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A RESPOSTA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS UMA PROPOSTA SISTEMÁTICA

3. Saí do mundo: uma liberdade concretizada

3.1 A experiência da Pobreza

Ao longo da nossa dissertação, constatámos que, diante de Francisco de Assis, da sua vida e dos seus escritos, se colhe mais da intuição do que da inteligência ou da racionalida- de. É pela intuição que Francisco trata temas como: Deus, o Mundo e o Homem203.

Face à problemática da pessoa humana, à abertura ao outro, ao diálogo e à liberdade, que terá o Poverello para nos dizer?

O nosso percurso resulta do estudo dos escritos, dos quais se capta um perfil de Ho- mem Pobre, comparativamente a Deus Altíssimo e Omnipotente. Mas o Homem, sendo pobre, pode enriquecer, relacionando-se com Deus, com o outro Homem e com o Mundo Criado, num processo de aproximação fraterna e dialogante. É isso que a «antropologia de Francisco» nos propõe204.

Possuir e restituir são duas formas verbais fundamentais no léxico do Irmão de Assis, para a compreensão da pobreza. Também a vivência da pobreza, para o Santo de Assis, tem como paradigma a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe205.

Não era em primeiro lugar para se assemelharem a Cristo que os membros dos mo- vimentos pauperístas e heréticos lutavam, mas sim para tomarem posição contra a matéria. Por isso, os cátaros neo-maniqueus pugnavam pela difusão das novas formas de gnose e pela laicização da razão, metamorfoseando as verdades da revelação divina.

Em termos históricos e culturais, não se pode entender a pobreza franciscana e os seus efeitos sem as heresias da época de São Francisco, onde, em abono da verdade, o Po- verello herdou um ou outro aspecto de maior rigor.

Se a pobreza é o tópico paradigmático do franciscanismo, é-o porque ela é funda- mentalmente generosidade e gratidão. Generosidade de Deus, que é um Pai e que tudo dá aos seus filhos. Generosidade dos homens que, por serem filhos de Deus, aprendem com o

203

Cf. RIVERA DE VENTOSA, E. - Visión del hombre en san Francisco y antropología actual. Estu-

dios Franciscanos 78 (1977) 93.

204

Cf. MATURA, T. - François d’Assise «Auter Spirituel» Le message de ses écrits. Paris: Les éditi- ons du Cerf, 1996. 229.

205

«E sendo Ele mais rico do que tudo (2 Cor 8, 9), quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza»: 2EpFid 5.

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Pai a ser generosos para com os seus irmãos. A pobreza é também gratidão; quem pratica a pobreza segundo a fé, não deseja receber nada em troca da parte do outro, senão gratidão. É o que Deus quer do Homem. O Homem pratica-a só porque tudo recebe do Senhor, deve dar tudo a Deus: gratidão e louvor. Assim se deve entender a ontologia da pobreza francis- cana. Diz-nos o Giovanni Iammarrone:

«O franciscano é o “homem pobre” de coisas deste mundo, mas “rico” de virtudes, quer dizer, abundantemente enriquecido pela graça de Deus já neste mundo e testemu- nha da plena realização beatífica do humano que Deus realizará com respeito ao ho- mem, na terra dos vivos»206.

Por isso podemos falar da pobreza nos escritos de São Francisco de Assis como um imperativo. Ela é, por assim dizer, uma marca dominante e identificadora do «ser de Fran- cisco». Não a devemos procurar só nas atitudes do Poverello, mas no mais íntimo do seu ser, na raiz do seu existir. O homem não é pobre porque não conseguiu atingir na vida um determinado patamar de sucesso económico, patrimonial ou intelectual. A razão fundamen- tal pela qual o homem deve ser pobre é para que tenha a possibilidade de ser rico segundo Deus. É para ser rico de Deus que o homem se deve esvaziar, para se poder encher de Deus e dos Seus dons, restituindo depois tudo ao Senhor com louvor e gratidão.

Um homem que tenha o seu coração cheio de orgulho, de inveja e de todos os vícios e pecados, não tem lugar em si para Deus. Para que possa encher o seu coração de Deus, deve restituir ao Senhor tudo, esvaziar-se, para que Deus o encha. Este é o verdadeiro po- bre, aquele que nada quer ter nem chamar de seu; tudo o que possa receber é dom, recebe-o de Deus.

O Santo de Assis é pobre porque também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo (cf. 2Cor 8, 9). Esta é a excelência da altíssima pobreza, Domina sancta paupertas, e há-de ser ela também a herança reservada que nos leva à terra dos vivos (cf. Sl 141, 6)207. A po- breza franciscana é identificação com Cristo, que viveu pobre desde o presépio ao calvário.

O Poverello não trata a pobreza como uma privação que enfraquece o Homem, mas como uma escolha/eleição, conscientemente assumida no seguimento de Cristo, «como

206«El franciscano es el “hombre pobre” de cosas de este mundo, pero “rico” de virtudes, es decir, abundantemente enriquecido por la gracia de Dios ya en este mundo y testigo de la plena realización beatifi- cante de lo humano que Dios realizará con respecto a él en “la tierra de los vivientes”»: IAMMARRONE, G.- La visión del hombre en la Regla bulada de los Hermanos Menores. Integrada con textos de los Escritos de San Francisco. Seleccionnes de Franciscanismo. 121 (2012) 38.

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convém a servos de Deus e seguidores da santíssima pobreza»208. A pobreza não é santís- sima em si, Francisco não era um teórico de sistemas igualitários, não vivia de abstracções, era um homem prático e concreto. A pobreza só pode ser santíssima porque foi vivida pelo Filho de Deus e por sua Mãe.

Reflectindo sobre a pobreza, como resposta de Francisco de Assis ao mundo do seu tempo, diz-nos o padre Cerqueira Gonçalves:

«Não será legítimo afirmar que estamos perante um sentido novo de pobreza, nem mesmo que haja uma maior purificação dela, se a compararmos com a pobreza profes- sada pelos monges. Ela passa, sim, a chamar-se Domina sancta paupertas, com uma declarada prioridade sobre as demais virtudes»209.

E continua o padre Cerqueira concretizando o seu raciocínio:

«no franciscanismo, a pobreza era a palavra mais adequada para, na época do seu apa- recimento, traduzir o espírito de caridade, sempre insubstituível dentro do Evangelho. A tónica da pobreza, como a estamos a interpretar, tem como primeira consequência uma diferente atenção dispensada à interioridade, pelo facto de a relação com o pró- ximo aparecer no primeiro plano, dada a sua semelhança com Deus. A existência de cada um jamais pode estar descomprometida da salvação dos outros. A intensidade desta preocupação da vida cristã exerceu, por forma indirecta, uma maior purificação da pobreza interior»210

Por isso, Francisco recorda aos seus Irmãos que «Nosso Senhor Jesus Cristo foi po- bre e sem abrigo e viveu de esmolas, ele e a Santíssima Virgem e os seus discípulos»211. O Santo de Assis tem, no seu pensamento, continuamente presentes os ensinamentos de Jesus Cristo no Evangelho. Por isso, ao falar da pobreza e da sua consequência no Reino futuro, o que o inspira são as palavras de São Mateus: «… que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca da sua vi- da?» (cf. Mt 16, 26); também dirá Francisco de Assis: «os homens que perdem tudo neste mundo, levam consigo o preço da sua caridade e receberão do Senhor recompensa e digna remuneração (…) e grande honra no tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo»212

A concretização mais excelente da pobreza, para Francisco, é aquela que ele colhe no Filho de Deus, no mistério da encarnação, quando veio tomar a «carne verdadeira da nossa

208

RegB 5, 4.

209

GONÇALVES, J. – Humanismo Medieval, II Franciscanismo e Cultura. Braga: Editorial Francis- cana, 1971. 119.

210

Ibidem 120. 211

«Dominus noster Jesus Christus (…); fuit pauper et hospes et vixit de helimosinis ipse et beata Vir- go et discipuli eius»: RegB 9, 5.

212

«Homines enim Omnia perdunt que in hoc seculo relinquunt, secum tamen portant caritatis mer- cedem et elemosynas quas fecerunt, de quibus habebunt a Domino premium et dignam remunerationem»:

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humana fragilidade»213. A pobreza deve ser vivida como referência a Cristo, com tudo o que ela significa de aceitação da cruz em cada dia, de alegria nas contrariedades da vida, de proximidade e familiaridade com os mais simples. Não possuir rendas, mas viver do traba- lho das próprias mãos, recorrer à mendicidade por necessidade e por ascese, não por razões vis e abjectas e intelectuais, mas sempre com os olhos nas coisas altíssimas e sublimes214, sempre segundo o desafio de Cristo, a fim de entesoirar no céu215.

Francisco de Assis e os seus irmãos, vivendo para Deus, deviam neste mundo traba- lhar manualmente e estar ocupados. É isso que o Santo nos recorda no fim da sua vida, quando escreve no Testamento: «Eu trabalhava com minhas mãos e quero ainda trabalhar; e firmemente quero que todos os irmãos trabalhem em mister honesto»216. O trabalho para Francisco era expressão de pobreza. Os frades como todos os pobres tinham que trabalhar para sobreviver. A par do trabalho, do qual os frades estavam impedidos pela Regra de receber dinheiro ou pecúnia217, o Poverello e os seus irmãos dedicavam-se à mendicidade como um serviço, alguns deles tinha mesmo o «ministério de pedir esmola»218, (daí os franciscanos estarem incluídos entre aqueles que ficaram conhecidos por «mendicantes»). Espiritualizando a vivência da mendicidade, o Poverello chama de mesa do Senhor (men- sam Domini) à acção de pedir esmola, na confiança de que é o Senhor que nutre e alimenta os seus irmãos219.

Muitos homens, movidos pela avareza, pela malícia e pela insídia de Satanás, não só negavam a esmola aos Irmãos, como os cobriam de afrontas. E os frades, pelas afrontas recebidas e pelo espírito com que as suportavam, receberiam grande honra no tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo220 no fim dos tempos, como consta na Regra escrita.

A pobreza de Francisco não é uma conquista obtida, é um processo dinâmico, um es- forço contínuo, até que o homem viva ontologicamente pobre e esteja verdadeiramente desejoso de se encher só de Deus.

213

2EpFid 4. Veja-se nota 198, pág. 173; veja-se nota 110, pág. 156; veja-se nota 76, pág. 146; veja-se

nota 11, pág. 130; e veja-se Cap. II, pág. 75. 214

Cf. 2EpCust 2. 215

Cf. Adm 28, 1. Veja-se nota 139, pág. 162. 216

«Et ego manibus meis laborabam et volo laborare, et omnes alii fratres firmiter volo quod laborent de laboritio quod pertinet ad honestatem»: Test, 20.

217

«De mercede vero laboris pro se et suis fratribus corporis necessária recipiant preter denários vel pecuniam»: RegB 5, 3.

218

Cf. RegNB 9, 9. Veja-se Cap. II, pág. 100. 219

«Et quando non daretur nobis pretium laboris, recurramus ad mensam Domini, petendo elemosy- nam ostiatim»: Test 22.

220

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A pobreza não se resume a ter, ou não, duas túnicas, nem alforges, nem ouro nem prata, como os discípulos de Jesus (cf. Lc 9, 3; 10, 4; Mt 10, 10), nem o não ter besta ou o não andar a cavalo, a não ser obrigados por enfermidade ou grande necessidade221. Esta expressão grande necessidade (necessitate cogantur) repete-se abundantes vezes nos escri- tos do Santo, particularmente nos de tipo legislativo. O Poverello não é um legalista, nem um fundamentalista herético, que distorce a verdade forçando a razão, até a laicizar, para usarmos a expressão do padre Cerqueira Gonçalves.

Pelo contrário, Francisco é profundamente católico e a sua comunhão com a Igreja é uma das grandes marcas que ele deixou para a posteridade. Por isso fará tudo para pôr o seu grupo, a sua fraternidade a salvo de qualquer confusão na observância da pobreza. O Poverello quer demarcar-se dos movimentos pauperístas heréticos, que laicizavam a razão, como os humiliatos e cátaros, a fim de não ser tido por herege. Nem cair em qualquer tipo de fundamentalismo, que é sempre uma laicização da razão, ou seja a desvinculação do pensamento do horizonte do sagrado e a sua afirmação à custa si própria. Assim, por exemplo, valoriza-se mais a vivência da pobreza, do que Aquele que pede que sejamos pobres.

É aqui que reside o perigo da laicização da razão, contra o qual o Santo de Assis sempre se bateu. Para o medievalista Cerqueira Gonçalves, «o fenómeno da laicização da razão corre em sentido contrário ao do espírito do franciscanismo, que nada domina, pouco sabe, mas sempre participa do mistério da realidade envolvente»222. E continua o francis- cano Joaquim Cerqueira Gonçalves:

«ao ser laicizada a razão, Deus é metamorfoseado e a actividade humana diminuída. Com efeito, substitui-se a realidade divina transcendente, pessoal e livre, por uma en- tidade abstracta reduzida a uma série de leis, segundo as quais se interpreta o progres- so da humanidade. Por sua vez, o homem é esvaziado da sua consistência ôntica, ao ser negligenciada a sua colaboração voluntária e livre na aquisição do saber»223. Para o franciscanismo, o fenómeno da laicização da razão apresenta, sobretudo, duas tendências inaceitáveis no quadro de uma visão humanista da realidade: uma, directamente ligada ao Homem, enquanto atenta, de certo modo, contra o seu poder de iniciativa e a sua individualidade; outra, na medida em que pretende eliminar da história quer o sentido do

221

Cf. RegNB 15, 2. 222

GONÇALVES, J. – Humanismo Medieval, II Franciscanismo e Cultura. Braga: Editorial Francis- cana, 1971. 135-136.

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mistério, quer a interferência de uma acção providencial transcendente. No entanto, a cru- zada da laicização surge como poderosa tentação para as exigências racionais do próprio homem224. Francisco de Assis, enquanto homem intuitivo, sempre reagiu contra todos os fundamentalismos. Mais pelo coração do que pela razão, deixou-se conduzir pelo Senhor ao encontro dos homens, preferentemente dos homens marcados pela simplicidade e pela fragilidade.