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O lugar da convivência no campo da saúde mental: breve recorte histórico Foucault (1993, 2002), em sua já clássica análise da história da loucura,

CAPÍTULO 1 A CONVIVÊNCIA NO CONTEXTO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

1.3 O lugar da convivência no campo da saúde mental: breve recorte histórico Foucault (1993, 2002), em sua já clássica análise da história da loucura,

mostrou que o processo de silenciamento da loucura e sua exclusão está intimamente articulado com a redução do complexo fenômeno existencial loucura à ideia de doença mental. Para Szasz (1977), o conceito de doença mental – que o autor chama de mito – funciona como um disfarce, encobre justamente o desafio que sempre é e existe para os homens de conviverem com seus semelhantes. Com o conceito de doença mental, produz-se uma “coisa” impessoal e, ao mesmo tempo, moral e, com isso, “falhamos em aceitar o simples fato de que as relações humanas são inerentemente carregadas de dificuldades e que torná-las, mesmo relativamente, harmoniosas requer muita paciência e trabalho árduo” (p. 27).

Excluído, afirma Foucault (1993, 2002), o louco já estava, mas a reclusão ao hospital psiquiátrico marca uma mudança: o silenciamento e a exclusão da subjetividade que se opera a partir da redução da loucura à ideia de doença mental. Silêncio nas trocas interpessoais, como Diaktine, Quartier-Frings e Andreoli (1993) expressam, o hospício é o local de grau zero de interlocução. Silenciamento, também, como Goffman e Basaglia tão bem o descreveram, de si mesmo, de ser um sujeito.   Nos hospícios, estão excluídos do convívio social e a convivência na instituição tem a marca da mortificação do eu. Basaglia (2005) descreve o processo de restrição e diminuição de si mesmo, fruto da institucionalização.

A ausência de qualquer projeto, a perda de um futuro, a condição permanente de estar à mercê dos outros, sem a mínima iniciativa pessoal, com seus dias fracionados e ordenados segundo horários ditados unicamente por exigências organizacionais que – justamente enquanto tais – não podem levar em conta o indivíduo singular e as circunstâncias particulares de cada um: este é o esquema institucionalizante sobre o qual se articula a vida do asilo (p. 24).

Scarcelli (2011) afirma que o hospital psiquiátrico reúne as esferas da vida – dormir, trabalhar e brincar - que haviam sido separadas na organização das cidades. “Dentro do hospital, somos desabitados de tempo e presas do espaço” (PALOMBINI, 2004, p. 24). O hospício, enquanto lugar de violação ao sujeito e sua sociabilidade, exige uma adaptação à vida institucional inusitada para um adulto. Em relação ao papel submisso e não usual para um adulto, que é atribuído ao “paciente”, Scarcelli (2011) chama nossa atenção a regras como pedir permissão para ir ao banheiro: por descaso – ou pior, como punição - nem sempre o pedido é ouvido.

Eis que, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, surgem na Europa e nos Estados Unidos movimentos e práticas que começam a colocar em questão a institucionalização, conforme discutiu-se brevemente no tópico anterior.

A falta de ar atingira um limiar insuportável, não dava mais para continuar desse jeito: uma questão político-ideológica, com certeza, mas sobretudo uma questão de desejo; não eram apenas os pacientes que se asfixiavam nessa paisagem, mas também os profissionais que nela atuavam (ROLNIK, 1997, p. 83).

Com as comunidades terapêuticas, a psicoterapia institucional e a psiquiatria de setor, a convivência se transforma. Delion (1984) destaca posições históricas ideológicas que marcam o estar junto, a convivência, no contexto da saúde mental: “desde o fazer-sem-ele-uma-vez-excluído, até o fazer-no-lugar-dele passando para o fazer-por-ele” (p. 75, tradução livre).    

Estas experiências tiveram um impacto, em especial, nas relações interpessoais, um esforço de modificação do silenciamento e da mortificação do eu típicas do hospício. Observo que estas experiências guardam um alcance clínico, que gostaria de explorar, no quarto capítulo. A psicoterapia institucional francesa é considerada, por Oury (1989), um de seus principais representantes, como uma instância crítica da psiquiatria, onde a abordagem oferecida ao sofrimento psíquico intenso precisa ser coletivo, em uma “comunidade estrutural”. É a criação de um coletivo cujo objetivo é desbloquear as energias congeladas, em uma prática de luta contra a segregação. Para o autor, a abordagem psicoterápica das psicoses exige uma

metodologia não redutora, havendo a necessidade de privilegiar as vias de acesso polidimensionais e policentradas. Ainda que tenha influenciado a experiência brasileira, diferencia-se fundamentalmente da reforma psiquiátrica brasileira por não se propor substitutiva ao hospital psiquiátrico (TENÓRIO, 2001; LOBOSQUE, 2001).

De Tosquelles, leitor de Freud, em Saint Alban, a Jean Oury, analisando de Lacan, em La Borde, talvez possamos dizer que a psicoterapia institucional (de forma não muito diferente das comunidades terapêuticas), retira o louco do hospício para inseri- lo em cuidados terapêuticos onde se procura preservar relações humanas e dignas; estas relações, porém, acabam por não sair, justamente, do âmbito e do ambiente “terapêuticos”- ou seja, o serviço se torna antes uma nova casa e um novo mundo para o usuário, do que um espaço de abertura para outros mundos e casas (LOBOSQUE, 2001, p. 125).

 

Basaglia (2005) questiona o alcance da reforma proposta pela psiquiatria francesa que se, por um lado, ergue barreiras para impedir a entrada no hospital psiquiátrico, por outro, continuaria lugar de alienação “se for organizado como um mundo completo em si mesmo, no qual todas as necessidades são satisfeitas, como numa gaiola de ouro” (p. 32, grifo meu). Seus limites justamente aí se encontram, pois uma vida ideal – e artificial – dificilmente se sustenta, ou talvez seja mais preciso dizer, mesmo que se sustente, será às custas da exclusão. Sibemberg (2004) destaca que diversos dispositivos como assembleias e grupos operativos foram construídos com base em uma vida ideal de relações sociais, como se tais dispositivos fossem capazes de tratar e “educar” os sujeitos na direção da inclusão social.

Por isso, para a experiência italiana, é preciso ir além, é preciso desinstitucionalizar:

(...) o hospital psiquiátrico, ainda que modificado e transformado, permanece – enquanto tal – causa de doença, foco de infecção, não só em sua função de reconhecimento-codificação e expropriação do sofrimento enquanto distúrbio psiquiátrico; não só por estender para o território a cultura e as regras mediante as quais efetua esse reconhecimento e a expulsão que daí resulta; mas também na medida em que, com sua própria existência, pré-forma os conteúdos da demanda, endereçando-a aos canais convenientes, a fim de que a abertura da crise, em qualquer nível, seja automaticamente compensada com a expulsão do portador para o bolsão de contenção (...) Por essas razões, qualquer forma de sobrevivência do hospital psiquiátrico, ainda que aparentemente periférica e quantitativamente reduzida, define, a partir do papel que ele exerce, a lógica de funcionamento dos circuitos dos quais faz parte; em contraposição, sua destruição representa a ruptura do próprio cerne do mecanismo com o qual se fabrica, no mundo da saúde, a diversidade como “inferioridade”, e se pré-formam as respostas para invalidar-lhe a existência (BASAGLIA, 2005, p. 247).

Descrevendo a experiência italiana de desinstitucionalização, Basaglia (2005) destaca que o processo de transformação institucional, sustentado pela busca de destruição do hospital e o poder-saber que o caracteriza, buscou substituir a relação de tutela por uma relação de contrato. Não como um “prêmio” por ter se “reabilitado”, mas como aquisição de um poder de base que seria preliminar a qualquer contratualidade nas relações (BASAGLIA, 2005). Neste processo, tratou-se de evitar e lutar contra a cristalização das respostas, de não evitar as contradições com respostas pré-constituídas, mas de, ao contrário, fazê-las fermentar e aprofundar seus significados, prosseguindo no território a luta contra a lógica do “serviço” (BASAGLIA, 2005). Em relação à convivência, esta superação implica não apenas em “tolerar” a loucura, mas a “recusa à interrupção das relações quando já não se possuem as regras para sustentá-las sem transtornos” (p. 256) e por manter aberto um “encontro-confronto-reconhecimento (...); a recusa a organizá-lo segundo formas de socialização pré-constituídas” (p. 256).

Para Lobosque (2001), o que se trata de evitar

é que o contato com a loucura, sob qualquer ângulo que seja, tome as formas da violência, do medo, do nojo, do autoritarismo; tampouco aquelas da confusão, da colagem, da piedade. Esse contato, é possível fazê-lo como interlocução. (...) Assim reconhecemos as experiências da loucura não como aberração ou déficit, mas como experiências legítimas e pensáveis do corpo, da existência, do pensamento. Experiências perturbadoras, sim, porque podem rasgar o sentido; mas podem também, em certos casos, imprimir ao sentido outros cortes, possibilitando inimagináveis refazendas (p. 22).

Como ensina Basaglia (1985, 2005), para desinstitucionalizar é preciso transformar a relação que se estabelece entre equipe técnica e usuários, estendendo-se esta mudança na forma de conviver para o território e todas as relações sociais.

(...) nossa posição de privilégio perante um doente que foi inferiorizado aos nossos olhos não será facilmente superável (dificilmente conseguiremos cancelar nosso papel, que nos coloca numa posição de vantagem); mas poderemos tentar viver as exigências que fazem parte da realidade do doente, desencadeando uma relação que – para além de qualquer esquema institucionalizado – se tensione sobre o fio do risco e da contestação recíprocos (BASAGLIA, 2005, p. 58, grifo meu).

É convivendo, de forma igualitária e ética, que me parece, será possível uma forma de relação que faça um esforço consciente e cotidiano de não institucionalização.

Uma breve reflexão sobre dois filmes que retratam a experiência francesa e italiana de reforma psiquiátrica exemplificará a diferença entre os dois modelos e o papel da convivência em cada forma de cuidado ofertado no campo da saúde mental.

O primeiro filme é La moindre des choses de Nicolas Philibert. O impacto das primeiras cenas persiste ao longo do filme: o lugar é lindo, um castelo francês, mas as estereotipias, o andar em círculo, a calça desabotoada, a falta de dentes, a tristeza e a apatia. Não deixam dúvidas: são imagens do hospício. Os defensores do hospício dizem ser imagens da cronificação da doença. Quem acompanhou a saída de pessoas de situação de institucionalização – às vezes um passeio é suficiente para ver a mudança – discorda e associa a cronificação com o isolamento, com a falta de convivência e o silenciamento.

No entanto, não é um hospício, no sentido da convivência. Ao invés da troca zero (DIATKINE; QUARTIER-FRINGS; ANDREOLI, 1993), em La Borde – o filme é um documentário que retrata o cotidiano da famosa clínica ícone da psicoterapia institucional francesa – a convivência está presente: são pessoas que efetivamente moram juntas nesta instituição e dividem os espaços e os cuidados. Não parece haver lugares proibidos, assumem funções diferentes (desde atender o telefone, separar os remédios, cozinhar, etc.). Lecarpentier (1989), ao apresentar a clínica de La

Borde, confirma minha impressão, destacando a liberdade de circulação dos pacientes

pela instituição: “setores considerados tradicionalmene como não fazendo parte da dimensão do cuidado, como a cozinha, os escritórios, (...), o setor de serviços, passam a ter “coeficiente psicoterápico” (p. 2), tornando-se oportunidade para encontros, investimentos e responsabilidade. O autor destaca ainda a necessidade de reuniões para lutar contra o fechamento, a hierarquia, a segregação e a uniformização.

O momento mais rico, mais potencial, é o da montagem da peça. Não é uma montagem de faz-de-conta, é real: investem-se nas habilidades, encontram-se lugar para todos que desejam, é um grande espetáculo e é dirigido para o exterior. Há um público, as famílias e colaboradores são convidados para participar e fazer doações. Em especial, a figura do músico é potencializadora: ele investe e acredita, incentiva, não desiste. A peça é organizada pelo Clube Terapêutico, uma espécie de centro de convivência, uma instância coletiva que, através da autogestão com participação de todos, pensionistas e cuidadores, define as atividades e cotidiano de La Borde (PASSOS, 2009). O Clube Terapêutico tem este mérito de fazer um esforço de interlocução com o território: passeios, viagens, o convite para que as pessoas venham

assistir à peça... Lecarpentier (1989) destaca a importância do Clube Terapêutico, que guarda relações econômicas específicas com a clínica, gerando uma variedade de atividades (culturais, esportivas, artísticas, de animação, de saídas, ergoterapia...) que dão suporte à vida cotidiana. A impressão que o filme passa é a de que eles se sentem cuidados, são ouvidos, são respeitados, inclusive, em um certo sentido, de serem livres para serem loucos, não precisando lidar com a demanda cotidiana de ser diferente do que se é para ser aceito, o que de maneira geral se exige na sociedade.

“Nós temos a necessidade de cuidados, nós os doentes”.

“Foi você, a sociedade em geral que me deixou doente. Agora, na sociedade aqui estou melhor. Te dou um conselho: não fale de sua saúde para um médico porque ele pode te subjugar13. Eu não estou subjugado aqui. É diferente com o meu irmão: ele fala com o psiquiatra e ele será preso” (tradução livre).

Eles são livres, recolhidos em La Borde. “Ele se sente protegido do exterior em La Borde. Estamos entre nós. Maternados, não, protegidos”, diz o diretor.

Dá para fazer. A mesma impressão – com diferença da beleza do lugar onde La Borde se situa – no início do filme14: alienação, estereotipias... Mas estando em uma instituição manicomial no filme, agora na Itália, também estão presentes, como marcas deste tipo de instituição, a infantilização, a subserviência, “o bom paciente é aquele que engole” (FOUCAULT, 2002, p. 318). A subestimação é a tônica: “uma semana azeitonas com caroço, outra sem” para etiquetar os preços, em um trabalho por caridade, “somente esmolas”, eles produzem, “senão eles se confundem”, não podem fazer um trabalho de verdade. O médico fala como se fossem imbecis e incapazes; o excesso de medicamento e seu efeito sedativo não entram na consideração da “incapacidade”. “Só falar para eles já é um esforço”; “Essa gente tem o inferno dentro de si”; “porque a vida normal para eles é um risco”, “são incapazes de aguentar as pressões do trabalho”.

“Então vocês erravam de propósito?”. Esta é a primeira transformação que se opera quando Nelo assume a cooperativa e – sem nada conhecer sobre “doença mental” – os trata como trabalhadores: “o trabalho tem que ser bem feito. O cliente                                                                                                                

13 O termo que este morador de La Borde utiliza no filme é asservir. Para me auxiliar na tradução, busco no Le Nouveau Petit Robert (1993) e a primeira definição é: reduzir à servidão, à escravidão (p. 137).

14 O filme, baseado em fatos reais, narra a formação de uma cooperativa de trabalho com pacientes psiquiátricos como uma das estratégias utilizadas na Itália, após a promulgação da lei 180, em 1978, conhecida como Lei Basaglia, que proibiu no território italiano hospitais psiquiátricos.

deve ficar satisfeito” ,“vocês aprendem”, “vou tratá-los como trabalhadores”. “Eu me chamo Luisa, também quero ser chamada de senhora”. “Vocês aprendem, vocês tem potencial”. Não são palavras vazias, Nelo realmente acredita na potencialidade. Está aí presente uma aposta antecipada na capacidade de vir a ser dessas pessoas. Trata-se da intersubjetividade interpessoal que Figueiredo (2007) aponta como tendo a função de reconhecer no cuidado. Nelo, junto com cada um e convidando cada um a espelhar seu cuidado, serve como uma testemunha que espelha o outro, em uma semelhança que se antecipa ao próprio objeto a ser reconhecido, em sua capacidade ainda por vir. Esta modalidade de presença, muitas vezes silenciosa e discreta, consiste em prestar atenção ao outro, na medida de sua necessidade.

“Como vai sócio?” A convivência se constrói a partir de uma identidade do grupo, por fazer parte. “Em uma cooperativa não é o diretor que decide, são os sócios”. “Erramos, porque tentamos”. “A culpa e o dinheiro são divididos em uma cooperativa”. Ao conclamar à vida, Nelo também assume a função de interpelar do cuidado (FIGUEIREDO, 2007).

“Já que vamos trabalhar juntos, devemos nos conhecer, não acham?” A primeira aproximação é sentida como invasiva por Luca. Luca resiste, mas Nelo não desiste. Mudança fundamental: quando Luca dá um soco em Nelo e, ao invés, de punição recebe cumplicidade: “não deduramos companheiros, resolvemos entre nós: um problema entre colegas se resolve entre colegas”. Neste sentido, penso que se trata da busca de desconstrução das relações de poder, tal como Basaglia (1985, 2005) apontava. Mas há também uma assimetria que diz respeito ao cuidado. A assimetria se faz presente não para preservar o cuidador que se diferencia; a assimetria é para preservar o sujeito de que cuidamos, para que não passemos a exigir dele reciprocidade, afeto e cuidado conosco. Ele pode nos odiar e continuamos cuidando. A posição ética de Lévinas, a ser discutida no próximo capítulo, é aqui inspiração: trata-se de uma responsabilidade assimétrica, altruísta e desinteressada, não importa o que Outrem seja em relação a mim, ele é, antes de tudo, aquele por quem sou responsável (LÉVINAS, 1982b/2010). No sentido em que todos os homens são responsáveis uns pelos outros, mas eu mais do que todo o mundo, aquele cuja obrigação para com o próximo é infinita, nunca está quite com outrem. A mutualidade de cuidados, também a ser discutida no capítulo 2 com as contribuições de Figueiredo (2011), não deve se tornar imposição e exigência do cuidador: é uma consequência de uma posição afetiva e de disponibilidade do cuidador. A ideia de uso do objeto de

Winnicott (1983), ao falar da clínica com o sofrimento psicótico, pode ajudar a tematizar esta disponibilidade afetiva:

você se preocupa com o problema de seu paciente. Você aceita ficar na posição de um objeto subjetivo, na vida do cliente, ao mesmo tempo em que conserva seus pés na terra. Você aceita amor, e mesmo o estado de enamorado, sem recuar e sem atuar a sua resposta. Você aceita ódio e o recebe com firmeza, ao invés de como vingança. Você tolera, em seu cliente, a falta de lógica, inconsistência, suspeita, confusão, debilidade, mesquinhez etc. e reconhecer todas essas coisas desagradáveis como sintomas de sofrimento (na vida particular, essas mesmas coisas o fariam manter distância). (...) em todos estes aspectos, você é, em sua área profissional limitada, uma pessoa profundamente envolvida com sentimentos e, ainda assim, à distância, sabendo que não tem culpa da doença de seu paciente e sabendo os limites de suas possibilidade de alterar a situação de crise (apud COSTA, 2013, p. 66).

Em um outro contexto, o de uma análise geral das relações de poder, Veronese e Guareschi (2006) afimam que é preciso lembrar que a assimetria nem sempre estará ligada à dominação; algumas relações - como a da mãe-bebê, por exemplo - são assimétricas, pois os recursos materiais e imateriais para lidar com a realidade são diferentes. De modo que, outros elementos como o amor, o cuidado, o ensino, podem evitar que a assimetria evolua para a dominação nestes relacionamentos. Lobosque (2001) também tematiza esta questão, ao afirmar que, no cotidiano dos serviços, são experimentados desafios clínicos como

sustentar a assimetria indispensável ao tratamento com a igualdade igualmente indispensável no trato com pessoas que convivem conosco por vezes 12 horas, todos os dias; a montagem de um bloco de carnaval é tão importante para a equipe e para o se procura oferecer aos usuários quanto o atendimento individual (p. 110) .

Um pouco mais de Dá para fazer. Sergio, ao se apresentar para a moça que lhe atrai, deixa de ser Topo Gigio, o doente mental do médico e da mamãe - “ele continua sendo uma criança”. O suicídio de Sergio, que se segue à desilusão amorosa, faz lembrar que, junto com o reconhecimento fundamental e ético de que são pessoas – trabalhadores, namorados, amantes, amigos, sócios, consumidores15 – é preciso não esquecer o cuidado, diferentes necessidades que precisam ser respeitadas. Delicado equilíbrio, que não se alcança inteiramente o tempo todo, mas pode funcionar como horizonte sempre presente em nossas ações, entre tratar como igual (pois somos), apostando no sujeito; e oferecer o cuidado em função de cada necessidade, porque                                                                                                                

15 Luisa, que desde que engravidou solteira, teve seu filho afastado de si e vive no hospício, não sabe o tamanho de suas roupas, pois nunca mais teve a chance de comprar ou escolher o que vestir: veste as sobras de caridade que lhe são impostas.

somos diferentes (pois somos; não por um diagnóstico, somos todos, nos constituimos de forma diferente e mais ou menos congruente com o que é exigido socialmente de nós).

Um outro exemplo. Sr. Ossi diz “não tenho preferências, não sei de nada, não me toque, não me toque”. “Faça como quiser”, responde Nelo, mas para Ossi simplesmente ir à direita ou à esquerda não é uma possibilidade naquele momento. Seu colega de hospício Gofredo, mais sensível às necessidades através de sua convivência com Ossi, diz “à esquerda”, retirando-o de uma dúvida imobilizadora.

Encontrar a função de cada um, valorizando suas habilidades, potencialidades e diferenças: isto é comum com La Borde. A diferença: na vida, no território. Mas também a importância de reconhecer as necessidades e limites. Neste sentido, é preciso apostar no “dá para fazer” visando as potencialidades e no “não dá para fazer”, respeitando as necessidades e limites16. Quando se forma a cooperativa independente da tutela do hospital, se afirma que “serão tratados primeiro como trabalhadores e apenas se houver necessidade como pessoa com problemas mentais”. O desafio é estar atento para não tutelar e, ao mesmo tempo, não descuidar das necessidades tão idiossincráticas.