• Nenhum resultado encontrado

A experiência da reforma democrática no Brasil: reconstruindo novos horizontes

CAPÍTULO III: DESCONSTRUINDO ANTIGOS PARADIGMAS: DA SERVIDÃO À LIBERDADE

3.2 A experiência da reforma democrática no Brasil: reconstruindo novos horizontes

Historicamente falando, a reforma psiquiátrica no Brasil começa a ser fomentada no final da década de 70. Os hospitais psiquiátricos se assemelhavam nessa época aos locais de tortura e degradação da Ditadura Militar. Desse modo, é possível entendermos que a reforma psiquiátrica também trazia em seu bojo o desejo de redemocratização do Brasil perdido com a instauração do regime totalitário.

Mas qual seria o estopim para que o Brasil acordasse para pensar a reforma psiquiátrica? Em abril de 1978, a Disnam (Divisam Nacional de Saúde Mental), até então um departamento vinculado ao Ministério da Saúde, deflagrou uma greve da categoria médica que levou à demissão de 260 desses profissionais, incluindo estagiários. A causa desse movimento foi o registro no livro de Platão do Pronto Socorro denunciando irregularidades que ocorriam no interior do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. (SANTOS, 2008). Essas denúncias lançaram luz à imprensa da situação desumana em que viviam os pacientes desse centro de tratamento psiquiátrico.

A greve abriu horizontes para que surgisse o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Esse movimento tinha por objetivo denunciar a situação insustentável em que viviam os pacientes psiquiátricos, como também exigir melhorias no atendimento, além de uma remuneração mais digna.

No mesmo ano, em Outubro, ocorre o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Camboriú, Santa Catarina. Nessa ocasião os membros do MSTM apresentaram a real situação dos hospitais e exigiram da comunidade médica ali presente uma postura política frente aos mecanismos de opressão intra e extra-hospitalar. Desse modo, podemos dizer que o evento assumia não só a configuração de um evento acadêmico-científico, mas, sobretudo, político, na medida em que se questionava a situação e o contexto político do Brasil frente ao regime totalitário.

A reforma psiquiátrica que está emergindo não poderia deixar de lado a situação política do Brasil nessa época, pois os agentes públicos utilizam muitas vezes do dispositivo hospitalar como local de tortura e prisão daqueles que se colocavam contra o regime. (AMARANTE,1995). O ano de 1978 foi rico para o MSTM. Além do V Congresso Nacional de Psiquiatria aconteceu no Rio de Janeiro o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições. Esse evento foi significativo, pois contou com a presença dos protagonistas da Reforma na Europa: Franco Basaglia, Robert Castel e o famoso sociólogo canadense Irving Goffman.

Esses movimentos se consolidaram efetivamente na década de 80, quando aconteceu o I Encontro Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental na cidade do Rio de Janeiro. Esse evento pretendeu discutir quais seriam as alternativas para um atendimento de qualidade aos pacientes psiquiátricos. Questionou-se o uso indiscriminado do eletro- choque, bem como sua eficácia em transtornos psicóticos. As discussões giravam em torno dos pacientes como sujeitos de direitos. Exigiu-se do poder público medidas que garantissem a esses indivíduos o respeito por sua cidadania.

No ano de 1987, na cidade de Bauru, interior de São Paulo, realizou-se o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. Os reformadores brasileiros consideram que esse evento alicerçou “a luta por uma sociedade sem manicômios”. O MSTM articulou medidas que nesse momento envolveriam toda a sociedade e não apenas os Trabalhadores de Saúde. (SANTOS, 2008). Daí nasceu o Dia da Luta Antimanicomial,

que inicialmente adotou 13 de Maio como data comemorativa, para unir a comemoração da libertação dos escravos com a libertação dos grilhões da opressão manicomial, além de coincidir com a data de aprovação da Lei 180, conhecida como “Lei Basaglia”, que posteriormente passou a ser comemorada em 18 de Maio.

O resultado desses movimentos começou a ter visibilidade quando em 1989 a Casa de Saúde Anchieta, localizada na cidade de Santos, sofre intervenção por parte do poder público. A intervenção procurou não só investigar as atrocidades que se cometiam no interior do manicômio, como também deu início a um processo de desistitucionalização das pessoas que ali viviam e de implantação de serviços alternativos de atendimento. (CIRILO, 2006).

Do ponto de vista político, os movimentos de reforma também tiveram êxito, na medida em que permitiram a emergência de projetos que coadunavam com os ideais da Reforma. Em 1989, o Deputado Federal Paulo Delgado (PT) entra com um Projeto de Lei propondo a extinção gradativa dos hospitais psiquiátricos, e sugerindo a implementação de centros especializados de tratamento. Esse projeto tramitou no Congresso Nacional por 12 anos, até que em 06 de abril de 2001 ele foi aprovado e sancionado pelo Presidente da República. A Lei 10.261 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais bem como dá providencias quanto a reinserção desses no meio social. A lei extinguia a contratação de novos leitos psiquiátricos na esfera privada e a proibição de construção de novos hospitais psiquiátricos por parte do setor público. A internação só seria permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrassem insuficientes.

Atendendo ao dispositivo da nova legislação quanto ao atendimento de pessoas portadoras de transtornos mentais é que se iniciaram na década de 90 os serviços de atendimento alternativo: os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS) e os Centro de Apoio Psicossocial (CAPS). Vale destacar que o CAPS Luiz Cerqueira, localizado em Recife, desponta em 1987 como uma experiência promissora como atendimento alternativo. Segundo Pitta (2011, p. 4584):

O CAPS Luiz Cerqueira nasce em 1987 e é identificado como “marco inaugural” de um modo de cuidar que considera o sujeito em sofrimento como estruturante de uma “clínica ampliada” que o articula no seu território e não enclausura para tratá-lo. Tal clínica teve na psicanálise, no uso racional dos psicofármacos e nas práticas de inclusão social, o seu tripé de funcionamento. Tornou-se um exemplo de um novo modelo de cuidado em Saúde Mental, construindo um modo de cuidar, sobretudo de

pessoas psicóticas, mas também não psicóticas, das suas famílias, de suas moradias, de suas artes, de seu trabalho, da sua renda... no território. O CAPS surge como alternativa terapêutica à internação. Constitui-se como serviço de atenção diária e se localiza no seio da comunidade. Há três tipos de CAPS, classificados segundo os parâmetros populacionais.66 O CAPS I– Serviço de atenção psicossocial com

capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; O CAPS II - Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes. O CAPS III - Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 200.000 habitantes. Além desses há o CAPSi que atende crianças e adolescentes e o CAPsad para atendimento de pessoas que apresentam transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas.

Qual a intenção desses serviços de atendimento à saúde? Em primeiro lugar, visavam superar o modelo manicomial e propor aos usuários, familiares, poderes públicos e toda a sociedade civil que se é possível tratar uma pessoa vítima de algum sofrimento psíquico fora dos muros do manicômio. A exclusão na qual esses indivíduos por muito tempo foram submetidos não permitiu minimizar seus sofrimentos, pelo contrário só lhe imputou mais dor e produziu mais mortificação.

Os CAPS devem constituir mecanismos de superação da exclusão e da lógica biopolítica da medicalização, seja por meio de recursos terapêuticos diversificados, seja por meio do resgate da cidadania. Com efeito, nos afirma Saraceno (1999, p.18): “A cidadania do paciente psiquiátrico não é simples restituição de seus direitos formais, mas a construção de seus direitos substanciais, e é dentro de tal construção (afetiva, relacional, material, habitacional, produtiva) que se encontra a única Reabilitação possível”.

O tratamento multiprofissional (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistente sociais, psicólogos, farmacêuticos, terapeuta ocupacional, educador físico, psicopedagogo) constitui exemplos de como deve ser visto o sofrimento psíquico, a saber, multifacetado e não objeto e apenas um campo do conhecimento científico.

O regaste da cidadania e a superação da exclusão e da opressão se colocam como temas muito caros à agenda da reforma psiquiátrica. A extinção dos muros que de alguma

66

forma impediam a liberdade dos que lá viviam se apresenta como ideal desejado pelos reformadores.

Veremos na próxima secção que o tema da liberdade e a valorização do sujeito, enquanto participante da cidade, constituem temas de interesse à filosofia de Espinosa. Sendo assim, inevitavelmente somos levados a pensar que há duas possíveis questões: (1) Em que medida a filosofia de Espinosa, tão distante do nosso tempo, poderia nos oferecer subsídios para repensarmos o conceito de saúde mental? (2) Quais seriam as implicações para as políticas públicas em saúde mental se pensássemos a partir da Ética de Espinosa? É o que tentaremos responder nas páginas seguintes.