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CAPÍTULO 1 A CONVIVÊNCIA NO CONTEXTO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

1.1 A convivência como dispositivo

Foucault (2008), em Microfísica do Poder, indagado sobre o que denominou de um “dispositivo de sexualidade”. Esclarece que através deste termo, dispositivo, tenta

demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (p. 138 ).

Entre estes elementos heterogêneos, discursivos ou não, estabelece-se um jogo de relações: uma espécie de jogo com posições diferentes e mudanças de funções, de modo que o discurso pode se mostrar como programa de uma instituição ou, “ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade” (p. 138).  

Além de ser composto por elementos heterogêneos, o dispositivo, para o autor, tem uma gênese específica: é uma formação que tem como principal função responder a uma emergência em um determinado momento histórico. Exemplifica o dispositivo de dominação-controle da loucura como uma resposta para a absorção de um “excedente” de pessoas numa economia mercantilista.  

Situa dois momentos essenciais presentes na gênese do dispositivo, no primeiro, predomina um objetivo estratégico, depois, o dispositivo se constitui como tal em um duplo processo:  

 

por um lado, processo de sobredeterminação funcional, pois cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de perpétuo preenchimento estratégico (2008, p. 139).  

 

O dispositivo é de natureza essencialmente estratégica, está em jogo uma manipulação das relações de força, de forma que o dispositivo está inscrito sempre em um jogo de poder, ligado a configurações de saber que o sustentam e são sustentadas por ele (FOUCAULT, 2008).

Nesta direção, pensar a convivência como um dispositivo pressupõe delimitar seus elementos heterogêneos e sua especificidade estratégica, em que campos de força se situa e a que saberes se vincula e se opõe.  

Neste trabalho, a convivência situa-se no campo da atenção psicossocial no Brasil, cuja política de saúde mental é inspirada na experiência italiana de desinstitucionalização. O dispositivo convivência é aqui entendido como fazendo parte de um conjunto de dispositivos que visam construir uma outra resposta social à loucura (TENÓRIO, 2001), ao excedente, ao que não encontra lugar (FOUCAULT, 2008). De certo modo, um dispositivo que se configura como uma reação ao dispositivo de dominação-controle da loucura.

Estudar a convivência enquanto um dispositivo de cuidado, em suas inseparáveis e entrelaçadas dimensões ética, política e clínica, implica em pesquisar como os processos de convivência podem levar à inclusão social, pois conhecemos várias formas de estar com que são alienantes. O manicômio é uma – se não a maior – das mais graves experiências de exclusão da subjetividade (LOBOSQUE, 2001; FOUCAULT, 2002; BASAGLIA, 1985). Kastrup e Barros (2010) afirmam, inspiradas em Foucault, mas também na releitura de Foucault feita por Deleuze, que um dispositivo, além de comportar linhas de força que levam as palavras e as coisas à uma luta incessante por afirmação, comportam linhas de subjetivação, “linhas que inventam modos de existir” (p. 78). As autoras, ocupadas em problematizar as funções do dispositivo na prática de pesquisa cartográfica de acompanhamento de processos de produção de subjetividade, demarcam que os agenciamentos

engendrados pelo dispositivo devem revelar a potência de fazer falar, fazer ver e estabelecer relações. Para Deleuze (1996), nem todo dispositivo dispõe de um processo de individuação que escape às forças estabelecidas e aos saberes constituídos. Neste trabalho, ainda que a metodologia utilizada, conforme capítulo 5, não seja a cartografia com seu objetivo de desemaranhar as linhas de um dispositivo, será feito um esforço para construir, no contexto do CAPS, uma forma de conviver, que acolhendo as dores e alegrias, e também, principalmente, os confrontos, possa se constituir como um dispositivo propulsor de processos de individuação/subjetivação.

Um dos aspectos mais interessantes na leitura de Deleuze (1996) do conceito de dispositivo em Foucault é a ideia de que, a partir de um “repúdio dos universais”, o dispositivo seja uma multiplicidade que se define por sua capacidade de se transformar no que detém de novidade e criatividade. “É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual” (DELEUZE, 1996, p. 4).

Delgado (2015) aponta a co-existência de dois paradigmas no campo da saúde mental brasileira (biomédico e psicossocial), de modo que tentar fazer da convivência um dispositivo de cuidado é uma estratégia para ajudar na consolidação do campo da atenção psicossocial. Kinoshita (2001), ao refletir sobre as condições para que um paciente, após a desmontagem do manicômio, possa participar do processo de trocas sociais, afirma ser importante “produzir dispositivos em que, desde uma situação de desvalor quase absoluto (pressuposto), possa-se passar por experimentações, mediações, que busquem adjudicar valores aptos para o intercâmbio” (p. 56). A convivência aqui está sendo compreendida como uma estratégia de produção subjetiva a partir de intercâmbios e relações interpessoais.

O que conhecemos como reforma psiquiátrica e como desinstitucionalização deixou de ser uma reforma administrativa de serviços, uma reforma de modelo assistencial e de introdução de novas tecnologias assistenciais, para ser um processo social complexo, nas palavras de Franco Rotelli, um processo dinâmico e permanente que envolve atores, invenção de dispositivos e múltiplas estratégias (SADE, 2014, p. 13).

Do ponto de vista clínico, a convivência está sendo concebida como um dispositivo, mais um, substitutivo, no campo da atenção psicossocial. Do ponto de vista político e ético, a convivência está sendo abordada como uma reação contra os dispositivos de controle. Agamben (2005) faz uma leitura, desse mesmo texto de Foucault, diferente de Deleuze (1996). O filósofo italiano considera que o conceito de

dispositivo está ligado ao conceito de “positividade” de Foucault, enquanto relação entre os indivíduos e o elemento histórico, entendido este como o conjunto de instituições, processos de subjetivação e regras em que se concretizam as relações de poder. A partir dessa associação, Agamben (2005) entende o dispositivo como algo que tem a capacidade de capturar, controlar, modelar, determinar os gestos, discursos, condutas e opiniões. “O dispositivo é, na realidade, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo” (p. 15).

Por considerar que os dispositivos da fase atual do capitalismo agem por processos de dessubjetivação, sugere que os dispositivos devam ser “profanados”: a profanação8 funciona como um contradispositivo que permite incidir não apenas no próprio dispositivo, mas sobre os processos de subjetivação. A tentativa e o esforço no presente trabalho é de, através da convivência, modificar o dispositivo terapêutico clássico visando produzir processos de subjetivação que respeitem o modo próprio de simbolização e de experiência de cada um em relações mais horizontalizadas. Neste sentido, na terminologia de Agamben, a convivência, tal como tentarei implementar, seria um contradispositivo.

O entendimento da convivência, no contexto deste trabalho, está imerso na heterogeneidade que constitui o campo da saúde mental no Brasil, mas, ao mesmo tempo, atrelado a um conjunto de princípios: território, rede, reabilitação psicossocial, contratualidade, empoderamento, autonomia, indissociabilidade clínica-política, cidadania, inclusão social, entre outros. Encontra sua especificidade estratégica justamente neste esforço, neste campo, de transformar as formas de lidar com o sofrimento psíquico no social.  

Situa-se em campos de força, posicionando-se a partir da noção de enfrentamento do preconceito presente na raiz do conceito de doença mental. Vincula-se a um campo heterogêneo de saberes: não se circunscreve a nenhum, daí, a inseparável vinculação clínica e política que está sendo problematizada neste trabalho.