender o sofrimento psíquico considerando outras dimensões da existência.    

simplesmente de ser gentil. “(...) ser gentil é a pior das coisas. Ser gentil é permanecer do outro lado da barreira” (p. 99). É preciso ir até lá, naquele momento, fazer parte da “paisagem”...  

Para o autor, a criação pode ter uma função de suplência: quando um rim falha o outro assume a função, ele passa a funcionar de forma mais intensa do que anteriormente. Encontramos, com frequência, entre os artistas, como em certos psicóticos, uma necessidade imperiosa de criação, diz o autor. A diferença, demarca Oury (1989), é que quando algo é criado, uma obra, no campo da psicose, é mais do que uma necessidade. A criação é, ao mesmo tempo, autocriação. Esta, mesmo que resulte em algo precário, pode durar um certo tempo, e produzir um certo equilíbrio.  

Algumas consequências destas ideias para o trabalho clínico que Oury (1989) deriva:  

a) um esquizofrênico, com dificuldade na “fábrica do dizer”, pode fazer, com a massa de modelar, por exemplo, um substituto: não dele mesmo (no sentido projetivo), mas do que está em questão em si mesmo na relação com o outro;  

b) algo da ordem da reconstrução, de uma possibilidade de acesso, um gradiente de abertura é possível;  

c) “... Tricotar pode ser muito importante! Pode restabelecer um certo nível de tecelagem/confecção da existência” (p. 100, tradução livre);  

d) resta um certo “comércio”, levando em conta a alteridade; um “comércio” afetivo que pode criar sentido sem passar pela linguagem constituída;  

e) devemos pathicamente estar lá para buscar quem está em sofrimento, em estado de espera absoluta, não ser intoxicado pelo discurso atual/dominante, estar lá em posição para acolher algo, mesmo que frequentemente desconhecido;  

Oury (1989) assim sugere que, quando há destruição da linguagem na esquizofrenia, podemos ter, por outro lado, uma tentativa de construção do mundo com um certo equilíbrio, através do delírio, por exemplo, mas também através da criação de obras, pinturas, esculturas, escritas, etc. Para o autor, a criação modifica algo da ordem do real, há algo de absolutamente novo que aparece: um acréscimo de ser. Se a “fábrica do dizer” - que exatamente dá as condições para que haja linguagem - foi bombardeada, é necessário tirar o máximo proveito dos elementos que subexistem. No lugar do dizível, é preciso achar outras formas para o homem em sofrimento se exprimir.

Não se trata de demandar artificialmente ao sujeito que pinte, esculpe, etc, mas fazer tudo para que haja eventualmente a possibilidade. “… Poder nos ocupar das pessoas, sem constranger, sem as atormentar. É algo muito difícil de fazer, mesmo com as melhores intenções” (OURY, 1989, p. 149). Eis um desafio na convivência: encontrar este equilíbrio, particular e heterogêneo, a ser criado com cada um e com cada dispositivo, entre estar ocupado com o outro, mas sem imposição.   Como Lobosque (2003), ao se referir à experiência nos CERSAMs, os CAPS mineiros; “trata-se justamente de fazer com o tempo não se confunda com um vazio sem fim a ser preenchido, devolvendo-lhe ritmo e corpo” (p. 27).  

Delion (1984) conta a história de setorização de uma instituição psiquiátrica francesa do tipo asilar. Em um primeiro tempo, apesar de inaugurar uma prática voltada para o exterior, os esforços principais estavam na transformação do serviço intra-hospitalar. O segundo período é voltado para o diálogo com a cidade. Nessa concepção, o hospital ainda é entendido como indispensável, apenas não o meio central, o que difere novamente dos princípios que orientam o campo da atenção psicossocial no Brasil. Mas neste esforço de articulação entre o hospital e recursos extrahospitalares em direção à cidade, o autor tece algumas considerações clínicas que podem ser úteis para pensar a convivência, especialmente a necessidade de

estabelecer outras formas de comunicação. No relato do autor, é interessante notar

que a setorização caminhou na direção de serviços comunitários e menos medicalizados, em um movimento em direção à cidade e seus aparatos e dispositivos. Através da setorialidade e de um trabalho de diálogo na cidade para tentar resolver problemas concretos da cidade (não apenas estritamente de saúde mental, mas sobre os idosos, mulheres, crianças, problemas relacionados à sexualidade, a contracepção, etc.), foi sendo construída, na ótica do autor, a possibilidade de uma prática menos alienante. O interesse de outros setores da comunidade em discutir temas de saúde mental leva a desconstruir a ideia de que uma afecção psíquica é “transmissível” e que, ao contrário, está articulada com as condições de vida.  

A questão que se colocava então era a transformação do espaço fechado e atemporal do asilo para o espaço-tempo de mudanças abertas em direção aos outros, para o autor, de passar do asilo para a psiquiatria de setor. Esta transformação implica no reconhecimento de que as relações intersubjetivas são o instrumento de trabalho: para cuidar de um psicótico é preciso falar com ele. “Mas falar-com é uma modalidade de estar/ser que é a mais complexa (…) é o desenvolvimento

intersubjetivo entre a linguagem do dito e do não dito que vai constituir o encontro” (DELION, 1984, p. 47, tradução livre).  

Mesmo que se admita que a palavra pode surgir em qualquer parte, para ser ouvida é preciso que se engaje na interlocução. O autor descreve alguns elementos necessários para favorecer o surgimento da interlocução entre os cuidadores e os pacientes: perceber como estão transferencialmente vinculados aos pacientes, o uso de mediadores (objetos/atividades: o objeto para funcionar como mediador não é um mero acaso, está articulado com a história de um sujeito) e as reuniões de equipe. Esta é uma dimensão que me parece importante no esforço em transformar a convivência em um dispositivo com potencialidade clínica, que as atividades e objetos estejam articuladas com a história de vida de cada um, de modo a permitir processos de subjetivação e de interlocução.

Nesse fazer junto as atividades de lazer enriquecem o conjunto de circunstâncias propícias para o tratamento.   Em um caso clínico, o autor mostra a conjunção entre espaço, tempo e relação na possibilidade de construir algo diferente da cronicidade, esta mesma entendida como uma soma entre os mecanismos de defesa psicóticos e os mecanismos de defesa do manicômio (DELION, 1984). Através de uma viagem com os cuidadores, a alternância de lugares introduziu uma ruptura na cronicidade, a isso se soma uma dimensão temporal (há uma frequência nesses passeios e uma constância dos cuidadores). Um espaço que faz sentido, que foge da repetição e se liga à dimensão do tempo (continuidade) e uma relação específica com o cuidador (presença).  

Delion (1984) afirma que uma certa desordem é necessária para instaurar o cuidado.  Oury (1995, p. 58), por sua vez, afirma que “para estar “com” um outro, este outro deve justamente ser diferente de si mesmo”. Neste sentido, “é preciso levar em consideração o espaço, o tempo, o trajeto que se passa nos sete dias da semana menos a meia hora da sessão de psicoterapia, (...) de onde a importância do que podemos chamar, prudentemente, ‘a vida cotidiana’ ” (OURY, 1995, p. 64).  

Lecarpentier (1989), ao apresentar a clínica de La Borde, destaca algumas características do trabalho que impactam a compreensão sobre a convivência. Para o autor, a convivência no Clube Terapêutico (discutido, no capítulo 1, a partir do filme

La moindre des choses) surge como uma necessidade para o sem-lugar da psicose,

dada a sua dificuldade de habitar um lugar, de estabelecer contato com o outro, de articular os gestos mais simples da vida cotidiana, de lhe dar um sentido. Para o autor,

no mundo psicótico, em um instante, pode surgir um sinal ameaçante que pode inaugurar uma catástrofe existencial. A existência de um clube estruturado em uma trama de ambientes diferentes pode oferecer um ponto de apoio, podendo acolher o acaso, o insólito (LECARPENTIER, 1989). Por mais que me incomode esta posição fatalista sobre a psicose, é preciso reconhecer que, em alguns momentos – e não como uma condição estruturante fechada, inevitável e irreversível – no cotidiano dos serviços convivemos com pessoas cujo sofrimento, naquele momento, as impede de realizar sozinhas as mais simples tarefas do dia a dia.

A ideia da convivencia é fazer junto para agenciar novas possibilidades de ser e estar no mundo. A questão que persiste, no entanto, é como manter o heterogêneo estando no grupo? Lecarpentier (1989) destaca a importância de que cada membro da equipe possa investir de forma diferente, à sua maneira, em seu estilo. O autor trabalha com a ideia de “constelação” que constitui o ambiente pessoal, lugares, pessoas, objetos, animais, que através de uma transferência multi-referencial, constituem o mundo de apoio do sujeito. “Quando um doente vai mal, frequentemente é suficiente que se reúna, para conversar, as pessoas de sua constelação e a sintomatologia se modifica, melhorando às vezes de forma espetacular e rápida” (p. 5, tradução livre). Segundo o autor, não apenas a contratransferência (nesta transferência multi-referencial), mas também os elementos “infra-conscientes”, atitude, modificação de um sorriso, de um aperto de mão, a entonação da voz, são importantes.

Le Club (1998), ao discutir o papel da escrita e do clube em La Borde, defende que o perigo permanente de uma instituição é de se congelar: na inércia da prática as trocas perdem seu valor fundamental, o conflito. A prática-inércia é demagógica e infantilizante, conforme foi discutido no capítulo anterior. O que Basaglia já nos ensinou e constatamos no cotidiano dos serviços: a instituição tende à institucionalização. O trabalho do Clube é justamente atender à necessidade de um trabalho cotidiano onde possa haver o conflito, condição de preservação das trocas. “Garantir a organização o seu direto à desorganização” (p. 2), preservando o aleatório para que o encontro seja possível (OURY, 1995). “O clube se confunde com a finalidade da clínica: tornar o convívio naquele espaço um meio terapêutico e socializante para todos, independentemente de serem ou não pacientes” (PASSOS, 2009, p. 198). A partir de sua experiência como estagiária em La Borde, em seu trabalho de doutoramento, Passos (2009) descreve a vida comunitária dentro da clínica como sendo compreendida, em primeiro lugar, como a forma de tratamento do

sofrimento psíquico: “o tratamento é resultado da convivência cotidiana na busca coletiva, grupal, ou de alguma forma forma sempre compartilhada, de superação das dificuldades psíquicas e práticas” (p. 201, grifo meu).

A ideia é que   as   atividades permitam as pessoas se encontrar, ter acesso a diversos espaços, facilitando a livre circulação. Exatamente o limite de uma instituição fechada: um avanço que internamente ela seja “aberta”, mas nosso desafio é construir efetivamente espaços de circulação na pólis...

Este tipo de proteção institucionalizada seria aceitável se não gerasse uma condição de dependência tão grande, se não produzisse uma alienação das famílias e da sociedade em relação ao problema e, finalmente, se não criasse, no mesmo gesto, uma inferiorização social quase automática das pessoas dela dependentes (PASSOS, 2009, p. 209).  

Segundo a autora, um outro limite da experiência francesa estaria ligado a uma posição por demais profissionalista e institucionalizada, em uma supervalorização da dimensão clínica associada a uma subestimação da dimensão política, no que diz respeito ao poder subjacente à prática médica/clínica. Esta posição teve por consequência uma subestimação da necessária crítica às práticas psiquiátricas e psicológicas: “para Castel, reformar hospitais e fazer psiquiatria comunitária são propostas que concorrem entre si” (PASSOS, 2009, p. 113). Por outro lado, a definição da política francesa de saúde mental acabou por estar organizada por

interesses econômicos e políticos mais poderosos, ou, para contrapor nos mesmos termos, uma outra lógica mais poderosa – a lógica de mercado. Essa lógica tem empurrado a clínica para fora do público, que passa a ser dominado por uma nova lógica bruocrático-administrativa (PASSOS, 2009, p. 118).

Ainda é possível um trabalho terapêutico nestas circunstâncias? Diatkine; Quartier-Frings; Andreoli (1993) problematizam que a dificuldade na prática psiquiátrica não é estabilizar sintomas, mas não deixar que esta estabilização bloqueie a vida e seus processos de mudanças. A convivência, para se tornar terapêutica, deve engendrar um trabalho de temporalização, de historia-ação. “Se a história de um sujeito se desinveste, ele não é mais ninguém” (DIATKINE; QUARTIER-FRINGS; ANDREOLI, 1993, p. 29).  

  O que aqui surge é a possibilidade alienante do encontro e o cuidado com a crise, que, na maior parte das vezes, tem como consequência fazer desaparecer a possibilidade de convivência, provocando isolamento e ruptura.  

 

O encontro com a loucura representa uma das experiências mais complexas e desconcertantes que se possa vivenciar em psiquiatria. Ela evoca emoções desagradáveis, põe-nos em confronto com situações insuportáveis, pode nos tornar incapazes de pensar e de perceber. Todos os processos que nos levam a reconhecer o outro como uma pessoa humana e a nos reconhecer nele como pessoa humana por meio de movimentos de identificação, entre outros, são totalmente perturbados. (…) Esse fenômeno estabelece um dinamismo que é ainda mais alienante na medida em que uma equipe, quando é traumatizada pela loucura do paciente, reduz progressivamente o apoio psíquico que deveria oferecer (DIATKINE; QUARTIER- FRINGS; ANDREOLI, 1993, p. 38).  

   

Ocupados com uma psiquiatra sem hospício, os desafios do convívio e da efetiva construção de vida se impõem àqueles que sofrem e àqueles que cuidam, de modo que, para os autores, é fundamental constatar que o sujeito, mesmo que com sintomas “estabilizados”, está aquém de uma vida: “que ele more na cidade, com a família ou sozinho, ou que ele resida num albergue, os tempos mortos espontâneos o invadem, quer sejam a marca de um vazio psíquico que traduz e reforça o desabamento depressivo ou da produção delirante” (p. 53).

Assim sendo, se os planos terapêuticos e institucionais não estão adaptados aos detalhes da vida cotidiana do sujeito temos, nos dizem os autores, um abismo entre as intenções e o que realmente se faz. As intervenções com incidências concretas na vida cotidiana do sujeito precisam estar, em alguma medida, vinculadas à escuta clínica, senão correm o risco frequente de se tornarem fracassos (DIATKINE; QUARTIER-FRINGS; ANDREOLI, 1993). Este é um aspecto primordial: não é apenas nos ocuparmos com à vida cotidiana (Sergio que se mata após uma desilusão amorosa em Dá para fazer, pois os cuidadores não estavam atentos ao impacto emocional desta desilusão em Sergio), tampouco um olhar terapêutico desvinculado da vida concreta.

O esforço cotidiano que fazemos é tentar dar conta deste hiato entre a verbalização do desejo do sujeito de fazer algo e a possibilidade concreta de realização, frente aos limites da realidade e aos limites do sujeito em sustentar o seu desejo. Um exemplo: para uma pessoa publicar um livro com suas poesias foi desejo concretizado que se converte ainda em reconhecimento social. Para outro – a despeito da qualidade extraordinária de seus escritos – publicar significava encarcerar seus pensamentos, como se fosse, em suas palavras, um retorno à internação e ao enclausuramento, pois as palavras estariam aprisionadas. Assim, publicar um livro não é em si mesmo um ato com potencial terapêutico, mesmo se for considerada a

dimensão de reconhecimento social implicada; só faz sentido articulado com a história e as significações dos sujeitos que podem ser muito diferentes do que é socialmente compartilhado.  

Neste abismo entre as intenções e as ações, continuam Diatkine; Quartier- Frings; Andreoli (1993), surge a rotina e o desinteresse progressivo por parte da equipe, se (re)inscreve a solidão e as projeções do sujeito. “... é a capacidade de sonhar e pensar dos terapeutas que desaparece” (p. 55). Diríamos que o insuportável da convivência produz efeitos antiterapêuticos e institucionalizantes, verdadeiras barreiras defensivas. Como tornar suportável? Como refletir e produzir a partir do insuportável? O que produzir de novidade e interesse para que o insuportável se transforme em convivência?  Por exemplo: o tédio, a repetição, a rotina, a estranheza de ser incluído no delírio, nosso mal-estar para responder perguntas deprimidas e ansiosas... Os autores trabalham com a ideia de que se deve trabalhar as situações vividas por cada um, delimitando suas consequências, através da reflexão e diálogo constantes da equipe, com o objetivo de sustentar o interesse por aquilo que pensa e por aquilo que o paciente representa.  

O movimento que vai do reconhecimento, da irritação, do desânimo ou do interesse estéril que o paciente provoca a uma transformação em uma intervenção útil, não se faz ao sabor de todas as reuniões, nem para todos ao mesmo tempo. Trata-se de um processo que cada um realiza mais ou menos lentamente, com maior ou menor êxito. A permanência da reflexão comum é necessária para permanecer protagonistas específicos, capazes de se interessar pelo paciente pelo tempo que for necessário, com suas dificuldades e suas potencialidades, sem encerrá-lo numa rede fechada de julgamentos definitivos (p. 63).

Acredito que uma das características que potencialmente fazem da