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Acompanhamento terapêutico: a convivência como estratégia clínica

CAPÍTULO 4 – A CONVIVÊNCIA COMO DISPOSITIVO DE CUIDADO: A DIMENSÃO CLÍNICA

4.4 A experiência brasileira

4.4.2 Acompanhamento terapêutico: a convivência como estratégia clínica

Inspirando-se em Foucault, Palombini (2006) define o acompanhamento terapêutico (AT), no contexto da reforma psiquiátrica brasileira, como um dispositivo clínico-político. Um dispositivo, pois o AT se configuraria como a rede que articula um conjunto heterogêneo composto pelos seguintes elementos: a reforma psiquiátrica; a construção de um espaço de continência e pertencimento dos acompanhantes terapêuticos, “que seja externo ao serviço onde realizam seu trabalho, preservando essa dimensão do fora que o caracteriza” (p. 120); a utilização de uma teoria clínica96;                                                                                                                

96 “Uma teoria da clínica pautada necessariamente pelos seguintes princípios norteadores de uma concepção de subjetividade: primeiro, a ideia de que a subjetividade constitui-se na relação a uma alteridade; segundo, a ideia de que se trata de uma subjetividade não transparente a si mesma, que não se deixa apreender integralmente por um saber; uma subjetividade que guarda uma dimensão de

e uma disponibilidade para o encontro com o outro. Penso que o acompanhamento terapêutico e a convivência são diferentes possibilidades de dispositivos dentro de outro dispositivo central na reforma psiquiátrica brasileira: o CAPS. São dispositivos que não se circunscrevem ao CAPS, mas que, se associados ao CAPS, teriam função importante no alcance dos objetivos da política nacional de saúde mental.

Berger (1997) descreve o acompanhamento terapêutico como uma clínica que “acontece fora dos equipamentos tradicionais de tratamento, que se dá na interface do acompanhante, do acompanhado e da cidade, clínica na cidade” (p. 7). O AT é entendido como um dispositivo, inquieto e polifônico, de abertura para outros modos de viver, uma clínica que se faz nos pequenos detalhes, usando “a errância pela cidade e os projetos que podem surgir daí, como instrumentos para a criação de narrativas pessoais” (BERGER, 1997, p. 9).

Carrozzo (1997) adjetiva a clínica do AT de implicada: “uma abordagem clínica em Saúde Mental que não coloca a loucura geograficamente em nenhum lugar específico, mas sim em todos os lugares” (p. 11). Caracteriza-se justamente por ser um dispositivo no âmbito da coletividade, para possibilitar conexões com a cidade. Rolnik (1997) descreve que no processo implicado no AT entram em jogo vários ambientes que não costumavam integrar o território clínico, levando a formação de uma série de novas relações.

Para Pitiá (2005), o AT permite um movimento que visa desinstalar o sujeito de sua situação de dificuldade para poder criar algo novo em sua condição existencial. É uma prática que intervém no cotidiano, “visando a possibilitar a simbolização de uma questão existencial e/ou o desenvolvimento de alguma função psíquica (p. 74).

Berger (2001) faz interessantes colocações em seu artigo sobre a formação do AT e a simbolização que estaria em jogo neste dispositivo, que teria como objetivo restabelecer pontes com o mundo, em que uma boa proposta de atividade tem valor de interpretação. O acompanhar para o AT, em uma comparação, seria o analisar para o psicanalista. Qual seria o correlato na convivência? Buscar o que faz sentido para cada um através do fazer junto e estar com.

Pitiá (2005), como fruto de sua tese de doutorado, destaca no acompanhamento terapêutico a dimensão corporal:

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

resistência, inconsciente, que não se deixa capturar pelo poder de Estado, os poderes da ciência, das tecnologias de saúde” (PALOMBINI, 2004, p. 20).

é uma prática que em si já se constitui investida no corpo do sujeito, portanto corporal, impressa na marca dos movimentos do corpo já no próprio ato de acompanhar. Acompanhar o corpo do sujeito com dificuldades inscritas e repercutidas no social, e que possa estar interferindo na sua relação com outras pessoas, porquanto esteja comprometida sua regulação individual (p. 56).

A importância da relação afetiva interpessoal no AT é destacada por diversos autores (PITIÁ, 2005; PALOMBINI, 2004; A CASA; 1991 e 1997). Está em jogo um exercício de não-neutralidade, exigindo um mergulhar na experiência, entregar-se e expor-se (PITIÁ, 2005). Carrozzo (1997) salienta que os ats precisam usar sua ‘pessoalidade’, isto é, sua subjetividade em suas dimensões e competências sociais, teóricas e emocionais:

Trabalho feito com terapeutas “especialistas” sem dúvida – mas não com as “especialidades” que assolam os serviços de saúde. Trabalha-se com terapeutas “especialistas em pessoalidade”. Não especialistas em determinados sintomas ou síndromes, mas especialistas em poder estar pessoalmente nas relações – estabelecer transferências e suportar essas transferências, estando sempre referenciados a um grupo – equipe e instituição – e implicados nessa rede relacional (p. 15).

Neto (1997) sugere que é preciso algo da ordem da paixão para ajudar o acompanhante a sustentar uma proximidade com os pacientes que permita permanecer e acompanhar tempo, ritmos e sentidos que às vezes surgem desconexos. Barreto (1997) concebe o acompanhamento terapêutico como um procedimento clínico que busca potencializar a dimensão simbólica do cotidiano de um sujeito, de modo a auxiliar na recuperação ou criação de objetos e ações que o ajudem a se constituir e a se inscrever simbolicamente na realidade compartilhada. Para o autor, promover um processo de simbolização das vivências se coloca para o par acompanhante- acompanhado, ainda que esta não se dê necessariamente pela palavra e

passa a ser uma entre outras vias potencialmente simbólicas, como o gesto, a dança, a música, a pintura, etc. É nessa área que a concepção de transicionalidade vem relativizar a hegemonia da palavra (dimensão representacional) e resgatar o potencial simbolizador de outros aspectos da experiência humana (p. 263).

Novamente, o que se destaca é a potencialidade transformadora do cotidiano: duas pessoas se encontram para realizar uma série de questões práticas e, ao mesmo tempo, psíquicas, exigindo um trabalho de simbolização (BARRETO, 1997). Por meio da relação e do testemunho do dia-a-dia do paciente, busca-se criar

possibilidades para que ele possa desfrutar de si e da vida de maneira criativa (BARRETO, 1997). Para isso, é relevante que o at desenvolva a capacidade de conter o sofrimento psíquico em si e poder devolvê-lo com uma certa elaboração que o torne um pouco mais suportável (PITIÁ, 2005).

Esta ideia de uma espécie de “empréstimo” do psiquismo também aparece em Cromberg (1997):

O A.T. pode abrir portas muito fechadas ou fechá-las quando estão muito abertas, com a condição de que espaço externo e interno estejam numa relação de mútua expressão. Isso só é possível se ele se empresta (seu espaço psíquico e corporal) para ser usado pelo paciente e se este, ao usá-lo, possa aprender a usar-se (p. 166).

Este “empréstimo” suscita a função do cuidado na modalidade

intersubjetividade transubjetiva que corresponde à modalidade de sustentar e conter

(FIGUEIREDO, 2011). A presença implicada do outro é fundamental tanto para a experiência de continuidade do ser quanto para a transformação, trata-se de conter e sustentar, integrar e dar continuidade. De ajudar a “sonhar” das maneiras mais diversas, restaurando a capacidade de sonhar, tal como Winnicott (1975) a entende em sua potencialidade de conter e transformar nossas angústias e afetos através da arte, do brincar, dos grupos, e das instituições.

Segundo Cromberg (1997), quem vive e acompanha o sofrimento psicótico sabe que as interpretações não são necessárias:

(...) o que o assim chamado psicótico pede é uma cumplicidade total com a verdade incômoda que traz de que os limites entre o dentro e o fora, entre o si e o outro, são tênues, são árduas construções ao longo da existência (também nos assim chamados não psicóticos), construções que, por mais estáveis que sejam, não estão isentas de se desfazerem em qualquer um, ao sabor das mais variáveis circunstâncias (p. 157).

Através de vários exemplos, Chauchick (2001) chama a atenção para formas de intervenção que se sustentam no cotidiano e na ação, de modo que um gesto simples no AT pode ter a força de uma microrrevolução. Assim, para a autora, nesses momentos, continuar conversando é dispensável para não corrermos o risco de reproduzir uma fala estéril, uma mesmice verbal (CHAUCHICK, 2001).

Chnaiderman (2004) afirma que no AT está implicada a construção de um convívio entre formas distintas de estar no mundo, exigindo do at a habilidade de suportar o imprevisível, de inventar a partir do inusitado. Esta disposição para lidar

com o inusitado é algo que creio ser fundamental para caracterizar o que seria necessário para a construção de uma convivência igualitária. Um esforço de não reduzir tudo ao mesmo, de não criar rotinas em excesso e institucionalizar, uma disposição para se surpreender e encontrar a diferença no outro.

Palombini (2004) situa o AT no espaço intermediário entre a instituição e o seu acesso à cidade. Esta é a tarefa/função mesma do CAPS, embora pareça que justamente aí alguns serviços não estejam conseguindo atingir sua missão. Sem dúvida, o AT é um dispositivo privilegiado que pode nos ensinar como transpor esta lógica para ajudar o CAPS a realizar coletivamente esta tarefa. Como instalar através da convivência um espaço intermediário – entre a instituição e a rua -, ajudando o CAPS a cumprir seu papel e se abrir para a rua?

Em relação à temporalidade, Palombini (2004) recupera a contribuição clínica da experiência francesa que acima discuti. Tomados pelas urgências do cotidiano, nos falta paciência para deixar o tempo jorrar e, assim, criar condições para que algo possa surgir, dar o tempo necessário para que se possa decidir e fazer algo. “O trabalho em saúde mental deveria cuidar de preservar essa temporalidade diferenciada, de forma que a lentidão não precisasse transformar-se em impotência e que os gestos, os movimentos não ganhassem sentido apenas pelo seu desfecho” (PALOMBINI, 2004, p. 39). Parece-me que aqui surge novamente a função de reserva do cuidado (FIGUEIREDO, 2007, 2011).

Na convivência dar tempo ao tempo... No relato de vários autores, a dificuldade com o tempo implicado na convivência e a diferença de tempos entre o par acompanhante-acompanhado aparece problematizada: acompanhar em um ritmo descompassado (PALOMBINI, 2004), abrir mão dos lemes do próprio tempo (BENEVIDES, 2004), o tempo que faz difícil a convivência, pois as dimensões temporais do acompanhante e do acompanhado são diferentes (MACHADO, 2004).

Conclui Palombini (2004) que está em jogo no AT uma intervenção no ambiente e cotidiano que leva a modificações no tempo e no espaço que podem produzir efeitos no campo subjetivo.

O encontro com essa outra espécie de ordem espaço-temporal – múltipla, heterogênea, caótica -, o seu acolhimento, implica o abandono de referências identitárias próprias e a abertura ao estranho que a psicose suscita, em uma experiência pela qual não passam imunes os sujeitos nela implicados (PALOMBINI, 2004, p. 72).

Com frequência, nas narrativas dos ats, surge a vivência de um descompasso no tempo e, por consequência, a necessidade de tornar fluida a própria organização temporal para poder acompanhar temporalidades diversas – frenesi, lentificação... (PALOMBINI, 2004). Para a autora, isto lança o at no campo da experiência não- representacional, sensível, no encontro páthico e estético dos corpos, situado fora do registro da palavra, fazendo do AT uma clínica em ato, onde corpo, gestos e atitudes estão implicados.

Além do espaço e tempo, uma outra característica distingue o AT: o uso de mediadores. Por exemplo, Palombini (2004) chama atenção para o fato de que, em todos os casos de AT narrados no livro, havia uma forma particular de relação com um objeto (rádio, violão, televisão, revistas) que funcionava como uma ligação a uma outra ordem discursiva e, ao mesmo tempo, em que remetiam a uma relação com o mundo exterior.

O mediador não é apenas algo entre nós e eles, mas uma outra ordem discursiva que faz conexão com o exterior. Conforme a autora, as possibilidades do trabalho terapêutico residem na capacidade de não transformar o cotidiano em algo banal e repetitivo, mas, ao contrário, sustentar a possibilidade de criação e significações na cultura.

Abrir-se para o novo, seguir fluxos alheios, deixar-se afetar, desinvestir o narcisismo, suportar a ignorância para não precipitar um saber que aliena, são vivências que se impõem ao acompanhante no encontro cotidiano com seu acompanhado. Na medida em que essas vivências encontram expressão no espaço de supervisão, sustentando-se desde a continência grupal e intensiva e a amarra téorica que esse espaço possibilita, elas transformam-se em experiência clínica fundante (PALOMBINI, 2004, p. 81).

Pelbart (2001) afirma que o acompanhamento terapêutico surge como um dispositivo flexível de “escuta-ação”, que propõe um projeto de produção de autonomia a ser construído com os acompanhados. “A cada passo uma experiência de dor põe em xeque o sentido trivial da existência, bem como sua lógica habitual, mas ao mesmo tempo pode transmutar-se numa experiência vital, conjunta, por vezes comunitária” (p. 22).

Chauchick (2001) discute os impasses, contradições e desafios nesse processo de autonomização: construir uma convivência que escape ao modelo paternalista e institucional e se sustente a partir dos desejos e necessidades dos moradores só é possível a partir do estabelecimento de um tipo de relação com os moradores, segunda

a qual as regras são flexíveis e construídas conjuntamente. Chauchick (2001) diferencia presença centralizadora – situação em que o acompanhante ocupa lugar central e alienante – de presença-referência, por implicar uma gestão conjunta, na qual o AT auxilia o morador a criar formas de existência as mais autonômas possíveis.

Entre as demandas que surgem dos moradores está a solidão. “E quem não a enfrentou em algum momento da existência? Que dirá a solidão aliada a um sofrimento limítrofe de pessoas que passaram por crises excessivas, internações e segregações associadas à doença mental” (CHAUCHICK, 2001, p. 66). Baremblitt (1997) reflete sobre o efeito da escassez da amistosidade para compreender o sofrimento humano. É uma indicação importante, pois, de alguma forma, encaro a convivência como antídoto para o sofrimento intenso e a solidão, conforme discutido no capítulo anterior. A idea não é apenas realizar uma tarefa rotineira, mas permitir que uma problemática cotidiana instigue uma mudança, provocando movimentos no estado inercial que instaurem processos de autonomia (CHAUCHICK, 2001).