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O CONCEITO DE «HOMEM» NOS ESCRITOS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

7. Epistola Ad Toti Ordini Missa (EpOrd)

São focados neste escrito os temas centrais do pensamento religioso e da experiência de vida do Santo de Assis, como o amor para com o sacramento do altar e a sua fé na san- tidade da Igreja e na dignidade dos ministros, chamados a administrar tão grandes misté- rios, os temas mais importantes desde a chegada dos primeiros irmãos, até às inesquecíveis páginas do Testamento, marcados por recordações de fidelidade à Igreja, aos Sacramentos, à Palavra de Deus e à Regra.

A EpOrd tem, entre os escritos, um papel importante porque é citada por um grande número de manuscritos, quase tantos como a RegB ou o Test52.

Volta-se àquela riqueza humana, iluminada pela graça que invade toda a vida. Os destinatários são todos os frades da Ordem, «irmãos benditos» (v 47); sem excepção, é o que se lê no título da carta: «Toto Ordinis missa». É complexo indicar uma data para a composição deste escrito de S. Francisco de Assis.

51

Veja-se o que ficou dito ao tratarmos a 1EpFid 2, 15 (cf. pág. 73). 52

82

O texto desta carta não refere o convite feito em todas as outras cartas circulares a que se façam cópias e se difundam os escritos. Aqui Francisco limita-se a exortar os minis- tros e outros frades que guardem a carta e a observem (vv 47-48).

7.1 EpOrd 2-3

Considerações preliminares

O texto em análise é antecedido pelo versículo 2, que revela os sentimentos de reve- rência de Francisco para com todos os seus irmãos, os «primeiros e os últimos». O versícu- lo propriamente em análise é o 3, onde é patente a humildade evangélica com que o Pove- rello se apresentava diante de todos: «homem vil … caduco…vosso pequeno servo». Esta humildade verifica-se também na confiança da confissão dos seus pecados «aos sacerdotes da Ordem e aos demais irmãos» (vv 38-39).

Texto

3

frater Franciscus, homo vilis et caducus, vester parvulus servus, salutem in eo qui redemit et lavit

nos in pretiosissimo sanguine suo (cfr. Apoc 1, 5),

3

o irmão Francisco, homem vil e caduco, vosso pequenino servo, vos saúdo naquele que nos remiu e

lavou no seu precioso sangue (Ap 1.5),

Aspectos literários

Francisco apresenta-se como «homo vilis et caducus» e, ainda, como «parvulus ser- vus». Não só se apresenta como servo, mas como «parvulus», isto é: «pequeno; fraco; de pouca importância; insignificante»53. E numa significativa alusão à Paixão de Cristo, usa os dois verbos «redemit et lavit».

Comentário

Este versículo é uma saudação muito semelhante no estilo às saudações do Apóstolo Paulo. Aqui não só são identificados os destinatários, como o remetente. É na força de Cristo salvador que, na sua Paixão, nos redimiu e nos lavou com o seu sangue, que Fran- cisco, «homem vil e caduco», saúda todos os Irmãos Menores. Parece haver aqui o eco de Paulo, que se apresenta aos coríntios «cheio de fraqueza, receio e tremor» (cf. 1Cor 2, 1- 2). Francisco, que passou a vida a louvar a Deus pela beleza das criaturas, olhando para si próprio, apresenta-se neste escrito com um homem «vil, caduco e pequenino servo».

53

«Parvulus, a, um [parvus]»: TORRINHA, F. - Dicionário Latino-Português. 3.ª ed. Lisboa: Edições Marânus, 1945. 508.

83 7.2 EpOrd 14

Considerações preliminares

O versículo 14 apresenta algumas atitudes e exigências recomendadas aos Irmãos sa- cerdotes, os ministros da Eucaristia, presentes e futuros.

Texto

14

Rogo etiam in Domino omnes fratres meos sacer- dotes, qui sunt et erunt et esse cupiunt sacerdotes Altissimi, quatinus, cum missam celebrare voluerint, puri pure faciant cum reverentia verum sacrificium sanctissimi corporis et sanguinis Domini nostri Jesu Christi, sancta intentione et munda, non pro ulla terrena re neque timore vel amore alicuius hominis, quasi placentes hominibus (cfr. Eph 6, 6; Col3, 2),

14

Rogo ainda no Senhor a todos os meus irmãos, que são e serão e desejam ser sacerdotes do Altíssimo, que, quando quiserem celebrar missa, puros e com pureza e respeito celebrem o verdadeiro sacrifício do Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, com santa e pura intenção, e não por qualquer motivo terreno, nem por temor ou consideração de qualquer pessoa, como para agradar aos homens (cf. Ef 6, 6; Cl 3, 22).

Aspectos literários

Assinalamos o uso do verbo «sum» (ser ou estar) nas formas «sunt» e «erunt», o que confere uma continuidade à acção. No texto em análise, os sacerdotes, mais que membros da hierarquia da Igreja, são apelidados de «sacerdotes Altissimi» (sacerdotes do Altíssimo).

Os sacerdotes devem celebrar a Eucaristia com pureza e reverência. Quanto ao modo de celebrar a eucaristia, usa-se o adjectivo «pure» (purus) em dois graus «puri» (puros) e com (pureza) «pure», e quanto à forma, a Eucaristia deve ser celebrada «cum reverentia» (com reverência). Trata-se do «verum sacrificium sanctissimi corporis et sanguinis Domini nostri Jesu Christi» (o verdadeiro sacrifício do santíssimo Corpo e Sangue de nosso Se- nhor Jesus Cristo).

Recorre-se ao uso das preposições «neque» (nem por) e «vel» (ou por) para ligar dois substantivos de significação oposta «timore» e «amore» que se relacionam com o termo «hominis» (homem algum), e «placentes hominibus» (nem para agradar aos homens).

Comentário

Trata-se de um texto dirigido aos «Irmãos Sacerdotes», que têm como nobilíssima função celebrar o verdadeiro sacrifício do santíssimo Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, de forma livre e voluntária, sem nunca ter em conta os interesses dos homens; pode estar aqui uma crítica à simonia.

84 7.3 EpOrd 19

Considerações preliminares

Trata-se, no versículo 19 da Carta a toda a Ordem, de uma advertência severa a todos os homens que, sem discernirem sobre a dignidade da Santíssima Eucaristia, dela se apro- ximam por ignorância ou sem fé.

É notório o calor afectivo com que o santo alterna, neste texto, convites e exortações com severas admonições, o que demonstra a sua íntima relação com a fraternidade que o Senhor lhe deu, depois da grande tentação que durante anos o levou a afastar-se da compa- nhia dos irmãos. Francisco, sem ser «sacerdote do Altíssimo», tem autoridade, não só para falar aos sacerdotes, como também para falar sobre «o verdadeiro sacrifício do santíssimo Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo», que seria da competência dos sacerdotes. O Santo de Assis faz uma verdadeira catequese, não só quanto ao profundo significado da Eucaristia, mas também quanto à dignidade que ela merece da parte dos homens.

Texto

19

Despicit enim homo, polluit et conculcat Agnum Dei, quando, sicut dicit apostolus, non diiudicans (1Cor 11, 29) et discernens sanctum panem Christi ab aliis cibariis vel operibus, vel indignus manducat, vel etiam, si esset dignus, vane et indigne manducat, cum Dominus per prophetam dicat: Maledictus homo, qui opus Dei facit fraudulenter (cfr. Jer 48, 10),

19

O homem, de facto, despreza, profana e calca aos pés o Cordeiro de Deus, quando, como diz o Apósto- lo, não discernindo (1Cor 11, 29) e distinguindo o pão santo de Cristo dos outros alimentos ou das outras obras, ou o come sendo indigno, ou mesmo sendo digno, o come de modo vão e indigno, quando é verdade que o Senhor diz pelo Profeta: Maldito o homem que faz a obra do Senhor com hipocrisia (cf. Jr 48, 10).

Aspectos literários

Neste texto, surge duas vezes o termo «homo», uma, no início, em tom de advertên- cia e outra, no fim, integrada numa citação bíblica do profeta Jeremias. Como é habitual, surgem duplas de verbos para reforçar a acção «polluit et conculcat» (profanar e calcar aos pés) «non diiudicans», «et discernens» (não julgam nem discernem) do homem que age sem discernimento diante da Eucaristia. O discernimento deve ser feito entre o Pão santo de Cristo «sanctum panem Christi» e os outros alimentos e obras «ab aliis cibariis vel ope- ribus». Usa-se em três acepções a palavra «dignus» (digno): «in-dignus» e «indigne» asso- ciado a «vane» (vã e indignamente).

85

Surgem depois duas formas típicas de citação bíblica nos escritos do Poverello: «si- cut dicit apostolus» (como diz o Apóstolo) e «cum Dominus per prophetam dicat» (como diz o Senhor pelo Profeta)54.

Comentário

Podemos também referir as palavas de Francisco de Assis nos versículos 6 e 7 da primeira redacção da Carta aos Custódios, onde se lê: «E sempre que pregueis, exortai o povo à penitência, e dizei que ninguém se pode salvar, senão quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor (cf. Jo 6, 53); e que, quando o sacerdote o oferece em sacrifício sobre o altar e o translada para outro lugar, todos, de joelhos, dêem louvor, glória a honra ao Senhor Deus vivo e verdadeiro (cf. 1Ts 1, 9)»55.

O texto aborda o tema da Eucaristia em duas vertentes. A grandeza do sacramento em si e a dignidade com que se deve celebrar. Francisco, sente o dever de partilhar com os homens o seu amor à Eucaristia, porque ele não via «coisa alguma corporalmente, neste mundo, daquele Altissimo Filho de Deus, senão o seu cropo sangue» (cf. Test 10).

7.4 EpOrd 26

Considerações preliminares

Este versículo da Carta enviada a toda a Ordem reflecte as atitudes e exigências dos ministros da Eucaristia.

Texto

26

Totus homo paveat, totus mundus contremiscat, et celum exsultet, quando super altare in manibus sa- cerdotis est Christus, Filius Dei vivi (Joa 11, 27)!

26

Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está Cristo o Filho de Deus vivo (Jo 11, 27)!

Aspectos literários

Este texto começa com o uso do vocábulo «homo» na expressão «Totus homo», en- tenda-se todos os homens. Jesus Cristo na Eucaristia é o centro de quanto existe. Atesta-o a forma verbal «est» (está) Christus, Filius Dei vivi (Cristo, o Filho de Deus Vivo). Está «super altare», destacamos o uso das preposições «super» (sobre) e «in manibus» (nas) (mãos) «sacerdotis».

54

URIBE, Leer a Francisco y Clara de Asís. 78. 55

86

Comentário

As mãos dos sacerdotes são agora o local da Encarnação do Verbo, como foi outrora o ventre da Virgem Maria. Destaca-se, também, a presença da humanidade, que com o mundo e os seres celestes devem convergir para a Eucaristia; está aqui presente todo o uni- verso: a humanidade, o homem todo que se espante; a terra, o mundo todo que trema; e os seres celestes, que o céu exulte. É o princípio da nova criação, rectificado pelo Sacramento da Nova e Eterna Aliança, que agora se renova sobre o altar; como quando no princípio da criação o «sopro de Deus agitava a superfície das águas» (cf. Gen 1, 2).

Por isso, Francisco escreveu no Testamento: «…a ele e a todos os demais sacerdotes quero temer, amar e honrar como a meus senhores (…). E estes santíssimos mistérios sobre todos as coisas quero que sejam louvados e reverenciados e colocados em lugares precio- sos»56.

7.5 EpOrd 47

Considerações preliminares

Este versículo 47 inicia as recomendações finais da Carta a toda a Ordem. Menciona- -se o nome de Frei Helie/Elias, designado por «H» [elie], Ministro Geral da Ordem que sucedeu a S. Francisco, para que, na sua pessoa, a Carta chegue com a marca da autoridade ao conhecimento de todos os irmãos. Essas recomendações vão na linha da aplicação e da observância dos ensinamentos da carta e na preservação cuidadosa da mesma.

Texto

47

Ego frater Franciscus, homo inutilis et indigna creatura Domini Dei, dico per Dominum Jesum Christum fratri Helie ministro totius religionis nostre et omnibus generalibus ministris, qui post eum erunt, et ceteris custodibus et guardianis fratrum, qui sunt et erunt, ut hoc scriptum apud se habeant, operentur et studiose reponant.

47

E eu, o irmão Francisco, homem inútil e indigna criatura do Senhor Deus, digo, por nosso Senhor Jesus Cristo, ao irmão H., ministro de toda a nossa Religião, e a todos os ministros gerais que depois dele vierem, e a todos os outros custódios e guar- diães dos irmãos que são e hão-de ser, que tenham este escrito consigo, o pratiquem e cuidadosamente o guardem.

Aspectos literários

O versículo abre com o uso do pronome «ego» (eu), que identifica o autor do escrito: «frater Franciscus». Além de se identificar, Francisco define-se com «homo» e caracteri-

56

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za-se com o recurso a uma dupla de adjectivos: «inutilis et indigna» (inútil e indigna), (cri- atura de Deus) «creatura Domini Dei».

Apesar de inútil e indigno, sente-se escolhido para a missão de falar em nome do Se- nhor: «dico per Dominum Jesum Christum» (digo pelo Senhor Jesus Cristo), a toda a Or- dem, na pessoa dos Ministros «omnibus generalibus ministris custodibus et guardianis» (a todos os Ministros Gerais, Custódios e Guardiães); a estas designações junta o verbo «sunt», no presente, e «erunt», no futuro, para ampliar e implicar até ao presente os desti- natários da Carta a toda a Ordem.

O texto menciona o nome de Frei Elias, Ministro Geral da Ordem, que sucedeu a S. Francisco «Helie / Elias»57. Como habitualmente, coloca-se a letra N. (nome), para incluir, por exemplo na liturgia, o nome do Papa, do Bispo. Sendo o versículo 47, parte integrante das recomendações finais desta carta, elas são bem descritas pelos três verbos finais: «ha- beo/habeant» (ter/possuir), «operentur» (praticar/pôr em prática) e «reponant» (conser- var).

Comentário

Apesar de reconhecer a sua condição de homem inútil, nunca abdicou da sua missão de que, como os profetas e apóstolos, fala em nome do Senhor.