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O dilema entre medicina mental e medicina orgânica

CAPÍTULO II: A INVENÇÃO DA LOUCURA E A CRÍTICA DA MODERNIDADE

2.4 O dilema entre medicina mental e medicina orgânica

Quando ouvimos falar que um amigo, um parente mais próximo ou mesmo distante se encontra doente, a primeira coisa que nos vem à mente é: o que ele (a) tem? O que ele (a) está sentindo? Quais são os sintomas? A doença entendida a partir dos seus sintomas parece assumir a configuração de objetividade, de realidade. Os sintomas observáveis dão a garantia de que alguma coisa não se encontra bem e que de fato a pessoa começa a fazer a experiência do adoecer. Assim, no que se refere às doenças orgânicas é possível fazer uma classificação dos sintomas, estabelecer diagnóstico, prognóstico e ainda distingui-la de outras doenças.

Assim como a medicina orgânica procurou no discurso científico estabelecer uma nosografia capaz de explicar as causas e a evolução das patologias, do mesmo modo tentou- se na medicina mental. A fim de compreender as causas que geravam as alienações, a medicina mental buscou num conjunto de sintomatologia estabelecer um quadro classificatório das doenças.

O interesse dos médicos do século XVIII era de elaborar uma classificação que atendesse às expectativas naturalistas. Sauvages (1767) foi o primeiro naturalista a definir três modalidades de doenças mentais: (1) as alucinações (entendidas por ele como erros do espírito); (2) as morosidades (bizarrias); (3) os delírios.

Na primeira modalidade de doenças, os erros do espírito, incluem seis gêneros: vertigo, suffusio, diploplia, syrigmus, hypochondriasis, somnambulismus. Todas essas outras doenças têm como causa alguma alteração nos órgãos externos do cérebro, provocando assim uma percepção distorcida do real. (PESSOTTI, 2001).

Na segunda modalidade temos as morosidades, que nada mais são do que desejos voluptuosos, aversões depravadas. Nessa modalidade se encontram distribuídas em dez gêneros: pica, bulimia, polydipsia, antipathia, nostalgia, panophobia, satyriasis, nymphomania, tarantismus, hydrophobia. Todas essas doenças têm como causa perturbações no âmbito dos afetos. (PESSOTTI, 2001).

Na terceira modalidade se encontravam os delírios, quadro típico da loucura. Suas causas se fundamentavam nos erros do espírito devido a modificações no cérebro. Nessa modalidade se desdobram cinco tipos de delírios: parahrosine, o que comumente se entende

por “transe”, esses são provocados por veneno ou alguma doença; demência, cujo delírio é sereno, as manifestações de fúria; a melancolia, um delírio parcial, acompanhado de mansidão e profunda tristeza e doença crônica; mania, um delírio de exaltação, de fúria acompanhado também de doença crônica; demonomania, é um tipo de delírio melancólico, cuja causa se atribui ao demônio. (PESSOTTI, 2001).

Foucault (2000) faz uma revisão sucinta das mais variadas classificações da doença mental a partir da leitura dos psiquiatras da época.

A psicastenia, a partir dos trabalhos de Janet, é caracterizada pelo esgotamento nervoso com estigmas orgânicos (astenia, esgotamento nervoso, perturbações gastro-intestinais, cefaleia) [...] As obsessões: “aparecimento num estado mental habitual de indecisão, dúvida e inquietação, e sob a forma de acessos paroxísticos intermitentes [...] mania e depressão: [...] “loucura intermitente” [...] vêem-se alterar, a intervalos mais ou menos longos, duas sínteses entretanto opostas: a síndrome maníaca, e a síndrome depressiva. A primeira compreende agitação motor, um humor eufórico ou colérico [...] a depressão ao contrario, apresenta-se como uma inércia motora tendo como fundo humor triste, acompanhada de hipo-atividade.[...] A paranóia: num fundo de exaltação passional (orgulho, ciúme) e de hiperatividade psicológica [...] delírio sistematizado, coerente, sem alucinação.

A lista que Foucault nos apresenta parece manter a mesma estrutura conceitual utilizada nas patologias orgânicas. O método é separar os sintomas e compreendê-los a partir dos grupos patológicos. Mas para que isso seja possível é preciso ter em mente o conceito de doença, pois só assim é possível dar sentido aos sintomas, uma vez que eles satisfazem a determinados grupos patológicos.

A definição de doença proposta por Foucault (2000) assume duas perspectivas. A primeira defende que doença é algo que transcende os sintomas, uma essência específica, na qual os sintomas apenas revelam sua existência. Nesse sentido, a doença, em si mesma, é inacessível. Por exemplo, podemos observar um doente em crise maníaca ou depressiva, mas o que se está por detrás desses sintomas é a “doença maníaco-depressiva” que nos é inatingível.

A segunda definição de doença parte da tese naturalista, na qual a doença é vista como uma “espécie botânica”, uma unidade definida em cada grupo, tendo uma diversidade variada de sintomas que se manifestam em sub-grupos. Por exemplo, a demência precoce é

como uma espécie definida que pode apresentar múltiplas formas de manifestação como a herbefrênicas, catatônica, paranóide. (FOUCAULT, 2000).

A noção de doença na qual a psiquiatria moderna irá se basear para produzir suas classificações leva em conta a totalidade psicológica. Em outras palavras, uma doença mental é uma alteração da personalidade, um desequilíbrio em suas estruturas internas e não mais uma entidade separada do sujeito. É nesse sentido que se procurou definir a as doenças mentais, como uma desestruturação da personalidade Foucault (2000). Seguindo esses caminhos, nos revela Foucault (2000), que a psiquiatria definiu dois grandes grupos das doenças mentais: (1) Psicoses; (2) Neuroses.

O primeiro grupo diz respeito às psicoses. Essas se caracterizam por alterações na personalidade que se manifestam no nível do pensamento, nas instabilidades de humor, na ausência de um controle da consciência, alterações no senso crítico. Essas alterações acontecem em um âmbito global da personalidade, perceptível pelos sintomas que nela se manifestam.

O segundo grupo se refere às neuroses. Essas, diferentemente das psicoses, atingem apenas uma parte da personalidade. Suas manifestações estão ligadas a uma obsessão a um único objeto, as neuroses de fobias, que na maioria das vezes são acompanhadas de angústia, mas que mantém preservada o fluxo do pensamento como também nos afetos, apesar de parecer, nos histéricos, um tanto exagerado. A neurose, diferentemente das psicoses não priva o indivíduo de elaborar um senso crítico acerca de si e do mundo.

A proposta de uma divisão das doenças mentais em dois grandes grupos evidenciou a noção de totalidade psicológica, o que implicou numa redução do mesmo discurso científico para as doenças orgânicas e mentais. As alterações sejam fisiológicas ou psicológicas dizem respeito ao mesmo indivíduo, o que favorece a postura de uma unidade psicológica e fisiológica. Mas uma questão se impõe: Poderíamos pensar que as doenças orgânicas e mentais significam uma reação global do individuo visto em sua totalidade? Seria possível utilizar o mesmo método da medicina orgânica para a psiquiatria?

No entender de Foucault (2000), as patologias mentais exigem métodos de análise diferentes das patologias orgânicas. E somente por meio de um artifício de linguagem que se podem pensar as patologias mentais orgânicas do mesmo modo que as patologias orgânicas.

A dificuldade de se definir as doenças mentais, na concepção de Foucault, reside no fato de que o conceito de personalidade não nos permite distinguir com segurança o normal e o patológico. Um exemplo dessa dificuldade se encontra na taxonomia de Bleuler, que propunha dois pólos de doenças mentais, a saber, as esquizofrenias, caracterizada pela alienação e ruptura com a realidade e as loucuras maníaco-depressivas, cujos sintomas incidiam sobre o universo afetivo. O problema dessa classificação é que se podia definir tanto as personalidades normais quanto as patológicas. As diferenças eram apenas de ordem qualitativa.

Desse modo, ao que nos parece, a leitura de Foucault nos convida a considerar que as doenças mentais não são passíveis de serem analisadas à luz do modelo biologicista como são analisadas as doenças orgânicas. É preciso compreender as doenças mentais a partir de duas dimensões: (1) a dimensão psicológica; (2) a dimensão existencial.

No que diz respeito à dimensão psicológica, Foucault afirma que por muito tempo a psicologia empreendeu esforços em considerar as doenças mentais a partir de funções abolidas. O doente era aquele que não tinha mais consciência do mundo, incapaz de situar- se no tempo e no espaço, e, ao mesmo tempo, enclausurado no instante em que vivia, sem poder transitar sobre o eu passado nem muito menos se lançar sobre o futuro. Suas reações eram compreendidas como automatismos que não permitiam estabelecer nenhum diálogo ou interação, limitando-se ao seu universo monossilábico.

Para além da classificação negativa das funções, a doença mental inaugura um campo dialético no qual os conceitos são ressignificados e uma nova subjetividade emerge. Consideremos o universo da linguagem. Substituindo o diálogo se instaura o monólogo no qual o sujeito diz para si mesmo ou para um interlocutor imaginário o que sente e como vê o mundo, mas não podemos a partir daí inferir que o doente deixou de ter linguagem ou até mesmo perdeu sua função. O que está acontecendo é que a emergência de uma nova forma de externalizar sentimentos e emoções, o que não nos autoriza a afirmar que não há linguagem alguma.

A dimensão existencial da doença mental está intimamente vinculada à existência individual de cada sujeito. É no interior do corpo, entendido aqui não somente como uma justaposição de membros e órgão, que se dá a experiência do padecimento e da dor. O sujeito já não mais reconhece seu corpo, sentindo-se como um zumbi, um viandante, uma

máquina sem vida. Mesmo a consciência proprioceptiva se altera a ponto de não mais distinguir se o corpo participa ou não da mortalidade, uma vez que parece ser a vida presente um prenúncio de uma morte lenta, porém incerta.

A análise que fizemos até então nos conduz a pensar que a percepção da loucura foi um processo paulatinamente construído com a intenção de patologizar as condutas que não se enquadravam aos parâmetros de normalidade da sociedade. Tanto a medicina quanto a psicologia do século XIX empreenderam toda sua indústria em dualizar a doença circunscrevendo-a ora na esfera orgânica ora na mental. A questão que se coloca a partir dessa constatação é: quais foram às condições que permitiram ao ocidente esse processo de patologização das condutas e dos comportamentos humanos?

Com o advento do positivismo científico começou a se delinear uma série de práticas baseada na estruturação de uma rede médica responsável pela classificação e prevenção de doenças bem como por organizar sistematicamente os critérios de cura. Essa mesma rede ficou também responsável por determinar quem era capaz ou incapaz de responder por seus atos na esfera cível. É o momento em que o diagnóstico impera como um tipo de poder incontestável. Se o médico constatava e escreve que o indivíduo era louco ele simplesmente é louco e não há nada a fazer a não ser aceitar o diagnóstico e seguir o tratamento definido. É a institucionalização da loucura como doença determinada e diagnostica. São as práticas que permitiram ao ocidente a legitimação do biopoder e de minoridade.

O conceito de biopolítica foi utilizado pela primeira vez por Foucault em uma conferência proferida na Universidade do Rio de Janeiro em 1974. Posteriormente, em 1977, essa conferência foi publicada tendo como título O Nascimento da Medicina Social. Nas palavras de Foucault (1989) a biopolítica pode ser compreendida como:

[...] o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. O século XVIII fomentou pela primeira vez na história da humanidade a submissão do corpo biológico aos mecanismos de poder político. É o momento em que o corpo se inscreve no núcleo das ações corretivas em que saber-poder transforma a vida das pessoas. Segundo Caponi (2009), uma característica marcante do biopoder é a subjugação da lei à

norma. É preciso deixar claro o que é o normal para daí evidenciar o anormal, aquilo que está fora da norma. Desse modo cabe ao Estado o papel regulador do normal e do anormal bem como o de tornar mais saudável e pura à civilização. É a política eugênica que paulatinamente se desenvolve às sombras de uma cientificidade estatística que determina o quão importante são as taxas de mortalidade, natalidade e morbidade para o bom desenvolvimento econômico e social.

O bom desenvolvimento social implicava em uma série de estratégias de controle social, tendo como foco principal a família dos degenerados. O poder exercido pela psiquiatria é justamente de tornar possível a ordem social. Ora, sendo assim, ela se constitui um poder superior ao dos magistrados, pois a estes cabe punir o que transgride a lei e a psiquiatria evitar o aparecimento do degenerado que põe em risco a ordem social.

Em sua obra intitulada Os Anormais, publicada entre os anos de 1974-1975, Foucault faz uma análise da psiquiatria moderna centrada nos desvios de comportamento e nas possibilidades de domínio das condutas desviantes. Nas palavras de Foucault (1999), “o que caracteriza essa nova psiquiatria é o poder dos médicos sobre o não-patológico. É no final do século XIX que aparece a lista de” síndrome de degenerações” que na verdade se constituem de condutas aberrantes e desviantes. Por exemplo, em 1867 surgem a agorafobia, as claustrofobias; em 1879 surge a cleptomania; em 1877 o exibicionismo; em 1875 o masoquismo; em 1870 aparece nos arquivos de neurologia a homossexualidade como degeneração. (CAPONI, 2009).

Para Foucault essas degenerações não constituiam uma doença já estabelecida, mas um “estado patológico”, isto é, uma possibilidade de produzir qualquer tipo de doença, logo, essas pessoas eram inimigas do bem e da ordem pública em potencial. Esse “estado patológico”, característico dos indivíduos desviados e aberrantes tinha como causa tanto a influência genética como a ação do meio físico, como solo ou ar contaminado, como também a ingestão de álcool ou drogas.(COPANI, 2009).

A grande questão é que os degenerados transmitiam aos seus descendentes, na maioria das vezes, sua degeneração, o que levou a psiquiatria a propor medidas de controle sexual, a fim de que não aumentasse o número de degenerados e, conseqüentemente, não colocasse em risco o equilíbrio da ordem dos normais. Nesse sentido, a instituição assume

um papel primordial, pois é ela que vai regulamentar as normas de controle dos corpos acima da própria lei.

O que podemos observar é que os conceitos de saúde e doença mental se situam num universo social, não se restringindo apenas a uma esfera hereditária. O cuidar não visava o bem estar do indivíduo acometido de algum transtorno mental, mas tinha por objetivo impedir com que o mal se alastrasse e contaminasse os “normais”.

Esse tipo de prevenção se comprometia com a lógica da sociedade industrial burguesa nascente, na qual a instituição médica assume lugar de destaque, uma vez que cabia a ela exercer o poder semi-jurídico, uma instância normativa, que estava entre a polícia e a justiça comum. Por essa razão que Foucault (2009, p.49-50) assim assevera:

O Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide e executa (...) Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra qual nada pode prevalecer – O Hospital é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça nos limites da lei: a terceira ordem da repressão.

O que Foucault nos sugere é que há um tipo de poder exercido pelo hospital que ultrapassa, no sentido prático do termo, o poder da própria instituição jurídica com suas leis e penalidades. O louco, no interior do hospício, é tratado de modo muito mais violento que o criminoso, pois não lhe é permitido um julgamento imparcial, ele é julgado e condenado por um agente que lhe imputa um diagnóstico quase que irretratável. Se o médico diz que o indivíduo é louco é porque de fato ele é louco e quanto a isso não há o que se contestar. Mas não é somente nesse aspecto que o louco é tratado de maneira mais severa que o criminoso. Ao louco, diferentemente do criminoso, é imputada uma pena eterna. Enquanto que ao criminoso a dosimetria depende do crime ou do delito cometido, lembrando que a pena deve ser equivalente ao ato praticado, ao louco, pelo contrário, não há dosagem na pena, ele é condenado a viver sob custódia até o dia em que o psiquiatra quiser e, como já sabemos, ele sempre o deixará, para o seu bem e o da sociedade, confinado no interior do hospício.

Há uma contradição interna no modelo manicomial e que serviu de estopim para a chamada reforma psiquiátrica. Se o hospital para os loucos trouxe de alguma forma

“segurança” por meio da assistência médica, por outro lado se constituiu como o reduto em que os direitos civis e individuais foram renegados.

A ideia de que o louco não possui nenhum direito civil advinha do próprio conceito de loucura, que como vimos se referia a algo bizarro, fora da razão. Se o louco não possuía razão, logo não lhe era possível decidir sobre sua própria vida, não lhe cabia a liberdade, restando apenas que outros dirijam suas vidas. É por essa razão que até os dias de hoje o conceito de inimputabilidade se encontra de alguma forma ligado ao de periculosidade. O louco não pode responder pelos seus atos, porque não possui razão para tal, contudo isso não o exime de ser considerado perigoso, por isso deve ser banido do convívio social.

As implicações que podemos obter a partir dessa concepção do hospital e da loucura nos permitem dizer que a instituição psiquiátrica se constitui por excelência como o lugar da segregação e do confinamento, da ausência total de liberdade.

E não seria exagero de nossa parte compararmos essas instituições asilares aos campos de concentração. Analogamente aos campos de extermínio, o hospício se apresentava como o lugar zero da trocas, o lugar em que não é possível estabelecer diálogo, pois não há nenhuma relação de igualdade, mas somente de separação nítida entre o normal e o anormal, entre o padrão e o bizarro, entre a ordem e a desordem.

Assim como nos campos de extermínio, as pessoas perdiam suas identidades e já não mais eram vistas a partir de suas diferenças, mas somente enquanto massas, números ou signos que as identificavam. No hospício se classificavam e dividiam em alas: “os psicóticos”, “os depressivos”, “os desviados”. É a perda da identidade, a recusa em compreender que por detrás dos olhos estranhos e dos movimentos repetitivos se encerra uma pessoa acometida por um sofrimento psíquico, uma subjetividade diferente. Com efeito, nos afirma Goffman (2001, p.61):

Nos campos de concentração da Alemanha, uma pessoa encarcerada por muito tempo passava a adotar o vocabulário, a recreação, a postura, as expressões de agressão e os estilo de roupa da Gestapo, executando, com rigor militar, o papel de chefe “de mentira”. Alguns hospitais para doentes mentais distinguem-se dando duas diferentes possibilidades de conversão – uma para o recém-admitido, que pode ver a luz depois de uma luta interior adequada e adotar a interpretação psiquiátrica de si mesma; outra para o paciente crônico, que adota as “poses” e as roupas dos auxiliares, ao mesmo tempo em que ajuda a controlar os outros pacientes, e emprega um rigor que às vezes ultrapassa o destes últimos.

Para o sociólogo canadense, o hospital psiquiátrico é visto como uma instituição total65, uma estrutura organizacional que tende a controlar a vida e, ao mesmo tempo

separar e classificar sob o mesmo espaço as pessoas, isolando-as do contexto social externo.

É no interior dessas instituições totais que o indivíduo se sente aprisionado e impedido de viver plenamente sua cultura, uma vez que as normas visam uniformizar as condutas, desde as mais simples como tomar banho, alimentar, distrair-se. É um processo de desculturamento, no qual os indivíduos já não mais se reconhecem enquanto pertencentes a um ethos e como tal já não mais possuem identidades.

Se o hospício se colocava até então como uma instituição paradoxal, uma vez que ao mesmo tempo em que pleiteava os cuidados terapêuticos produzia o confinamento e, conseqüentemente o cerceamento de direitos inalienáveis do ser humano, se faz então necessário repensar os alcances e limites dessa instituição. Amparados por tal ideário as críticas ao modelo hospitalocêntrico surgiram e contribuíram para o processo de transformação em curso atualmente.

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Para Goffman, o termo “instituição total” designa as instituições que têm tendências ao fechamento, isto é, que impede a relação social do indivíduo que nela reside com o mundo externo.

CAPÍTULO III: DESCONSTRUINDO ANTIGOS PARADIGMAS: DA SERVIDÃO