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CAPÍTULO 3 – CONVIVÊNCIA: FRATERNIDADE E JUSTIÇA NO CUIDADO

3.3 Justiça e Fraternidade

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“Fraternidade é nossa transcendência, porque é imanente” (DEMO, 2005, p. 90).

Sen (2011), economista indiano ganhador do prêmio Nobel, faz uma crítica à noção de justiça, chamando a atenção para a necessidade de uma compreensão da justiça que não seja indiferente às vidas que as pessoas podem de fato viver.

Este autor descreve duas linhas divergentes de teorização sobre a justiça desde o Iluminismo:

1) Institucionalismo transcendental: busca identificar arranjos institucionais justos para uma sociedade e a justiça perfeita, sustenta-se em teorias da justiça que enfocam a identificação trascendental de instituições ideais;

2) Comparação focada em realizações: sustenta-se em comparações entre as sociedades existentes, visando remover as injustiças evidentes.

Sen (2011), contrapondo-se a maioria das teorias modernas da justiça que se alinham com a primeira perspectiva de pensar uma “sociedade justa” e “instituições ideais”, busca investigar comparações baseadas nas realizações que focam o avanço ou o retrocesso da justiça. Ao invés de perguntar o que seriam instituições perfeitamente justas, a pergunta é: como a justiça seria promovida? Assim, segundo o autor, o foco estaria nas capacidades, realizações e vidas como ocorrem nas sociedades envolvidas, no lugar de focar apenas as instituções e as regras. “A perspectiva focada em realizações também facilita a compreensão da importância de prevenir injustiças manifestas no mundo, em vez de buscar o que é perfeitamente justo” (p. 51). O que move o livro de Sen é o desejo de eliminar injustiças claramente remediáveis em nosso mundo. “A democracia tem de ser julgada não apenas pelas instituições que existem formalmente, mas também por diferentes vozes, de diversas partes da população, na medida em que de fato possam ser ouvidas” (p. 15).

O autor sugere que, ao invés de apenas basear a justiça por fatores econômicos, é preciso compreender que os meios para uma vida humana minimamente satisfatória não são em si mesmos os fins. A abordagem da capacidade é orientada para a liberdade e as oportunidades, isto é, a aptidão real das pessoas para escolher viver diferentes tipos de vida ao seu alcance. A importância da capacidade reflete oportunidade e escolha, ao contrário da celebração de algum estilo de vida particular sem consideração pela preferência ou escolha. A noção de capacidade está ligada à liberdade substantiva e confere um papel de destaque à aptidão central de uma pessoa para fazer diferentes coisas que ela valoriza. A abordagem se concentra nas vidas humanas, e não apenas nos recursos que as pessoas têm.

As desvantagens, como idade, deficiência ou doença, reduzem a aptidão de uma pessoa para ganhar uma renda. Mas elas também tornam mais difícil converter a renda em capacidade, sendo que a pessoa pode precisar de mais renda para realizar os mesmos funcionamentos. “É perverso tratar igualmente gente tão desigual” (DEMO, 2006b, p. 37). Esta dificuldade de conversão é importante consideração para avaliação da ação pública para esta clientela. Para Sen (2011),

a relevância das inaptidões na compreensão das privações no mundo é muitas vezes subestimada, e esse pode ser um dos argumentos mais importantes para prestar atenção na perspectiva da capacidade. Pessoas com inaptidões físicas ou mentais estão não só entre os seres humanos mais necessitados do mundo, como também são, muitas vezes, os mais negligenciados (... ) Os 600 milhões de pessoas incapacitadas no mundo não são atormentadas apenas pela baixa renda. Sua liberdade para levar

uma vida boa está arruinada de muitas maneiras diferentes, que agem individualmente e em conjunto para pôr essas pessoas em perigo (p. 292-4).

O autor defende que muitas das consequências das inaptidões podem ser superadas com determinada assistência social e intervenção imaginativa, podendo, desde melhorar os efeitos das desvantagens, como prevenir inaptidões. Com Demo (2006b), penso que a assistência social, porque é direito à sobrevivência, é fundamental, mas não suficiente: é preciso haver cidadania. Sen (2011) considera que é necessário dar prioridade à eliminação da injustiça cotidiana - ao invés de buscar a “sociedade perfeitamente justa”. Ao longo deste capítulo, meu objetivo é justamente articular diferentes autores e argumentos para mostrar, por um lado, a necessidade ética de repensarmos uma convivência mais igualitária e justa em nossa sociedade; por outro, o reconhecimento de que esta não é tarefa fácil, implicando a superação de visões estigmatizantes, ingênuas e acríticas que permeiam muitas de nossas políticas públicas.

Para ficar no contexto da justiça, vejamos como a má-fé institucional alcança o campo da justiça brasileira (SOUZA, 2009). Em capítulo intitulado A má-fé da

Justiça, Coutinho (2009) afirma que a desigualdade social influencia a aplicação do

Direito Penal na relação entre a justiça e os réus da ralé (submetidos sistematicamente à Justiça Penal). Primeiro, a desigualdade comparece na diferença de classe entre “o aplicador do Direito e o réu da ralé, a qual determina, muitas vezes, tanto a insensibilidade de classe quanto um certo sadismo por parte dos aplicadores mais conservadores” (COUTINHO, 2009, p. 330). Esse tipo de postura conservadora, que desconsidera as características de uma classe social específica, desprovida das características aprendidas socialmente que sustentariam a chance de inserção bem- sucedida no mercado de trabalho, só consegue se manter porque encontra ressonância na sociedade, que prefere esquecer a existência dessas pessoas. Como estas pessoas são temidas, uma certa magistratura “linha dura” se perpetua como carismática, atendendo aos anseios de seu público que teme a delinquência (COUTINHO, 2009).

O racismo de classe diz respeito, como discutido ao longo deste capítulo, não somente à renda, mas à capacidade diferencial entre as classes de incorporação de disposições e de conhecimento, o que está ligado às condições estruturais e às possibilidades de transmissão afetiva de hábitos e modos de viver que permitam e potencializem sua aquisição (COUTINHO, 2009).

A precariedade da socialização dessas pessoas impede a internalização de princípios normativos como dever e responsabilidade, sejam eles derivados de normas estatais (leis, sentenças) ou sociais. Um sujeito de direito não é criado pela lei, mas socialmente construído. A internalização de valores socialmente compartilhados depende de uma série de experiências, de um aprendizado no qual o interesse afetivo por reconhecimento incentive o respeito às normas. A incorporação da noção de dever ocorre a partir de experiências nas quais o atendimento às regras, desde a infância, gera prêmios como admiração e respeito. Ou seja, saber, cognitivamente, da obrigatoriedade da norma é uma forma de percepção muito distinta da efetiva compreensão dos valores que subjazem à norma. Incorporar a norma de modo a fazer com que ela presida práticas, comportamento, é diferente de simplesmente sentir medo da sanção, que é consequência do não atendimento à norma. Ao contrário do que pensam os defensores do aumento das penas e da diminuição da maioridade penal, o medo ou mesmo o terror pela sanção não são os mecanismos psicológicos que levam à incorporação da disciplina (COUTINHO, 2009, p. 340).

De modo algum, estou aqui a julgar como culpa, ao contrário, juntamente com Souza (2009) e Coutinho (2009), estou denunciando a culpabilização do indivíduo como parte da estratégia de manutenção da desigualdade. Esta é questão fundamental para não reproduzirmos o preconceito que aqui pretendemos denunciar. O grande mérito do livro de Souza (2009) e, em especial, este capítulo sobre a justiça de Coutinho, é mostrar que, junto com a rotulação, a realidade cotidiana de convívio apresenta processos que sustentam as diferentes classes sociais. “Todos nós sabemos o quanto o Brasil é um país desigual. Nosso objetivo é ultrapassar essa simples constatação óbvia, e mostrar como essa desigualdade condiciona radicalmente a ação do Estado” (p. 348).

O esquecimento da ralé enquanto classe social e a punição de seus membros como indivíduos permite a compreensão do funcionamento da má-fé institucional. Como o sistema penal não está preparado para intervir nos processos de socialização primária - que potencializam a aquisição de habilidades e disposições que garantem ou dificultam a inclusão no mercado -, o Direito Penal se torna uma política de controle social com a tarefa de “proteger” os privilegiados da “ameaça” da ralé, ao invés de uma instância que teria como função ser a base normativa da proteção dos direitos humanos fundamentais (SOUZA, 2009).

Sen (2011), pensando a justiça mundial, defende que não devemos nos abater ou nos furtar do desafio de avaliar as capacidades – e não apenas a renda ou a utilidade - se queremos diminuir a injustiça no mundo. A leitura de Souza (2009) sobre a desigualdade na realidade brasileira traz importante contribuição para que esta avaliação leve em consideração verdadeira e concretamente as dificuldades e incapacidades de nossa clientela. Sen (2011) entende que a métrica das capacidades – ainda que ordenação parcial e incompleta – é superior à métrica dos recursos, pois se

concentra nos fins e não nos meios, lida melhor com a discriminação contra pessoas incapacitadas, é sensível às variações individuais e é apropriada para orientar uma justa prestação de serviços públicos, em especial na saúde e na educação63.

Pick (2010) propõe um modelo abrangente de desenvolvimento sustentável – inspirado nas ideias de Sen - que tem como objetivo aprimorar as capacidades, valorizando tanto os aspectos contextuais quanto individuais como componentes essenciais de políticas e programas de mudança social. A autora discute como normas sócio-culturais podem funcionar como facilitadores ou como barreiras para o desenvolvimento pessoal e comunitário. Usando o México como exemplo, mostra barreiras psicológicas, como medo, vergonha e culpa, especialmente em uma situação de pobreza, que podem gerar impedimentos para escolhas pessoais e comportamentos. A autora parte da ideia de Sen de que a pobreza – mais do que falta de insumos – é a privação de capacidades. Para a autora, desigualdades psicológicas e educacionais acumuladas compõem os efeitos prejudiciais das disparidades econômicas. “Desigualdades sistêmicas diminuem oportunidades existentes e as oportunidades percebidas e podem facilmente levar a uma condição de auto-perpetuação da injustiça social, contribuindo por sua vez para mais desigualdade” (PICK, 2010, p. 5, tradução livre).

Em uma situação de desigualdade pode ser muito difícil para uma pessoa perceber – mesmo se disponível – uma oportunidade. Neste sentido, o cálculo baseado apenas em uma idealizada felicidade ou satisfação dos desejos pode ser injusto com quem passa privações de forma consistente, haja visto que nossa disposição mental tende a se ajustar às circunstâncias, por mais adversas que sejam (SEN, 2011). Sem nunca ter tido, é difícil saber o que é ter... Para o autor, as pequenas oportunidades das quais as pessoas tentam retirar algum prazer tendem a reduzir seu sofrimento mental, mas sem eliminar ou mesmo reduzir substancialmente as privações reais que caracterizam suas vidas empobrecidas64. “Desconsiderar a

intensidade de sua desvantagem apenas por causa de sua capacidade de experimentar

                                                                                                               

63 Devo a Susan Pick, quando de sua avaliação do projeto desta tese de doutoramento no Colégio Doutoral no XXXIV Congresso Interamerico de Psicologia, em 15/07/2013, a indicação da abordagem das capacidades de Amartya Sen para pensar a convivência no campo da saúde mental.

64  Juliana Pacheco, a partir de sua experiência de cuidado no cotidiano de um CAPS no DF, traça um

paralelo com a situação das pessoas em depressão que nunca podem ser vistas nas ruas, especialmente em situações de lazer, pois senão são vistas pelos pares e pelos profissionais como pessoas falsas e fingidas.

um pouco de alegria em suas vidas não é um bom caminho para alcançar uma compreensão adequada das exigências da justiça social” (p. 318).

Como as capacidades se relacionam com o bem-estar de uma pessoa? A capacidade é um aspecto da liberdade e se concentra especialmente nas oportunidades substantivas65. Neste sentido, a capacidade é uma perspectiva, segundo a qual, as

vantagens e desvantagens de uma pessoa podem ser avaliadas. Para o autor, a liberdade está associada à capacidade de uma pessoa de produzir os objetos de sua escolha. Neste sentido, tanto a igualdade como a liberdade devem ser vistas como multidimensionais dentro de seus amplos conteúdos e a capacidade de uma pessoa pode ser caracterizada como liberdade para o bem-estar e como liberdade da agência66.

não somos apenas “pacientes” cujas necessidades merecem consideração, mas também “agentes” cuja liberdade de decidir o que valorizar e a forma de buscá-lo pode se estender muito além de nossos próprios interesses e necessidades. O significado de nossa vida não pode ser colocado na caixinha de nossos padrões de vida ou da satisfação de nossas necessidades. As necessidades manifestas do paciente, por mais importantes que sejam, não podem eclipsar a relevância vital dos valores arrazoados do agente (p. 286).

A liberdade da agência pode ser contrária à busca solitária do bem-estar pessoal, no sentido de que mais capacidade potencializa a influência sobre a vida de outras pessoas, de modo que uma pessoa pode ter uma boa razão para utilizar a capacidade para melhorar a vida dos outros, ao invés de se concentrar apenas em seu próprio bem-estar (SEN, 2011).

Como promover uma convivência mais fraterna, onde agentes escolham utilizar a capacidade para melhorar a vida dos outros? Há lugar para a justiça e a fraternidade na contemporaneidade?

Mas é o desafio dos desafios: forjar uma sociedade humana que possa prezar mais a fraternidade de todos do que privilégios de alguns. Embora sem descartar as mensagens absolutas, sobrenaturais, este desidrato pode ser nutrido apenas com éticas imanentes, que acreditam na fraternidade possível (DEMO, 2005, p. 92).

                                                                                                               

65 Liberdades substantivas: ensino gratuito, cuidados básicos de saúde, etc; liberdades “negativas”: direitos às liberdades pessoais, ou seja, exigem a ausência de interferência intrusiva dos outros e do Estado (SEN, 2011).

66 Agência: dimensão que define primariamente um agente como produtor de realizações que considera valiosas – julgadas em termos de seus próprios valores e objetivos – e que não necessariamente se conectam a seu próprio bem-estar (SEN, 2011).

Kehl (2000), ao perguntar se existe uma função fraterna, propõe pensar a contribuição do semelhante, do outro – a começar pelo irmão - em nossa estruturação psíquica. Vai chamar de função para salientar o caráter necessário, e não apenas contigente ou complementar, da participação do semelhante no processo de nos tornarmos sujeitos. A semelhança na diferença seria a condição fundamental da convivência fraterna. Partindo do princípio de que “nem toda coletividade está pedindo um Fuhrer” (p. 32), a autora pretende examinar outros modos de operação da relação do sujeito com os semelhantes.

Situa três planos da função do semelhante. Primeiro, o papel do irmão, como um duplo, que desestabiliza a identidade imaginária da criança, ao introduzir na organização narcísica infantil um confronto com uma máxima semelhança e uma diferença inevitável (KEHL, 2000).

Entre irmãos, o sobrenome paterno é apenas um dos nomes do sujeito; o menos importante, aliás, já que designa ao mesmo tempo vários e tão diferentes sujeitos. A função fraterna faz, portanto, suplência à função paterna, na medida em que possibilita separar a lei da autoridade do pai real (p. 39).

Neste sentido, as relações fraternas não precisam estar fadadas à rivalidade e ao ciúmes; é possível uma passagem da hostilidade à ternura e da “horda à fratria”. Para a autora, as experiências cotidianas compartilhadas com os irmãos podem permitir a quebra da ilusão identitária para o sujeito, ao produzir um campo horizontal de identificações entre os semelhantes, que são secundárias em relação à identificação com o ideal representado pelo pai, mas, ao mesmo tempo, essenciais, no sentido da diversificação que pode possibilitar quanto aos destinos pulsionais que precisam ser constituídos pela vida afora (KEHL, 2000).

A segunda função do semelhante se situaria na adolescência, período em que as experiências compartilhadas, ao mesmo tempo que confirmam, relativizam a verdade absoluta da palavra paterna, o que possibilita ao sujeito um reconhecimento como criador de novos fatos sociais. Para a autora, este momento é uma espécie de reedição, só que desta vez projetado para o campo da sociabilidade, não mais restrita ao contexto familiar.

Por fim, o terceiro nível da função do semelhante seria a “abertura de um campo anônimo de circulação e transmissão de saberes” (KEHL, 2000, p. 45). Ou seja, aqui a fratria teria como objetivo propiciar respaldo para experiências com os limites, a partir da “circulação da palavra em sua multiplicidade de sentidos” (idem). Mas

para ter esse efeito, a fratria não deve ter vida longa, forma-se e desfaz-se, proporcionando cumplicidade e proteção afetiva. Para Kehl (2000), aqui é preciso cuidar para evitar o “narcisismo das pequenas diferenças” que produz segregação e intolerância, através da cristalização das fratrias.

O risco é que, contrariando sua origem marcada pela diversidade, a fratria se cristalize sob a marca da intolerância e segregação, como no preconceito de classe acima discutido. “Até que o próprio trato com a liberdade possa conduzir os sujeitos, marcados pelas identificações fraternas, para outros campos de experiência, fora da fratria” (p. 46). Como criar condições para que isto aconteça e considerando as diferentes classes sociais?

Costa (2000), ao perguntar “quem tem medo dos irmãos?”, questiona o apelo incessante à função paterna e faz uma passagem de Freud a Winnicott no entendimento sobre a cultura: “a cultura não é o frágil remédio para a incurável dor pulsional do ser; é a faceta da vida psíquica que nos permite criar e manter vivo o gosto de viver. Ela não é só o que diz “não!” à pulsão; é o que diz “sim!” à imaginação criativa” (p. 25). Na perspectiva do autor, a cultura é entendida como condição de cooperação entre os pares que permite a criação da diversidade, da experimentação e do desejo de aperfeiçoar (COSTA, 2000).

Lajonquière (2000), também ocupado com a função fraterna, afirma que “para evitarmos o excessivo perigo derivado de atrelar os destinos do socius tanto a um Deus quanto aos coronéis de plantão, só resta aos homens lembrar que sua orfandade os condena a inventar uma aliança igualitária de direitos” (p. 71). Para o autor, a fraternidade, diferente da igualdade e liberdade, jamais foi elevada ao estatuto de preceito legal: mais do que direito, a fraternidade é uma ética.

Ao considerar as diferentes funções que o semelhante exerce na constituição subjetiva, evidencia-se também a preocupação de Figueiredo (2000) com as dificuldades de instalar em nossa vida democrática modos fraternos de convivência. Para ele, está inscrita uma duplicidade no presente psíquico na constituição subjetiva dos indivíduos: a égide do pátrio poder, em sua função mítica de proteção e o terror da absoluta tutela que se desdobra desta proteção, por um lado, e, por outro, a autonomia solidária da fraternidade, em sua função mítica de justiça, liberdade e autonomia e a anarquia que se desdobra desta autonomia (FIGUEIREDO, 2000). Para o autor, esta duplicidade também está presente nas diversas configurações sociopolíticas que representam diferentes modos de composição da mesma.

A maior parte do tempo existimos no seio de grupos e organizações relativamente estáveis em que um certo equilíbrio se mantém entre a presença do pai – representado por alguma figura de autoridade – e os laços fraternos – encarnados em alguma forma de solidariedade. É importante reconhecer como estes dois eixos – o eixo horizontal das relações fraternas e o eixo vertical da filiação – se entrelaçam necessariamente (FIGUEIREDO, 2000, p. 156).

Vale dizer que não existem sozinhos, separados, e são ambos originários: mesmo um déspota depende de alguma forma de solidariedade fraterna e não é possível visualizar uma fraternidade plena. O que, apesar de assinalar os limites, não exclui, para o autor, a luta pela democracia, autonomia e generosidade entre irmãos (também inscrita em nosso psiquismo). Penso que, para construir uma convivência igualitária e fraterna, torna-se necessária uma composição entre o eixo da autoridade67 e o eixo das relações fraternas. Especialmente no campo da saúde mental, considerando as inaptidões (SEN, 2011) e os desafios e limites vividos de forma cotidiana68 (VASCONCELOS, 2003), este delicado equilíbrio é uma exigência para que o cuidado seja emancipatório.

Birman (2000) acrescenta que a recente ênfase na fraternidade – para o autor, esta é uma categoria ética que anuncia uma outra concepção de subjetividade em que a alteridade não é esvaziada na relação com o outro e este não é reduzido a um mero objeto - é um antídoto aos imperativos da sociedade do espetáculo e da cultura do narcisismo. Ao discutir o filme de Almódovar, Tudo sobre minha mãe, em especial a personagem de Agrado69, afirma que esta

começa a constituir em torno de si uma rede de mulheres que compartilham os seus desencantos com a vida, mas sem nenhum traço melancólico. Pelo contrário, foi a constitução desta rede de ajuda mútua que as retirou todas de uma tonalidade depressiva e queixosa de existir, dando a todas alento para desfrutar a vida sem queixumes (p. 179).

                                                                                                               

67 Com Demo (2005), conforme foi discutido ao longo do capítulo, penso aqui na autoridade do argumento e não no argumento de autoridade.

68  Vasconcelos (2003) lista desafios de vários tipos, vividos de forma cotidiana, pelas pessoas com sofrimento psíquico: os períodos de piora ou crise aguda; as ameaças e limitação colocadas à vida