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A Palavra faz-se carne: uma antropologia existencial

A RESPOSTA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS UMA PROPOSTA SISTEMÁTICA

1. O Altíssimo me revelou: uma vida evangélica

1.1 A Palavra faz-se carne: uma antropologia existencial

A Palavra de Deus confere à «antropologia teológica» o seu objecto central. Com o salmista, também nós fazemos a mesma pergunta: «que é o homem, para Vos lembrardes dele, o filho do homem, para dele cuidardes»? (cf. Sl 8, 5).

Parecendo fazer eco da voz do autor sapiencial, também Francisco de Assis se inter- roga sobre o paradoxo da grandeza e da fragilidade do Homem9, ao exclamar na 5ª Adm: «Ó homem, considera a quanta grandeza o Senhor te levantou»10. Na 2ª Carta aos Fiéis. o

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Cf. Apêndice I. 8

Cf. «Et postquam Dominus dedit michi de fratribus, nemo ostendebat michi quid deberem facere, sed ipse Altissimus revelavit michi quod deberem vivere secundum forma sancti Evangelii»: Test 14.

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Cf. LADARIA, L. - Introducción a la Antropología Teológica. Estella (Navarra): Editorial Verbo Divino, 2007. 59.

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Poverello louva o Deus altíssimo, porque o «Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar a carne verdadeira da nossa humana fragilidade»11.

Que critérios terão guiado Francisco na leitura da Palavra de Deus para chegar a es- tas afirmações?

No século XIII o estudo da Escritura e o estudo da Teologia em geral começam a desvincular-se12. Dão-se os primeiros passos em ordem ao tratamento autónomo da exe- gese. O interesse pela Escritura, anteriormente vivido nos ambientes monásticos onde se tinha desenvolvido a «lectio divina», chega agora às escolas, dando lugar à «lectio scholas- tica».

Francisco é um homem evangélico, que se deixou formar pela Escritura, sem possuir bases académicas para fazer uma leitura sistemática do texto bíblico, nem com conheci- mentos sobre a doutrina dos quatro sentidos da Escritura. Fará uma leitura mais generali- zada do texto sagrado segundo uma exegese literal13. Na sua época, a Escritura é abordada, segundo o contributo de Orígenes, em quatro sentidos: literal, alegórico, moral e analógico. A sua leitura da Escritura é mais espiritual que literalista ou fundamentalista14. A leitura que Francisco faz da Escritura é uma leitura prática, com implicações na vida quotidiana. Veja-se o que nos conta uma das biografias primitivas, quando o Poverello foi visitado pela mãe de dois frades, que estava faminta:

«Certa ocasião foi ter com o Santo a mãe de dois frades a pedir esmola confiadamen- te. Dela compadecido disse o santo Pai a seu Vigário, Pedro Catânio: “Teremos aí al- guma coisa para dar à nossa mãe?” (Para ele, a mãe de qualquer irmão era igualmente sua e de todos os frades). Respondeu-lhe frei Pedro: “Nada temos em casa que lhe possamos dar. Só se for – acrescentou – o livro do Novo Testamento com que fazemos as leituras de Matinas, uma vez que não dispomos de breviário”. Respondeu-lhe Fran- cisco: “Pois dá à nossa mãe o Novo Testamento. Ela que o venda e, assim, remediará as suas necessidades, tanto mais que nele se exorta a socorrermos os pobres. Tenho a certeza de que mais agradará a Deus dar o Livro do que lê-lo”. Deram pois o livro à mulher e foi assim que saiu da Ordem o primeiro exemplar do Novo Testamento que nela entrou»15.

A Escritura tem para Francisco uma forte dimensão existencial, porque ele viveu a Palavra e transformou-a em vida. Ao escrever para si e para os seus irmãos a Regra que a

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Cf. 2EpFid 4. Veja-se Cap. II, pág. 75. 12

Cf. ALVES, H. - Documentos da Igreja sobre a Biblia. 2.ª ed. Fátima: Difusora Biblica, 2011. 43. 13

Cf LORENZIN, T. - La Lectio Franciscana. Francisco de Asís, Antonio de Padua y su acercamiento a la Sagrada Escritura. Selecciones de Franciscanismo. 115 (2010) 49-64.

14

Cf. LÓPEZ, S. - La Palabra del Señor en la experiencia cristiana de Francisco y Clara. Selecciones

de Franciscanismo 62 (1992) 243-269.

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Igreja lhe pedia, vai ao Evangelho e assume a sua letra como norma de conduta, como «forma vitae». Escreve: «a vida e a Regra dos Irmãos Menores é: observar o Santo Evan- gelho de N. S. Jesus Cristo» (RegNB 1). Este mesmo tema é recordado no fim da sua vida, quando escreve no Test: «Quando o Senhor me deu o cuidado dos Irmãos, ninguém me ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do santo Evangelho»16.

Lemos no prólogo do quarto Evangelho que o «Verbo se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14); veio viver, existir no meio dos homens. Francisco vai relacionar-se de forma existencial com os homens e com Deus, por isso a sua «antropologia» poderá cha- mar-se, também, «antropologia existencial/relacional». Esta expressão, sendo do nosso tempo, só se pode aplicar a Francisco de Assis retroactivamente; terá ela, mesmo assim, alguma acuidade?

A Palavra de Deus guiava o ser e o agir do Poverello, como nos recorda o episódio da escuta do Evangelho da missão, na festa de São Matias. Numa altura decisiva da sua caminhada de fé, depois de ter ouvido ler o Evangelho de Lucas 10, 1-12, exclama: «Isto mesmo eu quero, isto peço, isto anseio com todo o coração», como nos recorda o seu pri- meiro biógrafo Tomas de Celano17.

Hoje a liturgia recorda o Poverello, como um «varão católico e todo apostólico, foi envido a pregar o Evangelho da paz»18, vivendo na Igreja (a comunhão e fraternidade com todos, do irmão mais simples, ao senhor Papa) e da Igreja a múltipla riqueza sacramental que a mesma lhe oferecia; nunca o Santo de Assis teria privilegiado unicamente a «sola scriptura», nem teria feito qualquer interpretação da Bíblia fora da doutrina católica. Mas é, porventura, a dimensão evangélica da sua vida que faz com que, passados oito séculos, muita gente, em todo o mundo, ainda o siga. Por isso, em nosso entendimento, Francisco é mais um ponto de partida do que uma meta de chegada.

As suas intuições, tudo o que ele capta de Deus e do mundo, do material e espiritual, do imanente e do transcendente, serão depois tratadas e desenvolvidas pelos seus seguido- res, nas escolas da Ordem em Paris, Oxford, Bolonha, Toulouse e Colónia.

16 Test 14. 17 Cf.1Cel 22. 18

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Aquilo que podemos chamar de «antropologia existencial» em Francisco de Assis re- sulta, pois, da sua leitura crente da Sagrada Escritura, como fundamento último de todo o saber humano, leitura a ser encarnada na vida em Evangelho vivo19.