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A dimensão política da convivência como dispositivo de cuidado: questionamento e autoquestionamento

CAPÍTULO 3 – CONVIVÊNCIA: FRATERNIDADE E JUSTIÇA NO CUIDADO

3.5 A dimensão política da convivência como dispositivo de cuidado: questionamento e autoquestionamento

“Além de tudo, não há como querer ser consequente com esta perspectiva ética e política mais ampla e ao mesmo tempo tentar se colocar de fora desse debate, simplesmente porque não é possível posiconar-

se fora das relações de poder que atravessam desde o cotidiano até as dimensões mais estruturais dos processos sociais e políticos” (VASCONCELOS, 2003, p. 54).

Neste último tópico, procuro caracterizar a dimensão política da convivência como um dispositivo de cuidado, deixando-me ser afetada e interpelada pelos autores com quem dialoguei neste capítulo. Para que a convivência se configure como um dispositivo de cuidado em saúde mental que cumpra seu papel político desinstitucionalizador e promotor de cidadania, é preciso questionar as políticas, práticas e discursos que se pretendem inclusivos, mas que podem, conforme afirmei ao longo do capítulo, resultar em uma prática excludente. As mais diversas políticas públicas, por serem apenas ajustes que não colocam efetivamente em questão a desigualdade, produzem mais individualismo, desemprego, desassistência ou assistencialismo e intolerância em um modo precário, degradante e marginal de inclusão (SCARCELLI, 2011; DEMO, 1998, 2006a). Na prática, o efeito é de exclusão, dificultando ou incapacitando para o confronto, subordinando a cidadania ao mercado, inibindo cidadanias (DEMO, 2006a; PIRES, 2004, SCARCELLI, 2011). Está em jogo uma questão de poder: incapacitados para o confronto, pobres e loucos não têm as mesmas armas. O que precisa ser questionada é exatamente a legitimação da desigualdade e do abandono, consentido por todos, de milhares de pessoas excluídas das oportunidades materiais e simbólicas76, situação que dificulta demasiadamente transformar uma oportunidade em capacidade (SEN, 2011).

Esta reprodução da desigualdade social está presente no interior das instituições públicas de saúde – a má-fé institucional – , de sorte que a desigualdade condiciona a ação do Estado, que age como se fosse necessário apenas uma ajuda passageira e pontual para enfrentar a desigualdade (SOUZA, 2009), desconsiderando que a exclusão social está sustentada na diferença de classe construída através do processo de identificação emocional e afetiva com o círculo social (idem) e, no caso da saúde mental, também na diferença no modo de organizar o sofrimento. Em uma sociedade alérgica à diferença (SEN, 2011), estamos, no campo da saúde mental,                                                                                                                

76  As precondições emocionais, sociais, familiares e econômicas são diferentes em cada classe, mas os

pressupostos aprendidos de uma classe passam a valer para todos, como se as condições de vida fossem as mesmas (SOUZA, 2009).  

convivendo com pessoas desempoderadas por uma conjugação de razões. Levar em consideração que as normas sócio-culturais podem funcionar como facilitadores ou barreiras para o desenvolvimento pessoal e comunitário (PICK, 2010), o esquecimento do social no individual (SOUZA, 2009), conjugado com o “narcisismo das pequenas diferenças” (KEHL, 2000), com as desvantagens que reduzem a aptidão para ganhar uma renda e tornam mais difícil converter a renda em capacidade (SEN, 2011) e com o processo histórico de exclusão que transformou a pessoa com sofrimento psíquico grave (COSTA, 2003) em um monstro biológico e um monstro social (BASAGLIA, 2005), permite perceber a dura realidade dos serviços de saúde mental, mesmo aqueles que se propõem substitutivos ao hospital psiquiátrico.

Certamente a desigualdade e a exclusão social que se desdobra - afinal o que está em jogo não é apenas o critério que define quem está dentro ou fora, mas o uso político que fazemos ao agrupar por classes e assim criar segregação e preconceitos (SCARCELLI, 2011) – configuram-se como dificuldades centrais na tarefa de construir uma convivência igualitária. Está presente a dificuldade de conviver com a pluralidade humana; no grupo irmãos, nos outros inimigos (DEMO, 2005), fazendo das diferenças sinal de desigualdade.

A convivência é fenômeno complexo, por isso para gestar acordos a partir de um pensar conjuntamente (DEMO, 2005), além desse questionamento, é necessário também, acima de tudo, um autoquestionamento: reconhecer nossos pressupostos e preconceitos, nossa formação e atuação autoritárias e moralistas, valorizar a crítica que vem do outro, buscar o bem comum acima do interesse próprio (DEMO, 2005; BOHM, 2005).

Como construir uma convivência igualitária e fraterna? Por certo, não tenho a pretensão de responder semelhante demanda. Busco, no entanto, na medida do possível e com a ajuda de diferentes reflexões e autores, especificar alguns princípios que nos orientem no cotidiano dos serviços de saúde mental a instaurar um cuidado que seja mais sensível à pluralidade humana. Reconhecer as necessidades singulares das pessoas, do ponto de vista do sofrimento psíquico e das condições sociais que interferem na manutenção da exclusão, é primeiro passo para ajudar a construir políticas públicas e uma atuação que sejam sensíveis à concreta realidade – desigual – brasileira. A convivência se articulada com a politicidade (DEMO, 2006a) - entendida como habilidade para equilibrar autonomia e empoderamento; habilidade de não se impor em demasia, em ceder sem abrir mão do ser - pode ajudar a construir uma

atuação mais crítica, política e amorosa. Parece-me que um antídoto para combater a desigualdade é o esforço para construir uma convivência igualitária. O desafio da convivência igualitária é gerenciar as grandes desigualdades de oportunidades e usufrutos, em um esforço para transformar em relativa igualdade as diferenças, o que exige um relativo equilíbrio entre conflito e harmonia, uma dose de confronto e uma dose de solidariedade, objetivando a prevalência do bem comum (DEMO, 2005).

Destarte, por um lado é necessário cultivar dimensões como generosidade, solidariedade e modéstia para cuidar sem tutelar. Por outro, é mister, através do questionamento e autoquestionamento acima desenvolvidos, desenvolver ações no campo da saúde mental que facultem construir verdadeiramente com os usuários de saúde mental um empoderamento pessoal e coletivo. Creio que este seja o significado de uma convivência igualitária no campo da saúde mental: ser sensível às diferenças, superando visões estigmatizantes e acríticas para combater, ao mesmo tempo, a pobreza política (DEMO, 2006b) e os preconceitos de incapacidade e periculosidade construídos historicamente (FOUCAULT, 1993, 2002; BASAGLIA, 1985, 2005). Neste sentido, a convivência igualitária no campo da saúde mental requer, por um lado, um certo “desempoderamento” dos profissionais de saúde – somos insuficientes! – para estabelecer com os usuários de saúde mental uma relação horizontalizada em uma espécie de companheirismo difuso77. Por outro lado, implica em uma construção coletiva de empoderamento e autonomia dos usuários que ultrapassa os serviços e alcança o espaço social, transformando as relações sociais. “Significa passar de técnico a agente público de mudança, de ‘paciente’ a cidadão, de ‘doente’ à pessoa humana, capaz tanto de sapiência criativa, quanto demolição destruidora, mas na perfeita imperfeição que conforma o ser humano enquanto vida” (PIRES, 2004, p. 248). Está claro que não é empreitada fácil, mas horizonte ético para nossas ações: é assim que interpreto o objetivo desinstitucionalizador de nossa política nacional de saúde mental.

Já um antídoto para combater a injustiça – outra face da desigualdade – é a convivência fraterna. Como promover uma convivência fraterna onde as pessoas escolham utilizar a capacidade para melhorar a vida dos outros? Se com Kehl (2000) consideramos que a participação do semelhante no processo de nos tornarmos sujeitos                                                                                                                

77 Por companheirismo difuso, Bohm (2005) descreve a possibilidade de - ao compartilhar nossos afetos, inclusive, a frustração e nossa raiva mútua, frente a diferentes opiniões e pressupostos - permanecermos dialogando. Se conseguirmos, ao final perceberemos que somos iguais e com isso poderemos desenvolver uma relação mais participativa e companheira.

não é contingente, tampouco complementar, mas necessária, a semelhança na diferença é condição fundamental para a convivência fraterna. A fratria, se não se cristaliza - contrariando sua origem marcada pela diversidade - permite cumplicidade e proteção afetiva (KEHL, 2000). Para instalar modos fraternos de convivência é necessária uma composição entre os eixos do pátrio poder e da autonomia solidária da fraternidade – ambas, segundo Figueiredo (2000), presentes na constituição subjetiva dos indivíduos e das sociedades. Referindo especificamente o campo da saúde mental, visar o empoderamento (VASCONCELOS, 2003) exige delicado equilíbrio para construir o cuidado como emancipação (PIRES, 2004).

A alteridade é traço fundamental do laço fraterno: reconhecer a diferença é vital para que o cuidado exista. Para que o cuidado tenha potencial transformador, afigura-se fundamental também nos reconhecermos como incompletos e insuficientes, estado que exige esforço para esvaziar a pretensão em nós de auto-suficiência (BIRMAN, 2000) e de autoridade enquanto princípio que sustenta a instituição em nome da “eficiência” (BASAGLIA, 2005). O que se visa é uma sociedade mais justa, revertendo a má-fé institucional dos serviços de saúde e de justiça: ambos atingem o campo e o cuidado na saúde mental. Um sujeito de direito (MUSSE, 2008) não é criado por lei, mas socialmente construído e esta é uma de nossas tarefas de cuidado no campo da saúde mental.

A defesa de éticas relativas e plurais (DEMO, 2005) e a supressão dos pressupostos em direção a fazer algo em comum no diálogo (BOHM, 2005) podem ajudar na construção de uma convivência igualitária e fraterna. Isto porque as éticas plurais possuem uma qualidade política que demanda habilidade de lidar com os conflitos de modo coletivo, com espírito crítico e calcado na autoridade do argumento (DEMO, 2002, 2005). Já o diálogo, tal como proposto por Bohm (2005), pode funcionar como uma estratégia para sustentar éticas plurais. Nesta proposta, como discuti acima, o diálogo é uma forma de participação – jogamos com e não contra -, para compartilhar e fazer parte. Ao compartilhar opiniões sem hostilidade, ao suspender nossos pressupostos, seremos capazes de, ao invés de defender opiniões, pensar juntos. Podemos nos “desidentificar” de nossas opiniões em prol de um projeto maior de construção coletiva, no nosso caso, de um cuidado que, respeitando, gerenciando e valorizando as diferenças, seja emancipador, isto é, com potencialidade para desconstruir progressivamente as assimetrias de poder.

Pires (2004), em sua tese de doutoramento, realizou um estudo sobre o Programa Saúde da Família, avaliando a polticidade do cuidado como uma referência para a gestão de políticas públicas. A autora concebe a politicidade do cuidado como uma referência emancipatória, a partir do triedo, conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar e cuidar para emancipar. No conhecer para cuidar melhor objetiva-se compreender as relações de ajudar-poder na política de saúde à luz do contexto sócio- histórico em que são produzidas; no cuidar para confrontar está em jogo a “tensão propulsiva e restritiva presente na relação do cuidar” (p. 150); e no cuidar para emancipar a possibilidade de re-ordenar desigualdades, ao visar a formação de sujeitos críticos e atuantes, em uma atitude de substituir a submissão pelo protagonismo no contexto em que se inserem (PIRES, 2004). “É precisamente pelo entendimento cada vez mais amplo e solidário da realidade que o cuidado se modifica, reinventando politicidades potencialmente cidadãs” (PIRES, 2004, p. 52).

O diálogo propugnado como um modo coletivo de abertura mental e afetiva para todas as opiniões (BOHM, 2005) se configura na possibilidade de os profissionais de saúde se permitirem não estar tão siderados por suas teorias e técnicas, e colocarem-se em uma disposição afetiva para ouvir e compartilhar, procurando construir algo junto com os usuários de saúde mental. O que destaco aqui é a necessidade da valorização de uma dimensão afetiva em nossa formação – e por consequência atuação. Se os pensamentos são investidos de afeto e retiram da afetividade sua energia criativa (DEMO, 2005), nossas teorias e técnicas precisam ser invadidas pelo afeto que se constrói em uma convivência igualitária e fraterna, entre iguais e diferentes, exigindo uma combinação de confronto e solidariedade.

Algumas características do grupo de diálogo proposto por Bohm (2005) podem ajudar a construir esta forma de convivência:

a) o papel do facilitador: sua função é, o mais rápido possível, retirar-se desta tarefa, de modo que os participantes dependam cada vez menos dele, transformando-se, por fim, em apenas mais um membro;

b) É um espaço aberto, livre e vazio:

num grupo de diálogo, não decidimos o que fazer a respeito de nada. Isso é crucial. De outra maneira, não seríamos livres. Devemos ter um espaço vazio, no qual não somos obrigados a fazer nada nem chegar a quaisquer conclusões, nem a dizer seja o que for, ou mesmo a não falar. (...) a palavra “lazer” significa uma espécie de espaço vazio. “Ocupado” é o oposto do lazer: o espaço está preenchido. Assim, num grupo de diálogo há uma

espécie de espaço vago no qual qualquer coisa pode entrar. Ao terminar, nós apenas o esvaziamos de novo (p. 51).

Ainda claro que no contexto dos serviços de saúde mental tenhamos alguma agenda - isto é, o cuidado - as sugestões de Bohm (2005) para o diálogo, especialmente se temos como horizonte a convivência igualitária (DEMO, 2005), podem ser úteis. Conforme será discutido na análise do grupo de convivência, parece- me que a convivência, no contexto do CAPS, está, em certa medida e segundo formas que serão explicitadas, mais próxima do lazer do que da ocupação; o que em nada modifica a responsabilidade do profissional em relação ao cuidado, ao contrário, exige postura ainda mais ética: refletir a cada vez sobre os efeitos de nossas ações. Alienantes ou emancipatórios? Produziram descuido ou estavam sintonizadas às necessidades e diferenças de cada um? Inutéis ou produziram alguma mudança na vida cotidiana, ajudando a transformar as formas de lidar com o sofrimento?

c) Não evitar o conflito, a frustração:

é necessário, portanto, que você se dê conta das conexões que existem entre os pensamentos que acontecem no diálogo, as sensações corporais e as emoções. Se observar bem, verá, com base na linguagem corporal e também na verbal, que todos estão no mesmo barco – só que em lados opostos. O grupo pode até mesmo se polarizar, de modo que acabará se transformando em duas facções poderosas e antagônicas. Mas umas das coisas que queremos é que isso aconteça. Não tentamos evitar essa situação (p. 55-6).

Como Demo (2006a) ensina, convivência também é confronto, ainda que busquemos evitar os extremos: a guerra não é condição normal, mas encobrir o confronto é posição alienante.

d) Necessidade de proporcionar oportunidades suficientes para que todos falem, de modo que não haja lugar para a autoridade ou hierarquia: é preciso um lugar marcado por uma disponibilidade tal que permita que se fale sobre qualquer coisa e que os diversos modos de pensar encontrem acolhida. Novamente, no capítulo 6, na análise das intervenções realizadas no CAPS a partir da convivência, será problemtizado um movimento em direção a uma flexibilização dos papéis.

Encerro o capítulo com a postura ética de Demo (2005) que me inspira como Lévinas no capítulo anterior78:

Liberdade implica a liberdade do outro. Não é assim que minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro, mas é assim que o exercício da liberdade penetra a liberdade do outro e vice-versa, de tal sorte que será sempre necesssário negociar um tipo aceitável de convivência para ambas as partes. Autonomia supõe, assim, a habilidade de se impor, bem como de ceder. Como meu comportamento impacta o comportamento do outro, sou responsável por isto. Não posso alegar que nada tenho a ver. Tenho tudo a ver, não por conta de apelos moralistas ou religiosos, mas por conta da dialética da convivência humana. A arte maior está em construir sociedades igualitárias, nas quais seja possível orquestrar em relativa igualdade as diferenças irredutíveis. De um lado, não é viável tratar de modo igual a gente muito desigual – aprofundaria ainda mais as desigualdades. De outro, é direito comum ser tratado de modo igual, porque, a par das diferenças, existe o patamar da igualdade comum (p. 22-3, grifo meu).

   

                                                                                                               

78 Heidegger no capítulo 1 e Souza neste capítulo – sem com isso sugerir nenhuma semelhança entre os autores – e a minha experiência cotidiana e concreta no esforço de cuidar de pessoas que sofrem psiquicamente de uma forma muita intensa me ajudam a não ter uma posição ingênuo-otimista: acredito que é preciso esforço e atenção crítica constantes para construir a possibilidade de uma convivência igualitária e fraterna no campo da saúde mental e na sociedade.

CAPÍTULO 4 – A CONVIVÊNCIA COMO DISPOSITIVO DE CUIDADO: A