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A dimensão ética da convivência como dispositivo de cuidado: estar com e deixar ser

CAPÍTULO 2 – CUIDADO, ÉTICA E CONVIVÊNCIA

2.5 A dimensão ética da convivência como dispositivo de cuidado: estar com e deixar ser

Como resposta para a crescente solidão e incomunicabilidade entre as pessoas na sociedade contemporânea, Boff (2011, p. 11) propõe o regaste do cuidado, “suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência (...) ethos fundamental do humano” .

Para Boff, e aqui em especial sua reflexão me interessa, o cuidado é o princípio inspirador de um novo paradigma de convivência. Pensa que a falta de cuidado caracteriza o mal-estar contemporâneo: descuido, descaso e abandono. Falta de cuidado que perspassa as mais diversas esferas, o meio ambiente, a coisa pública, a dimensão espiritual, e, em especial, os laços sociais: “há um descuido e um abandono crescente da sociabilidade nas cidades. A maioria dos habitantes se sentem desenraizados culturalmente e alienados socialmente” (p. 19).

Inspirado por Heidegger,52 entende o cuidado como uma atitude, um modo de ser essencial, ontológico, não temos cuidado, somos cuidado: “o modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano” (p. 34); sem cuidado deixamos de ser humanos. A indiferença, neste sentido, é uma experiência de desumanização. De uma forma um pouco mais esperançosa do que o filósofo alemão, ao que deixa transparecer, Boff caracteriza o ser humano como um-ser-no-mundo-com-outros “sempre se relacionando, construindo seu habitat, ocupando-se com as coisas, preocupando-se com as pessoas, dedicando-se àquilo que lhe representa importância e valor e dispondo-se a sofrer e a alegrar-se com quem se sente unido e ama” (p. 35).

A característica singular do humano é que em todo projeto e ação coloca cuidado (BOFF, 2011). Para o autor, o cuidado inclui duas significações entrelaçadas: atitude de desvelo e solicitude, de modo que a pessoa deixa de ser o centro e concentra-se no outro; e atitude de preocupação e inquietação, ao me tornar responsável por quem, ao cuidar, me sinto afetivamente envolvido. Deixar o outro ser,                                                                                                                

ao mesmo tempo, em que me deixo ser transformado e afetado. Para Boff (2011), no modo-de-ser do cuidado, o ser-no-mundo estabelece uma relação que não é de domínio sobre o outro, mas de convivência.

Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. (...) A centralidade não é mais ocupada pelo logos razão, mas pelo pathos sentimento (...) No lugar da agressividade, há a convivência amorosa. Em vez da dominação, há a companhia afetuosa, ao lado e junto com o outro (p. 96).

Ao associar cuidado com pathos, Boff chama a atenção para a importância do sentir e da sensibilidade, enquanto constituintes originários do ser humano.

Como em Boff, Heidegger me conduz a pensar a convivência a partir da ideia do ser-com: estar vivo, se ocupar e se preocupar é convivência, quando o próprio do humano é construir sua existência em um mundo que lhe (co)pertence junto a outros seres humanos. Ao cuidar de nossa vivência, cuidamos da convivência: trata-se de uma leitura conjugada de Heidegger e da interpretação do texto heideggeriano que Costa (2009) propõe. A vivência, para além do cuidar de não morrer que caracteriza a vitalidade, põe em evidência o desejo de construir aqui, entre nós, uma vida com felicidades possíveis. Destaca-se aqui a potencialidade de um dispositivo que aposta no estar com e em deixar ser neste estar com.

Mas, Heidegger, especialmente, me inspira a pensar as dificuldades53 e impasses da convivência, aspecto fundamental da tese de doutoramento, visto que me parece inevitável ao esforço de caracterizar como a convivência pode se constituir em um dispositivo de cuidado no campo da saúde mental, pensar uma certa forma de convivência marcada por modos deficientes ou indiferentes de preocupação. Com Heidegger penso que, de início e na maior parte das vezes, na impessoalidade da convivência, o estar com assume a forma da tensão e da ambiguidade. “Sob a máscara da composição, o que realmente acontece é a oposição entre um e outro” (HEIDEGGER, 1927/1995, p. 236). A impessoalidade retira o encargo de cada um na cotidianidade: ao fugir de si mesma, posso pensar que, por caracterizar-se como ser- com, foge também do outro em sua abertura para ser. Frente a este modo impessoal- próprio de ser na maior parte das vezes na convivência, parece ser necessário um esforço para o encontro com o outro, para além do falatório e da curiosidade.

                                                                                                               

Isto torna o imperativo ético de Lévinas ainda mais forte e necessário. Não porque a ontologia heideggeriana seja violenta, pois Derrida apresenta uma justa medida: todo e qualquer saber está implicado em uma economia de violência. Penso que toda e qualquer ação de cuidado também está inscrita em uma economia da violência, sendo necessário, a cada vez, escolhermos a menor violência. Por isso é necessário um esforço para sair da impessoalidade cotidiana, em uma economia de ser, para encontrar o outro em sua irredutível alteridade. Recolocada desta forma, a “ética das éticas” de Lévinas assume um outro lugar: não uma caracterização do ser humano distinta, superando supostamente a caracterização heideggeriana; mas, ao assumir como esta caracterização ilumina - mais do que provavelmente todos gostariam - o modo de ser cotidiano do homem, se faz necessário um esforço em direção ao acolhimento do outro em sua alteridade, a ser realizado a cada vez, horizonte de nossas ações.

Mas recuo um instante para permitir que Lévinas me afete e provoque a reflexão sobre a convivência. Na solidão – eu não sou o outro, sou totalmente só - nasce a relação com o outro: parece implicar, portanto, um certo silenciamento de si para que o outro – irredutível alteridade – surja. Um estar com como separação. Este silenciamento de si no contexto da convivência, enquanto dispositivo de cuidado em saúde mental, poderia assumir a forma/função da presença reservada desenvolvida por Figueiredo (2007, 2011). Na reserva está em jogo deixar ser (Heidegger e Lévinas se encontram em mim54, mediados por Figueiredo: é preciso um silenciamento do ser - como deseja Lévinas, para que o outro surja absolutamente outro – para deixar ser o outro – como tematiza Heidegger). Silenciar (a si mesmo, o que não significa em absoluto desinteresse em relação ao outro) para abrir tempo e espaço para que o outro possa emergir em sua especificidade e potencialidade. A aposta antecipada em uma capacidade de vir a ser do objeto de cuidado, tal como apresentada por Figueiredo (2007, 2011), adquire uma tonalidade a mais ao pensar na responsabilidade que o Rosto de outrem conclama em nós.

A relação com o outro é uma relação com o mistério (LÉVINAS, 1947/1996). O mistério não tem aqui o sentido de ser algo desvendado por mim: aí estaríamos na dominação do Ser, que me parece caracteriza também - com mais frequência do que

                                                                                                               

54 Novamente: não pretendo reduzir Heidegger e Lévinas ao mesmo, isto seria uma violência imperdoável. Peço licença apenas para me deixar ser afetada por ambos, apesar – e também justamente por causa - das diferenças…

gostaríamos de admitir - a relação cuidador-cuidado no cotidiano: o outro como algo a ser desvendado e, em seguida, submetido a mim e ao meu conhecimento… A alteridade, em Lévinas, aparece como uma relação não-recíproca, não-simétrica. Não porque o Eu sabe ou pode mais (posição tão assumida por nós profissionais de saúde), justamente o contrário: frente ao Outro tenho uma responsabilidade indelegável (“De modo diferente que ser!”); o princípio ético supremo: o sofrimento é inútil em outrem, mas significativo em mim, me torna responsável pelo outro sem reciprocidade. ‘Me tornar responsável pelo outro sem reciprocidade’ não é uma espécie de equilíbrio entre implicação e reserva que nossa presença necessita efetivamente para deixar ser e vir a ser o outro?

Contudo, Heidegger não nos deixa esquecer, de início e na maior parte das vezes, não sustentamos de modo próprio nosso ser – o que também potencializaria que o outro emergisse em sua autenticidade - de modo que ser responsável sem reciprocidade é algo que exige sobremaneira de nós… A inevitável mutualidade nos cuidados como um fundamento ético, como deseja Figueiredo, revela-se como uma necessidade para a continuidade do cuidado: é preciso deixar-se interpelar por outros, colocando humildemente a nossa prática em questão, é preciso compartilhar, com terceiros, nossas ações e decisões como cuidadores. Fazer isto é cuidar de nós. E nos reabastecermos para assumir a posição ética fundante – horizonte que Lévinas nos sinaliza.

Este horizonte presentifica-se em meu não ceder à indiferença de uns com os outros, de ser – cada um, mas eu mais do que todos – responsável pelo outro, em minha responsabilidade infinita de cuidado. Ser indiferente é ser cúmplice. O antítodo para a indiferença? Eis-me aqui! Eis-me aqui, com funções estruturantes, no campo do cuidado: acolher, reconhecer e interpelar. Identidade, testemunho e diferença: não são esses mesmos os elementos para pensar a alteridade? Identidade a ser (re)construída pelo sujeito com nosso suporte, mas de modo que nosso testemunho crie espaço/tempo para deixar ser na diferença, não como nós – silenciamento - mas como irredutivelmente outro… Legítimo outro.

Legítimo outro é o estrangeiro? O sofrimento do outro é estrangeiro a mim? Fala a nossa língua? Não é esta a primeira violência que realizamos a quem nos vem pedir ajuda nos serviços de saúde mental: “desajeitado ao falar a língua”, se arrisca, sem defesa, a pedir hospitalidade. Interrogamos quem chega. No cotidiano dos serviços, nossa hospitalidade é condicionada. Lévinas ensina, o outro é prioridade, a

hospitalidade incondicional. Heidegger anuncia os impasses e obscurecimentos de ser-com, exigindo de nós as figuras levinasianas da alteridade e da responsabilidade absoluta (recuperado por Derrida na hospitalidade) como horizontes da abertura do ser. Derrida nos permite vislumbrar um agir e pensar sem violência por demais – apenas econômica, a menor violência possível…

CAPÍTULO 3 – CONVIVÊNCIA: FRATERNIDADE E JUSTIÇA NO