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A RESPOSTA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS UMA PROPOSTA SISTEMÁTICA

1. O Altíssimo me revelou: uma vida evangélica

2.3 Antropologia Cósmica

Entendemos por antropologia cósmica uma antropologia relacional, que une o Cria- dor, o Homem e as criaturas. Ela é sugerida em vários textos dos escritos tratados no capí- tulo II da nossa dissertação, sendo o texto da RegNB 23 um dos mais significativos, no qual se destacam três pontos: o Criador e a criatura, o Homem enquanto criatura.

No que respeita à relação entre o Criador e a criatura, Francisco dirige-se a Deus usando a expressão de Pai e reconhece a Sua soberania sobre toda a criação, manifestada com poder, santidade e paternidade, justiça, bondade e verdade. É daqui, da bondade de Deus, que saem todas as criaturas e que todas as coisas foram criadas. Com um coração puro, Francisco deseja ver a Deus no Cristo crucificado e contemplá-Lo na Natureza. O Santo de Assis lia conjuntamente o «liber Scriptura» e o «liber naturae», porque Deus lhe falava experiencialmente, nos acontecimentos da vida e na beleza da criação.

Também o Filho é chamado a interagir com o Pai. O Pai age na criação por meio do Filho. O Poverello faz eco, nos seus escritos, do que Paulo nos recorda: «Ele é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação (2 Cor 4, 4), porque n’Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis» (Cl 1, 15-20).

Do deslumbramento pelo amor criativo que promana de Deus, Francisco, enquanto Homem e criatura, passa a um profundo louvor, agradecimento e amor ao Criador pela criação e origem de todo o ser. Toda a criação está envolvida no amor que vem de Deus e vai para Deus, por Cristo, que é o primogénito de toda a criatura116.

No pensamento do Santo de Assis não existe qualquer tipo de dualismo maniqueu, porque Deus criou todas as coisas espirituais e corporais, toda a criação está revestida de aspectos positivos, como podemos ver, por exemplo, em todo o Cântico do Irmão Sol. A relação entre o Homem e a criação dá origem à comunhão cósmica, onde todas as criaturas e o Homem vivem, entre si, laços fraternos, já mencionados na visão do profeta Isaías onde o leão e o boi, o menino e a víbora viverão juntos (cf. Is. 11, 6-9).

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Cf. RegNB 23, 3. Veja-se nota 109, pág. 156. 116

Cf. FREYER, J. - Homo Viator. L’uomo alla lucce della storia della salvezza. Un’antropologia

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Para o Santo de Assis, todas as criaturas parecem ter uma função precisa: «o Sol que faz o dia, a água que é útil, o fogo que alumia a noite…». Têm, por assim dizer, a sua pró- pria dignidade. Mas o valor das criaturas não está na sua funcionalidade, mas sim porque elas existem e foram criadas por Deus, dando-nos sinais de Deus, como o Sol, por exem- plo: «… de ti, Altíssimo, ele [o sol] nos fala»117. O Poverello canta o sol e as criaturas, porque todas elas lhe recordam a grandeza de Deus, o único Criador. Francisco não dirige louvores ao sol pelo sol, mas porque Deus, pelo sol «faz e dia e nos alumia»118.

Nem todos captam a linguagem de Francisco de Assis na sua simplicidade e profundidade, exemplo disto encontrei num contemporâneo nosso, conhecido medievalista119. Qundo o titulo original do escrito é «Cantico di frate Sole». A expressão pouco clara de José Matto- so pode conduzir ao velho erro do panteísmo.

O sol, a lua, o vento e todas as criaturas falam-nos de Deus e da sua sua glória.Tal como no salmo bíblico «Os céus cantam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra das suas mãos» (cf. Sl 18, 2), também no Cântico das Criaturas tudo proclama Glória e louvor ao Senhor.

Outra é linguagem da antropologia cósmica, aquela que Francisco nos apresenta o Senhor Deus omnipotente, o Criador de todas as coisas120. Diante da grandeza e da beleza da criação, «nenhum homem é digno de te nomear»121, mas a todo o Homem cabe a função de juntamente com as criaturas louvar o Criador, pelas criaturas e não por aquilo que elas fazem, mas por aquilo que elas são. Todas as criaturas e o irmão Sol, em particular, diz-nos Francisco, «… de ti, Altíssimo, nos falam»122. Assim, o Sol é «belo e radiante, com grande esplendor»123, o vento «às criaturas dá sustento»124, a água é «tão útil, e humilde, e precio-

117

«de Te, Altissimo, porta significazione», [i.é, «sinal»] CantSol, 4. 118

«Laudato sie, mi’ Signore, cum tutte le Tue creature, spezialmente messor lo ftate Sole, lo qual è iorno et allumini noi per lui»: CantSol 3

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Nas leituras que realizadas sobre este tema, os nossos olhos caíram numa página do Professor José Mattoso, falando da espiritualidade do século XIII e evocando a figura de São Francisco de Assis, usa por duas vezes a expressão «Cântico ao Sol. Cf. MATTOSO, J. Levantar o céu. Os Labirintos da Sabedoria, Lisboa: Círculo dos Leitores, 2012, 142-143.

120

Cf. RegNB 23, 11. 121

Cf. CantSol 2. 122

Na nota nº 7 de Paolazzi encontramos a seguinte explicação, para o texto em análise do CantSol 4: «Porta significazione: “parla, è segno” di Dio, il quale “è luce, e in lui non ci sono tenebras” (1Gv1, 5). Dietro, si sente la parola del salmista: “I cieli narrano la gloria di Dio, e l’opera della sue mani anunzia il firmamento” (Sal 18, 2). Nel Cantico, come nel creato, ogni creatura è se stessa, ma è anche immagine e voce del Creatore»: Scripta, 121.

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Cf. CantSol 3-4. 124

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sa e casta»125; e o fogo «é belo, e jucundo, e robusto e forte»126. E a irmã a mãe terra, «nos sustenta e governa»127. O Homem associa-se à beleza e à dignidade das criaturas e com elas e por elas louva o Criador!

O universo é obra de Deus e lugares de Deus. Deus habita o cosmos. O cosmos, com todas as formas de vida onde a sua Palavra se fez carne. Cristo está, assim, presente no mundo, com o Espírito Santo, quando o Pai cria, sendo essencialmente trinitário o acto da criação, como nos diz Bruno Forte:

«A originária bondade da criatura é também iluminada pela correspondência entre a criação e a outra processão intra-divina: a do Espírito Santo. É no Espírito que tudo é criado (cf. Gn 1, 2) e é no Espírito que tudo é mantido no ser (cf. por exemplo, Sl 104, 29). Como na vida divina o Espírito une o Pai ao Filho, enquanto amor unificante do Amante e do Amado, assim une ele a criatura ao Criador, garantindo a originária e constitutiva unidade do criado com Deus, e por a originária bondade de tudo o que é, o seu ser radicado e fundado no amor: “E Deus viu que isso era bom” (Gn 1, 4.10.12.18.21.25.31)».128

É a presença de Cristo no mundo que valoriza e dá sentido à antropologia cósmica. Para o Irmão de Assis o mundo é bom e belo (cf. Gn 1, 10); não é um lugar de exílio nem de perdição. Tal como dissemos em relação à noção de Homem, também a noção de «mundo» tem, ao longo dos escritos do Santo de Assis, acepções diversas. A noção de «fu- ga mundi», difundida e praticada mormente pelos padres do deserto129 e por aqueles que se queriam dedicar à contemplação, chega também a Francisco, que durante algum tempo hesitou no caminho a seguir. Disto nos dá nota São Boaventura na sua Legenda Maior: se se devia dedicar à vida contemplativa ou à vida apostólica130. Esta sua atitude não signifi- cava que tivesse em mente o desprezo pelo mundo, mas que ansiava também pela possibi- lidade de um afastamento que favorecesse o recolhimento interior, para a partir do mundo contemplar o cosmos e louvar o Criador.

125 Cf. CantSol 7. 126 Cf. CantSol 8. 127 Cf. CantSol 9. 128

FORTE, B. - A Trindade como História. São Paulo: Paulinas, 1987. 160. 129

A título de exemplo, remetemos para a vida de Santo Antão, que também optou por se retirar para o deserto da Tebaida e viver em maior recolhimento. Cf. SANTO ATANÁSIO - Vida e conduta de S. Antão. São Paulo: Paulus, 2002. nºs 49-50, 334-335.

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«Sobremaneira preocupado em descobrir o melhor modo de servir a Deus segundo a vontade de mesmo Deus, não se cansava de perguntar a todos (…) de que maneira melhor poderia atingir o ápice da perfeição. Nesse intuito escolheu dois Irmãos e mandou-os ir ter com Fr. Silvestre (…). Idêntico recado man- dou à virgem Santa Clara (…) a fim de inquirir a vontade do Senhor. A concordância sobre o assunto foi admirável: por inspiração do Espírito Santo tanto aquele sacerdote venerável como a Religiosa opinaram que era da vontade divina que o arauto de Cristo se dedicasse à pregação»: LM XII, 2, 4-8 (citação em português por se tratar de uma biografia primitiva e não de um escrito de São Francisco).

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No tempo do Poverello, umas vezes por influência das doutrinas maniqueias, outras mesmo dentro da Igreja surgem vozes dissonantes quanto à dignidade, beleza e finalidade do mundo. Por muitos o mundo não era visto como a verdadeira morada do Homem, pre- parada por Deus. O mundo surge, para outros, como uma realidade contrária ao bem e aos caminhos do bem. Defendem, por isso, o «comtemptus mundi» (o desprezo do mundo)131.

Para Francisco de Assis, o mundo é um templo onde Deus habita, é o lugar da mani- festação da glória do Altíssimo, em ordem à edificação do Reino de Deus. Francisco tem do mundo uma visão de fé; a beleza das criaturas remete-o para o Criador. O Homem é, para Francisco de Assis, um «Homo viator», um «peregrino e estrangeiro neste mun- do»132, que caminha para Deus. Este caminho é já, pela beleza das coisas, uma expressão da glória que não terá fim. É aqui que começa o Reino de Deus, preparado para nós como herança desde a criação do mundo (cf. Mt 25, 34).

O mundo está sempre presente na mente de Francisco, mesmo quando lemos no Tes- tamento: «exivi de saeculo / saí do mundo»133. Trata-se mais de êxodo do que de um corte com o mundo, é antes um novo estilo de vida, que conduz à verdadeira Vida. Não se trata de deixar o mundo para seguir a Cristo, porque Cristo está no mundo, nos irmãos, nos po- bres e nos leprosos. Francisco sai do seu mundo «egoísta» para o mundo da relação frater- na, marcado por uma nova forma de encarar a realidade. Sair do mundo indica uma perma- nência no meio dos pobres, particularmente no meio dos leprosos, em atitude de serviço134. Por outro lado, a tradição franciscana refere que o «mundo» e a sua beleza são o convento e o claustro dos irmãos da Ordem dos Menores, como se lê no «Sacrum Com- mercium» (Mística Aliança)135. Francisco sente que é sua missão reconciliar o mundo, cri- ado por Deus, com o Homem. Fortalecer uma relação fraterna, onde fosse possível anunci-

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Tem grande influência na Igreja, nesta ocasião, o tratado «De miseria humanae conditionis», que se desenvolve em três livros: I – L’íngresso colpevole nella condizione umana; II – Il progresso colpevole

nella condizione umana: III – L’uscita rovinosa dalla condizione umana, escritos pelo card. Lotario dei Conti

di Segni, em 1195, pouco antes da sua eleição como sumo Pontífice, com o nome de Inocêncio III. Ele apre- senta uma perspectiva pessimista do homem e do mundo. Este escrito é um verdadeiro hino à miséria. Cf. SPAGNOLO, G. - L’ammonizione V di San Francesco: un canto alla dignità dell’uomo. L’Italia Francesca-

na. 61 (1986) 136.

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Cf. RegB 6, 2. 133

Cf. Test 3. Veja-se nota 56, pág. 141. 134

Cf. MARANESI, P. - Facere Miserocordiam. La conversione di Francesco d’Assisi: confronto

critico tra il Testamento e le Biografie. 2.ª ed. Assisi: Edizioni Porziuncola, 2008. 101-103.

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(Dona Pobreza) «…dormitou, sossegada, um poucochinho; e levantou-se daí por uns momentos, pediu que lhe mostrassem o convento. Levaram-na ao cimo de um morrozito, donde lhe mostraram um mara- vilhoso panorama. É este senhora – o nosso convento – disseram eles»: FF I, Mística Aliança, 63.

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ar o Evangelho e promover a paz e o bem, esta foi a sua missão e é também a missão dos seus seguidores.

Os irmãos são enviados em missão ao mundo por Francisco, à semelhança dos doze Apóstolos, dois a dois: «Por palavras e obras, deis testemunho da Sua voz e a todos façais saber que não há outro Omnipotente senão Ele»136. Este envio é para os que estão perto e para os que estão longe, para cristãos e para mouros, sarracenos e outros infiéis137. O mun- do, em Francisco, é o largo horizonte da fraternidade entre os povos e do diálogo com as culturas, a quem os irmãos, em atitude de alegre submissão, hão-de servir respeitosamente. Porque todos os homens, em qualquer parte do mundo, são «humanas criaturas de Deus»138, são «imago Dei».