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Contribuições de Espinosa para o conceito de saúde mental

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Academic year: 2017

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FACULDADE DE MEDICINA DE BOTUCATU

ORION FERREIRA LIMA

CONTRIBUIÇÕES DE ESPINOSA PARA O CONCEITO DE SAÚDE MENTAL

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ORION FERREIRA LIMA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista – UNESP- Campus de Botucatu, para obtenção do Título de Doutor em Saúde Pública. Área de Concentração: Saúde Coletiva.

Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO DE AQUIS. E TRAT. DA INFORMAÇÃO DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CAMPUS DE BOTUCATU - UNESP

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: ROSEMEIRE APARECIDA VICENTE Lima, Orion Ferreira.

Contribuições de Espinosa para o conceito de saúde mental / Orion Ferreira Lima. – Botucatu : [s.n.], 2013

Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina de Botucatu

Orientador: Alfredo Pereira Junior Capes: 40602001

1.Saúde mental - Reabilitação. 2. Filosofia. 3. Loucura. 4. Spinoza, Benedictus de, 1632-1677.

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CONTRIBUIÇÕES DE ESPINOSA PARA O CONCEITO DE SAÚDE MENTAL

Tese para obtenção do título de Doutor em Saúde Pública da Faculdade de Medicina, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Botucatu, na área de concentração

em Saúde Coletiva.

BANCA EXAMINADORA

Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior. Instituição: Instituto de Biociências – UNESP – Campus de Botucatu

Julgamento:_________________. Assinatura: __________________________________

2º Examinador:Elisabete Cardieri. Instituição: Instituto de Biociências – UNESP – Campus de Botucatu

Julgamento:_________________. Assinatura: ___________________________________

3º Examinador:Profa. Dra. Maria Luisa Bissoto. Instituição: Programa de Pós-graduação em Educação – UNISAL / u.e de Americana / SP

Julgamento:_________________. Assinatura: _____________________________________

4º Examinador: Profa. Dra. Ana Lucia Machado. Instituição: Escola de Enfermagem da USP- Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica

Julgamento:_________________. Assinatura: _____________________________________

5º Examinador: Prof. Dr. Marcos Ferreira de Paula. Instituição: Instituto de Saúde e

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Aos meus pais

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Homem algum é uma ilha. Precisamos sempre de pessoas dispostas a “gastar” um pouco do seu temo para nos ajudar na caminhada. Durante este árduo processo acadêmico me sinto feliz por poder encontrar pessoas que, muito mais do que discussões filosóficas me ajudaram a descobrir o valor e o significado da minha história.

Em primeiro lugar, agradeço ao meu inesquecível e saudoso pai, por todo seu empenho em me incentivar a buscar “águas mais profundas”. Sei que não mais posso vê-lo ante meus olhos, mas posso concebê-lo em minha memória.

Agradeço de coração a minha mãe pela força, carinho e dedicação, mas sobretudo por seu especial e sábio silêncio em muitos momentos de minha vida.

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior, agradeço sua atenção, disponibilidade e, principalmente por seu espírito profundamente humanístico. Com certeza serei eternamente grato por tudo o que aprendi com ele desde o meu mestrado até agora. Agradeço também a sua esposa Maria Alice que tão prontamente me acolheu em sua casa de maneira gentil e cordial juntamente com seu adorável filho, Thales.

Ao prof. Dr. Marcos Ferreira de Paula agradeço por suas belíssimas considerações,

de modo especial as de cunho filosófico. As professoras Doutoras Ana Lucia Machado, Elisabete Cardieri e Maria Luisa Bissoto minha imensa gratidão. Com certeza as considerações dessas ilustres docentes me fizeram alargar os horizontes, permitindo assim com que eu pudesse melhor o presente trabalho.

Agradeço a todos os funcionários do Programa de Pós-Graduação da UNESP de Botucatu pela atenção e competência. Com certeza, somos bem assessorados em nossos pelo profissionalismo e gentileza desta equipe.

E como não falar dos amigos...os de hoje e os de ontem. São muitas vivências, muitas discussões, enfim um universo rico de experiências que aos poucos foi se delineando e com certeza estarão sempre presentes em minha mente.

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alunos e alunas da FAJOPA que sempre me deram uma palavra de ânimo, no momento em que estamos com nosso conatus diminuído. Obrigado pelos “bons encontros”.

Aos professores, funcionários e direção da EE Monsenhor Bicudo de Marilia, meus mais sinceros agradecimentos. Tenho a alegria de pertencer a quadro docente dessa escola. Obrigado pelas palavras de ânimo e de esperança que ouvi e todos nesses anos de árduo trabalho. A minha antiga sede de trabalho, EE Dom Henrique Mourão, meus agradecimentos. Aos professores, funcionários e direção, meus agradecimentos. Aprendi muito com todos vocês.

Ao antigo hospital psiquiátrico Clemente Ferreira, hoje CAIS- Clemente Ferreira,

meus mais sinceros agradecimentos. Lá aprendi muitas coisas da vida, mas de modo especial, com os "loucos” e “loucas”, aprendi que de “perto ninguém é normal”. Foi graças as vivências que lá obtive é que foi possível esse trabalho. A todos aqueles que ainda “moram”, e aqueles que já não mais estão, minhas imperecíveis saudades.

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O presente trabalho pretende compreender em que medida as contribuições de Espinosa são importantes para o conceito de saúde mental. Historicamente a doença mental se delineou pelas sombras dos sintomas apresentados pelos indivíduos, de modo que a loucura tornou-se sinônimo de erro, ou seja, de tudo aquilo que constitui deturpação da realidade. Nessa perspectiva, o louco tornou-se um alienado, alheio a si mesmo e ao mundo, em suma, um não-sujeito. Entendida nesse sentido, a doença mental assume o caráter de desajuste biológico, mais especificamente falando na esfera cerebral. Como sinônimo de erro, o doente deveria, isolado do mundo, procurar “ajustar-se” à realidade. É nesse universo de isolamento que a loucura torna o indivíduo o sujeito da desrazão, em outras palavras, o sujeito, por conta de sua alienação, deixa de ser protagonista de sua própria história, dando lugar ao objeto de alienação. Nessa concepção de institucionalização da loucura, a doença mental se molda a partir do conceito de distúrbio ou de “desajuste” que se revela numa sintomatologia bizarra. Não há nenhuma preocupação com o indivíduo, entendido aqui em sua totalidade. Com o advento da chamada “reforma psiquiátrica”, apregoada pelas idéias de Basaglia, Rotelli e estimulada, sobretudo, por uma filosofia da emancipação do sujeito proposta por Foucault, começa-se a fomentar a desconstrução de um mecanismo psiquiátrico fundado na noção de poder-saber. O próprio estabelecimento da doença mental nos sugere pensar que uma subjetividade diferente está emergindo, de modo que não faz nenhum sentido tratarmos os sintomas deixando de lado o sujeito como também sua existência e seu sofrimento. Por muito tempo focalizamos nossa atenção no conceito de doença mental e, conseqüentemente em seus sintomas. Construímos nossas teorias e práticas a partir de uma série coordenadas de sintomas que caracterizam o estabelecimento de um “desajuste” na esfera dita mental; com isso diagnosticamos e traçamos um plano comum de terapêutica. Nesse sentido, os aspectos histórico-social e individual não foram valorizados. Nesta tese temos a pretensão de valorizar essas dimensões, considerando-as imprescindíveis à construção do conceito de saúde. Acreditamos que a filosofia monista-naturalista de Espinosa nos garante subsídios imprescindíveis para se entender como é possível alcançar uma vida satisfatória. Ao postular sua teoria do conatus, Espinosa afirma que os afetos constituem elementos determinadores de uma vida saudável ou não. Por conatus entende-se o esforço de autopreservação do ser em existir. O homem é um conatus na medida em que busca manter-se na existência. A questão é que esse conatus pode sofrer variações, isto é, pode aumentar ou diminuir, dependendo de como o homem relaciona-se com outros seres que povoam o mundo. A intensidade da força do conatus diminui se a singularidade for afetada por outros, de modo que se torne dependente deles. Por outro lado, ela aumenta se a singularidade do indivíduo não perder sua autonomia ao ser afetada por outros. Como poderemos observar, Espinosa nos leva a repensar o papel dos afetos na construção das individualidades. Para que haja um indivíduo saudável, livre, isto é, com um conatus forte, os afetos que diminuem sua potência de ser e agir devem ser substituídos por afetos que aumentam essa força. Assim, a alegria (afeto que aumenta a força do conatus) deve substituir à tristeza (afeto que diminui a força do conatus). Esse constitui o caminho para a busca do equilíbrio.

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This study aims to understand the extent to which Spinoza's contributions are important to the concept of mental health. Historically, mental illness was outlined as shadows of symptoms experienced by individuals, so that madness became synonymous with error, ie, everything that constitutes misrepresentation of reality. From this perspective, the madman became an alienated alien to himself and the world, in short, a non-subject. Understood in this sense, mental illness takes on the character of biological imbalance, specifically speaking on the brain sphere. As a synonym for error, the patient should, isolated from the world, look for a "fit" with reality. In this universe of isolation madness makes the individual the subject of unreason, in other words, the subject, is no longer the protagonist of his own story. In this conception of institutionalization of madness, mental illness is molded from the concept of disorder or "misfit" that reveals it self in a bizarre symptoms. There is no concern for the individual, understood here in its entirety. With the advent of so-called "psychiatric reform," trumpeted by the ideas of Basaglia, Rotelli and stimulated primarily by a philosophy of emancipation of the subject proposed by Foucault begins to promote the deconstruction of a psychiatric facility founded on the notion of power-knowledge . The very establishment of mental illness suggests that a subjectivity different thinking is emerging, so it makes no sense to treat the symptoms aside from the subject as well as their existence and their suffering. For a long time we focused our attention on the concept of mental illnesses and consequently their symptoms. We build our theories and practices from a coordinated series of symptoms that characterize the establishment of a "misfit" in the mental sphere; diagnosed with it and traced a common plan of therapy. In this sense, historical and social aspects of the individual were not evaluated. We claim to value those dimensions and consider them essential to the construction of the concept of health. We believe that the monistic philosophy of Spinoza is indispensable for understanding how it is possible to achieve a fulfilling life. In postulating his theory of conatus, Espinosa says affects are key determiners of a healthy life or not. By conatus means the effort of self-preservation. Man is conatus in that seeks to keep in existence. The point is that conatus he may vary, i.e., may increase or decrease depending on how the men relates to other beings who populate the world. The intensity of the strength decreases if the singularity conatus is affected by others, so that it becomes dependent on them. Moreover, it increases if the individual does not lose its autonomy to be affected by others. As we shall see, Espinosa leads us to rethink the role of affect in the construction of individuality. To have a healthy, free, life requires avoiding affections that diminish the power of being and acting they should be replaced by affections that increase this strength. So joy (affection that increases the strength of conatus) should replace sadness (affection which decreases the strength of conatus). This is the way to search for balance.

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E Ética demonstrada segundo a ordem geométrica- Ethica ordine gemetrico demonstrata

TIE Tratado da Emenda do Intelecto – Tractatus de Intellectus Emendatione

TTP Tratado Teológico Político – Tratactus Theologico-politicus

TP Tratado Político – Tractatus Poiliticus

Sobre a Ética temos as seguintes siglas:

Ax. Axioma

cor. Corolário

def. Definição

dem. Demonstração

escol. Escólio

P Proposição

OMS Organização Mundial da Saúde

CAPS Centro Atenção Psicossocial

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INTRODUÇÃO... 13

CAPÍTULO I: A DEFINIÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA E SEU ESTATUTO... 21

1.1 A concepção de saúde e doença a partir dos filósofos naturalistas... 21

1.2 Platão e a saúde da alma... 34

1.3 A medicina da alma: contribuições de Descartes para um novo conceito de saúde e doença... 41 1.4 O mecanicismo cartesiano e suas implicações para a medicina do século XVII... 46 1.5 A Construção dos conceitos de saúde e doença a partir do paradigma cartesiano... 66 1.6 A reviravolta na Filosofia: Espinosa e a crítica à tradição metafisica e sua concepção de homem... 76 1.7 A teoria dos afetos em Espinosa... 87

CAPÍTULO II: A INVENÇÃO DA LOUCURA E A CRÍTICA DA MODERNIDADE... 101 2.1 O paradigma biologicista revisitado... 101

2.2 A produção da loucura na modernidade: contribuições da crítica de Foucault à racionalidade... 109 2.3 A racionalização da loucura: o nascimento da psiquiatria como ciência... 120

2.4 O dilema entre medicina mental e medicina orgânica... 132

CAPÍTULO III: DESCONSTRUINDO ANTIGOS PARADIGMAS: DA SERVIDÃO À LIBERDADE... 141 3.1 Os pressupostos histórico-filosóficos da crítica ao modelo manicomial... 141

3.2 A experiência da reforma democrática no Brasil: reconstruindo novos horizontes …... 148 3.3 A proposta espinosana de saúde mental... 152

3.4 A ontologia dos afetos... 162

3.5 Para uma ética da liberdade: a reabilitação psicossocial à luz do pensamento espinosano... 182 3.6 A produção da saúde mental a partir do ideal democrático de Espinosa... 187

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 207

REFERÊNCIAS... 217

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo mostrar quais as contribuições de Espinosa

para a compreensão de um novo conceito de saúde mental. Sabemos que a saúde constitui

uma das grandes preocupações do homem. Ao longo da história do pensamento, os

filósofos propuseram várias interpretações sobre o processo vital que permitiram pensar as

condições de possibilidade de permanência do homem na existência. Se a doença coloca em

xeque a vida, é preciso então encontrar um modo de poder superá-la para assim permanecer

o maior tempo possível vivo.

Contudo, a análise empreendida pelos filósofos não era unânime, pois cada um

partia de um pressuposto do que seria o homem para a partir daí teorizar acerca da saúde e

da doença. Se a saúde ou a doença eram fenômenos que recaiam sobre o homem, então se

fazia necessário compreender como este se constituía para assim traçar critérios que

permitissem diferenciar a saúde e doença.

Iremos apresentar no decorrer de nosso trabalho as múltiplas concepções acerca do

homem e de sua relação com os fenômenos da saúde da doença, para assim construirmos o

conceito de saúde mental a partir da filosofia monista-naturalista de Espinosa.

No capítulo primeiro, iremos apresentar as múltiplas concepções do homem, da

saúde e da doença no estatuto histórico-filosófico. Tendo como ponto de partida a

concepção dos filósofos naturalistas (pré-socráticos), veremos que a doença se apresentava

para o universo grego do século VI a.C como sendo um castigo divino, um desequilíbrio na

natureza e que exigia reparação. É a ideia de justiça (themis) como retorno ao equilíbrio perdido que irá delinear a imagem de mundo grega.

Essas concepções cosmológicas foram paulatinamente interiorizadas para o universo

do homem, de modo que foi possível no final do período naturalista substituir a noção de

doença como desequilíbrio no cosmos para uma teoria dos humores. A teoria dos humores

buscava compreender as variações internas e suas relações com o ambiente para assim

explicar que o homem era um complexo de relações e que tanto a saúde quanto a doença

dependiam de uma compreensão desses elementos.

O racionalismo médico hipocrático permitiu a dessacralização da doença e uma

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autoriza a dizer que houve um rompimento radical com a religião grega, pois ainda se

conservam, como veremos, em alguns casos, o conceito de “doença sagrada”.

Se por um lado, a teoria dos humores buscava relacionar o mundo com a natureza, a

teoria platônica já não mais o compreende como pertencente ao mundo sensível. Platão

inaugura a divisão da realidade em duas esferas irremediavelmente distintas, a saber, o

mundo sensível e o mundo das ideias, das formas puras. O que seria o homem nessa

dicotomia?

O homem em Platão era um misto de corpo e alma, sendo esta ultima prisioneira do

corpo. Assim, a vida do homem no mundo sensível não passava de ilusão e as doenças

corresponderiam às possíveis interferências do corpo sobre a alma. A alma deveria se

empenhar, por meio do exercício filosófico, em ascender ao mundo perfeito, pois só assim

poderia ser de fato saudável. A valorização da alma em detrimento do corpo revela quanto

o mundo ocidental se beneficiou desses conceitos para postular a ideia de vício e virtude,

corroborando assim a tese do racionalismo de que a vontade racional deveria conduzir a

alma humana e não as paixões.

Por uma questão metodológica iremos suprimir a abordagem dos conceitos de saúde

e doença no período medieval. O recorte que empreendemos visa apenas elucidar as

transformações que ocorreram na abordagem acerca do homem no período antigo e

moderno. Reconhecemos a imensa importância da medicina medieval para a compreensão

dos conceitos de saúde e doença. Galeno nos forneceu subsídios riquíssimos para se pensar

o corpo e a mente e que de algum modo influenciaram a mecânica moderna do século XVI

e XVII. A teoria do sangue como veículo de transporte do “pneuma” ou “espírito da vida”

influenciou a medicina cartesiana dos espíritos animais e sua interação na glândula pineal.

O racionalismo do século XVII nasce a partir da necessidade de se compreender a

importância da razão na produção de um conhecimento certo e indubitável. Esse

conhecimento visava estabelecer leis objetivas que dessem conta de explicar os fenômenos

físicos não mais à luz da tradição aristotélico-tomista, mas procurava instituir um modelo

quantitativo que contribuísse com o desenvolvimento dos novos paradigmas que emergiam.

Nesse sentido iremos mostrar que a medicina foi uma das áreas do conhecimento que mais

(15)

O homem, entendido na concepção cartesiana, se constitui de duas realidades

ontologicamente distintas, a saber, corpo e alma, Contudo, essas realidades se relacionam

causalmente por meio da glândula pineal. Sendo assim, para Descartes, o homem não é

apenas uma máquina, mas também uma mente pensante.

A perspectiva interacionista, apesar de problemática, não reconhece apenas o

aspecto mecânico do corpo como condição necessária e suficiente para explicar o

surgimento das doenças. A influencia causal entre mente e corpo nos levará a compreender

os conceitos de saúde e doença como sendo dependentes das sensações agradáveis ou

desagradáveis sentidas pela alma que, por sua vez produz alterações na estrutura corporal.

A novidade trazida por essa concepção permitiu a Descartes postular, apesar de

modo insuficiente, uma teoria dos estados patológicos como também uma terapêutica

voltada aos cuidados da alma. Apesar de sua proposta interacionista entre mente e corpo,

Descartes não pode deixar de afirmar que as doenças possuem relação com a maquinaria

corporal e se constituem assim como desajustes no corpo-máquina, o que exigiria, portanto,

uma intervenção externa, no intuito de restabelecer a ordem e a normalidade perdidas pela

doença.

A “terapêutica” cartesiana, como veremos, não foi suficientemente bem

desenvolvida pelo filósofo. O uso de medicamentos químicos não fora recomendado por

Descartes a seus interlocutores mais próximos como a rainha Elizabeth, mas sim métodos

naturais como banhos, passeios ao ar livre, vomitórios. A busca pela saúde seguia a lógica

da busca do equilíbrio no interior da própria alma.

A filosofia de Espinosa parte do pressuposto de que a concepção cartesiana acerca

do homem e do processo saúde / doença não foi suficientemente bem desenvolvida,

justamente por conta do dualismo substancial empreendido pelo filósofo francês. A

proposta de Espinosa se centra em torno de uma compreensão de homem entendida como

um modo necessário dos atributos da única substância possível, Deus.

Para Espinosa o homem não é uma unidade substancial, mas uma modificação finita

dos atributos infinitos de Deus. Isso implica dizer que corpo e mente não são realidades

distintas, mas desdobramentos de uma única substância que é Deus. Sendo assim, Espinosa

(16)

O conceito de saúde e doença empreendido pela filosofia espinosana é complexo e

sistemático. Por essa razão, na secção 2.7 nos propomos apresentar de modo

pormenorizado a antropologia espinosana e sua teoria dos afetos. Sem a compreensão do

que seja o homem e a dinâmica dos afetos não é possível redefinirmos o conceito de saúde,

uma vez que este passa necessariamente pela teoria do conatus que se encontra circunscrita no interior da teoria dos afetos.

A crítica de Espinosa à tradição não se limita apenas a considerar os aspectos

epistemológicos, mas culmina numa teoria política da liberdade e na condenação da tirania.

A teoria dos afetos encontra uma aplicabilidade prática na medida em que concebe o

homem em contínua interação com outras singularidades individuais, que por natureza

também lutam por manter suas vidas na existência.

A novidade trazida por Espinosa reside justamente na possibilidade de coexistir no

interior do estado de direito civil o direito de natureza.Veremos que isto só é possível no

Estado Democrático, pois somente nele os homens podem ter ma vida verdadeiramente

humana. Ora, se somente na Cidade, como nos afirmará Espinosa, é possível realização

plena da vida humana, todas as formas de confinamento e exclusão se constituirão um

desafio a ser superado.

No capítulo segundo trataremos então de compreender quais foram as condições que

permitiram o surgimento dos locais de confinamento no mundo moderno. Não poderíamos

deixar de tratar desse assunto, pois sem a superação da tirania não há democracia, não há

uma vida genuinamente humana.

Na secção 3.1 apresentaremos a crítica de Canguilhem ao modelo biologicista

clássico e sua proposta de superação. Para o filósofo francês, o conceito de saúde e doença

é relativo. O normal pode vir a ser patológico, dependendo das situações e da flexibilidade

do indivíduo em seu meio. Isso nos leva a pensar que esses conceitos não podem ser visto

somente do ponto de vista quantitativo, o que não implica numa negação absoluta dos

parâmetros que garantem a homeostasia do organismo, mas se faz necessário pensar o

construto da percepção das vivências de cada indivíduo no processo de adoecer.

Na secção 3.2 trataremos de apresentar as contribuições de Foucault sobre o

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séculos XVII e XVIII passará por uma mudança conceitual significativa e que justificará a

existência dessas instituições de confinamento.

A impossibilidade de se compreender a loucura no âmbito da medicina

classificatória do século XVII traz consigo a dicotomia entre o louco e a loucura. A ciência

médica não nega a existência da loucura; nesse sentido ela é cognoscível, está ainda no

âmbito da razão, apesar de todas as dificuldades de classificação. Por outro lado, o louco é

aquele em que os critérios da razão não podem ser impostos, o que equivale a dizer que sua

existência é incognoscível.

Na secção 3.3 iremos abordar a instauração da psiquiatria como ciência e a

racionalização da loucura segundo a leitura de Foucault. Esse ponto é muito importante,

pois irá corroborar a sedimentação de uma ideologia da psiquiatrização e da necessidade da

institucionalização como locais privilegiados de cura.

A psiquiatria nascente do século XIX acreditava ser possível definir as causas da

loucura. Segundo Foucault, as contribuições de Pinel foram significativas, na medida em

que ele propôs como causas explicativas da insanidade, o desregramento moral, e as

disfunções orgânicas.

A medicina de Pinel e Tuke inaugurarão um novo enfoque em torno dos conceitos

de loucura e do louco que, como veremos, passarão a ter um tratamento positivo, isto é,

passam a ser objetos do discurso cientifico. Para a psiquiatria nascente do século XIX, a

loucura passa a ser compreendida como “doença mental” e como tal recebe a intervenção

“adequada” daqueles que tem o compromisso social de produzir a saúde: os médicos.

Na secção 3.4 iremos abordar o dilema entre medicina orgânica e medicina mental.

Segundo Foucault, assim como a medicina orgânica procurou no discurso cientifico

estabelecer uma nosografia capaz de explicar as causas e a evolução das patologias, do

mesmo modo tentou a medicina mental. A fim de compreender as causas que geravam as

alienações, a medicina mental buscou num conjunto de sintomatologia estabelecer um

quadro classificatório das doenças.

Veremos que a proposta de uma divisão das doenças mentais em dois grandes

grupos evidenciou a noção de totalidade psicológica, o que implicou numa direção do

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fisiológicas ou psicológicas, dizem respeito ao mesmo indivíduo, o que favorece a postura

de uma unidade psicológica e fisiológica.

No terceiro capítulo iremos abordar os pressupostos teórico-filosóficos da Reforma

psiquiátrica e seu itinerário em busca de novas formas de pensar a loucura.

Na secção 4.1 trataremos de apresentar a agenda crítica da reforma, tendo como fio

condutor à necessidade de se repensar os conceitos de saúde e doença mental, pois até então

o hospital empreendeu seus esforços em se focar em torno da doença e não da saúde.

Veremos que do ponto de vista prático, essa agenda crítica teve três momentos

fundamentais: O primeiro momento dizia respeito a crítica que deveria ser feita no interior

das instituições asilares e que deveriam ser transformadas à luz de um modelo terapêutico

que não confinasse. Daí surgiram os modelos das Comunidades Terapêuticas e a

Psicoterapia Institucional. (Amarante, 2005).

Na seção 4.2 iremos analisar o desenrolar da reforma psiquiátrica no Brasil e sua

importância para o cenário político do momento em que o país passava. A reforma

psiquiátrica que está emergindo não poderia deixar de lado a situação política do Brasil

nessa época, pois os agentes públicos utilizam muitas vezes do dispositivo hospitalar como

local de tortura e prisão daqueles que se colocavam contra o regime. (Amarante , 1995).

Assim, a reforma psiquiátrica no Brasil assumirá características peculiares,

sobretudo contribuindo para acelerar o processo político de redemocratização por meio das

denúncias de tortura que ocorriam no interior dos hospitais. É a partir da organização dos

agentes de saúde que o modelo hospitalocêntrico começará a ser questionado. O caminho

que vai da negação do hospício à implantação de serviços alternativos à hospitalização será

árduo e exigirá dos agentes de saúde muita perspicácia.

Na secção 4.3 traremos a proposta espinosana de saúde mental. Pretendemos nesta

secção retomar a teoria dos afetos de Espinosa encontrando elementos que coadunam com

o ideal de uma psiquiatria democrática.

Rompendo com a tradição clássica que postulou ser a paixão uma doença na alma, e

a saúde a submissão dos desejos e da paixão à reta razão, Espinosa nos conduzirá a pensar

que o próprio conceito de loucura, entendido no século XVIII como desrazão, alienação,

algo bizarro à razão, só pode ser assim legitimado graças ao eterno embate promovido pela

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secção é considerar que somente uma mudança conceitual poderá nos fornecer subsídios

capazes de pensar o rompimento e a negação das instituições totais.

Repensar o conceito de saúde e de doença a partir da Ética espinosana implica em

primeiro lugar desconstruir o edifício das práticas e saberes na qual a tradição biomédica

tem se apoiado, a saber, no dualismo substancial entre mente e corpo e na supremacia da

primeira sobre a segunda.

Na secção 4.4 iremos tratar da ontologia dos afetos em Espinosa. A razão é vista

como um dos afetos mais fortes. Diferentemente do que pensava a tradição, Espinosa

afirma que somente quando os homens deixarem se guiar pela razão é que de fato eles serão

felizes. Essa razão não pretende ser normativa como pensava Descartes em sua Moral Provisória nem tampouco prescinde dos afetos. A fim de se passar da paixão à ação, os homens devem substituir seus afetos por outros contrários e mais fortes. É assim que se dá

a produção das ideias claras e distintas permitem, na medida em que os homens não se

entreguem às afecções nascidas da imaginação, sendo, portanto, causa interna total de seus

atos.

A secção 4.5 irá nos propor uma análise da Ética da liberdade de Espinosa. Pensar o

homem como ser livre é antes de tudo considerar a importância da intercorporeidade para a

produção de um conatus forte e autônomo. Desse modo, as questões fundamentais que tentaremos responder dizem respeito à relação da essência do homem como desejo (afetos)

e sua relação com outras essências singulares. Quais seriam os afetos envolvidos na

produção dos conceitos de saúde e doença mental? Não seria o conceito de doença mental

moldado à luz de afetos tristes culminando na segregação e destituição de direitos de tantos

indivíduos considerados pelo modelo biomédico como loucos? O que é possível fazer para

superar afetos que diminuem nossa potência de ser e agir?

Na secção 4.6 apresentaremos o cume para o qual converge toda a obra de Espinosa,

a saber, o seu ideal político de democracia. Tentaremos mostrar que a proposta democrática

de Espinosa encontra ressonância no modelo de Reabilitação Psicossocial empreendido

pela Reforma. O cerne é a valorização do espaço da vida como elemento primordial para o

restabelecimento do conatus enfraquecido pela lógica da exclusão e confinamento.

Espinosa afirmará que somente no Estado Democrático é possível pensar a

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imperium, pois somente nela o poder da multidão e dos cidadãos coincide. É o “mais natural dos regimes”, segundo Espinosa. Somente ela permite com que se realize o desejo

de cada um, desde que este seja útil à coletividade.

A novidade no campo político trazida por Espinosa diz respeito ao próprio conceito

de democracia. Esta não é mais vista como representatividade da vontade geral que decide

em prol da coletividade. A democracia é, no entender de Espinosa, o espaço em que é

possível a concordância entre a vontade da potência individual e a potência da coletividade

civil.

Nesse sentido, não há espaço para o medo, pois na medida em que a potência

individual busca aumentar sua força de ser e agir (conatus), tanto mais aumentará a da

coletividade civil e vice-versa. Como poderemos observar, a organização de espaços de

trocas e de bons encontros encontrará no pensamento espinosano um terreno fértil onde

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CAPÍTULO I: A DEFINIÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA E SEU ESTATUTO

HISTÓRICO-FILOSÓFICO

1.1 A concepção de saúde e doença a partir dos filósofos naturalistas

Durante os séculos VI a.C., os primeiros filósofos, assim denominados de

pré-socráticos ou de físicos, acreditaram que seria possível encontrar o arché, isto é, um princípio originário que fosse capaz de explicar o surgimento mundo. Desse modo, Tales,

Anaximandro e Anaxímenes buscaram nos elementos materiais, respectivamente, a água, o

ilimitado (apeíron) e o ar o fundamento do mundo.

De modo geral, podemos dizer que para a cosmologia jônica havia uma ordem

natural no cosmos que seria responsável por manter em equilíbrio os processos naturais,

comparada a uma justiça positiva.

É de Anaximandro que herdamos a ideia de que há na natureza uma lei que governa

o cosmos. Em suas palavras: “onde estiver a origem do que é, aí também deve estar o seu

fim, segundo o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar, umas às outras, castigo e

pena, conforme a sentença do tempo” (Jaeger, 2003, p.200). Assim, o conceito de

“compensação”, tão caro ao direito positivo, se aplica, na visão do filósofo, à natureza

inteira.

No que concerne à física de Anaximandro, o universo é esférico, e o conceito de

espaço pode ser entendido como sendo relações de distância e posição. Na visão de Vernant

(1990), o interior da Terra seria cheio de raízes que garantiriam à mesma se manter estável,

sem cair. Já em Hesíodo e Homero, a imagem que se tinha da Terra era que está estava

rodeada por um rio circular, denominado de Oceano, sobre o qual encontra-se uma bandeja

de bronze e pode-se elevar o céu. A física de Anaximandro, baseada no conceito de

distância e posição, afirma que a estabilidade da Terra só é possível graças aos seus pontos

estarem eqüidistantes dos pontos existentes na circunferência, isto é, a Terra está em

perfeito equilíbrio.

A posição de Anaximandro é inédita para o pensamento dos físicos do século VI

a.C., uma vez que seus predecessores, entre eles Tales e Anaxímenes haviam postulado a

(22)

que ocupa no cosmo, o centro, que garante a estabilidade à terra, já que todas as forças vão

gravitar em torno do mesmo ponto central. (Soares, 2008, p.20).

Mas como foi possível uma mudança tão significativa na concepção do cosmos?

Quais foram os fatores que levaram os primeiros filósofos a divergirem tanto assim quanto

ao arché do cosmo?

Podemos compreender, nos sugere Vernant (1990), que toda essa mudança só foi

possível graças ao surgimento da pólis com sua característica política bem definida,

sobretudo, de modo particular, a ágora.

A ágora não era apenas um espaço físico circular onde as pessoas se encontravam

para discutir questões relativas à pólis, mas era sobretudo, o lugar do encontro entre os

iguais, era ela que propiciava aos cidadãos da pólis o sentimento de que todos pertenciam

ao mesmo lugar e estavam sob a mesma lei. Nas palavras de Vernant (1990, p.253):

Esse ajuntamento militar tornar-se-á, depois de uma série de transformações econômicas e sociais, a ágora da cidade em que todos os cidadãos (de inicio uma minoria de aristocratas, depois o conjunto do demos) poderão debater e decidir em comum os negócios que lhes concernem coletivamente. Trata-se, pois, de um espaço feito para a discussão, de um espaço publico, opondo-se às casas privadas, de um espaço político em que se discute e se argumenta livremente.

O pano de fundo entre o paradigma esférico da Terra de Anaximandro e a nova

organização política grega é o conceito de equilíbrio e ausência de forças, que

gradativamente vai adentrando em outras dimensões da vida grega, de modo especial na

medicina. Mas como que se deu a passagem de um conceito físico-político para a

medicina? Quais as implicações que esse conceito proporcionou ao conceito de

saúde-doença?

Jaeger (2003) nos chama atenção para o fato de que o conceito de equilíbrio

encontra-se intimamente vinculado ao de direito. O direito entendido aqui pelos gregos

como sendo justiça (themis), já despontado em Homero, porém em Hesíodo ele assume proeminência, no sentido de lei (diké), de algo que imputa a alguém uma pena, o direito de dar a cada um aquilo que lhe é devido.

É somente a lei e a lei escrita que podem garantir os cidadãos da pólis a igualdade. É

(23)

desordem (hybris). Graças a Lei que os cidadãos podem se sentir seguros, ricos e pobres, cabendo, portanto, ao Legislador exercer o papel de “educador do seu povo” (Jaeger, 2003,

p.143).

Assim, do mesmo modo que a transgressão da lei acarretava um desequilíbrio na

pólis, a doença aparece como sendo um desequilíbrio, podendo, inclusive, denotar um

castigo. “a doença má ergueu sobre a armada, e morria o povo” ( Ilíada 1, 10).

A doença como sinônimo de desequilíbrio e, conseqüentemente, de castigo divino,

exige reparação. É aqui que podemos notar que há uma relação entre o conceito de

equilíbrio e desequilíbrio na esfera política com o equilíbrio e desequilíbrio na esfera do

corpo, representados pelos conceitos de saúde/doença. Mas como se dá a reparação para

ambos universos?

Para Jaeger (2003), só se alcança o equilíbrio quando se encontra a justa medida.

Isso se aplica a todas as esferas. No campo político, a justa medida se dá quando os

interesses pessoais não sobressaem aos interesses coletivos da pólis, e no campo da

medicina quando se procura compreender os mecanismos que foram responsáveis pelo

estabelecimento do desequilíbrio no organismo, mecanismos esses que não se reduzem a

esfera do próprio corpo, mas encontram-se também na relação do indivíduo com a natureza

que o cerca.

Vemos que há uma multiplicidade de concepções entre os primeiros filósofos acerca

dos mecanismos que geram desequilíbrio no organismo como também há uma série

multifacetada de caminhos para se atingir novamente o equilíbrio.

A doutrina ocidental do binômio saúde-doença tem em Alcmeão seu inegável

precursor. Membro do círculo pitagórico, Alcmeão não reconhece, porém, que o real se

constitui apenas por dez pares de opostos, mas por múltiplas potências opostas (dýnamis), que misturadas de forma adequada pelo interior do organismo são capazes de produzir

saúde. Segundo Frias (2004):

(24)

fadiga, ou do constrangimento, ou de causas similares. A saúde, por outro lado, é a mistura proporcionada das qualidades. 1

Como podemos observar, a medicina, a partir de Alcmeão não se restringe apenas a

indagar o que ocorre com o organismo em si mesmo, mas a relação que este mantém com o

meio em que vive. É isso que Alcemão entende por phýsis.

Um outro aspecto a ser notado é como a medicina de Alcmeão tomou para si um

vocabulário político e fez deste um conceito fundamental, a saber, o de equilíbrio. Ao

afirmar que “a monarquia de qualquer um é destrutiva”, se faz necessário pensar em uma

“justa medida”, em um “equilíbrio”, em um vocabulário jurídico, em uma justiça, que é

representado pela ideia de saúde, em algo que não passe dos limites (medén ágan ;nada em excesso).

Em sua obra intitulada Demócrito: Demócrito e política atomista, o filósofo Cartledge (2001) enumera algumas obras atribuídas a Demócrito acerca da medicina, entre

elas estão Prognóstico, Sobre a dieta/ Dietética, Juízo médico e Sobre a febre e a doença. Em linhas gerais, podemos dizer que o fio condutor dessas obras se baseia na ideia

de que para se alcançar o equilíbrio se faz necessário uma harmonia entre os humores, tanto

em proporção, propriedade e quantidade. Ora, a doença nada mais é, na concepção de

Demócrito, que um desequilíbrio (diskrasia) entre esses humores, o que exige uma reparação. Isso só acontece quando não há o domínio de um humor sobre o outro.

Da mesma forma acontece com a justiça: esta só é feita quando não há o domínio de

nenhuma força escravizando a outra, mas sim é dado a cada lado aquilo que lhe é de direito.

Nesse sentido, cabe ao médico encontrar a justa medida entre os humores, impedindo assim

a injustiça, o desequilíbrio, identificando quais humores estariam se sobressaindo e

colocando-os cada um em seu devido lugar.

Até o presente momento podemos perceber que há entre os primeiros filósofos um

consenso no que se refere aos conceitos de equilíbrio, justiça e sua relação com os

processos de saúde / doença. As escolas médicas, não obstante terem como ponto de partida

a phýsis, já não mais comungam do mesmo ideário que subsidiava a compreensão dos conceitos de saúde e a doença.

1

A presente citação é extraída por FRIAS (2004, p.24) de ÉCIO , IV, 17, 3 apud LLOYD, G.. E.R.

(25)

Havia na Grécia antiga, várias escolas médicas, contudo, as mais antigas e de maior

influência foram a escola pitagórica ou itálica, situada na Magna Grécia e a escola de

Cnido.

Soares (2008) nos afirma que a escola Pitagórica pode ser dividia em duas fases: (1)

Alcmeão com sua doutrina da harmonia; (2) Empédocles com sua doutrina do princípio

único e eterno.

No que concerne à primeira fase que tem como protagonista Alcmeão, já falamos

anteriormente, contudo vale destacar um ponto importante. Alcmeão, apesar de pertencer

ao pitagorismo, não considera que a natureza pode ser compreendida apenas pelos pares de

opostos em número de dez. Sua pesquisa vai além. Alcmeão foi o primeiro filósofo da

natureza a considerar o cérebro como órgão principal do organismo, dando a ele a função

de ser o grande interprete das sensações apreendidas pelos órgãos dos sentidos. Para Frias

(2005) foi Alcmeão que descreveu a existência de canais que se comunicavam com os

órgãos dos sentidos ao cérebro. É célebre a passagem em que Platão, utilizando Sócrates,

descreve a existência desse órgão chamado cérebro. Apesar de Platão não mencionar o

autor, os helenistas Jones e Lloyd atestam que Platão estava se referindo a Alcmeão nessa

passagem:

[...] muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá sensações de ouvir, ver cheirar, das quais resultariam por sua vez a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. (PLATÃO apud FRIAS, 2005, p.25).

Empédocles figura como o mais importante representante da escola Pitagórica. Na

visão de Empédocles, havia um princípio único e eterno que se dividia em quatro

elementos, ou quatro raízes, sendo que cada uma delas relacionava-se a um deus. Zeus o

fogo; Hera o ar; Adónis a terra; e Néstis a água. Mas não eram apenas esses elementos, Empédocles também postulava haver dois outros princípios cosmogônicos, a saber, o Amor

e o Ódio. Era o Amor que promovia a atração entre os outros elementos e o Ódio, a

(26)

O poema de Empédocles, no fragmento 17, 1-13, intitulado Da Natureza, conservado e transmitido a nós por Simplício assim nos revela:

[...] uma dupla história te vou contar: uma vez, elas [as raízes] cresceram para serem uma só a partir de muitas, de outra vez, separaram-se, de uma que eram, para serem muitas. Dupla é a formação das coisas mortais e duplas a sua destruição; pois uma é gerada e destruída pela junção de todas as coisas, a outra é criada e desaparece, quando uma vez mais as coisas se separam. (SIMPLÍCIO apud FRIAS, 2005, p.27).

A concepção de quatro elementos sempre em constante mutação ao sabor do Amor

e do Ódio formulada por Empédocles não foi aceita pela pelo Corpus Hippocraticum. A crítica dos hipocráticos incidia justamente sobre a natureza da phýsis, que para eles não poderia ser universal. Sendo assim, seria um erro basear a medicina em uma filosofia

natural dos quatros elementos e da bipolaridade das forças.

Para Soares (2008), a escola de Cnidos concebia a doença como um inimigo que

precisava ser atacado a todo custo. Nesse sentido, a doença era entendida como algo fora do

indivíduo, sendo, portanto, passível de ser classificada, o que levou aos adeptos dessa

escola a elaborarem uma lista infindável de doenças. O que permitiu aos pesquisadores,

entre eles Lichtenthaeler afirmar que “Cós e Cnidos são escolas rivais”. Para o autor, a

escola de Cnidos focou-se mais no diagnóstico, enquanto que a escola de Cós deixou guiar

para o prognóstico. (FRIAS 2005).

A escola de Cós teve como seu fundador Hipócrates. O modelo que vigorava em

Cós procurava compreender a doença a partir do contexto em que o indivíduo vivia. Esse

modelo era mais holístico, no sentido de que o ambiente natural bem como os fatores

individuais eram relevantes na compreensão da doença.

O conceito de phýsis, entendida como análoga à justiça e ao equilíbrio, se torna para os hipocráticos o princípio basilar no qual o saber médico deveria ser estruturado.

Contrariamente aos da escola de Cnidos, não há apenas um princípio universal e eterno,

mas sim múltiplos em seus humores.

Em sua obra intitulada Da natureza do homem, atribuída a Polibo, discípulo de Hipócrates, o filósofo critica a hipótese de que há no homem uma unidade, pois se assim

fosse, o mesmo não seria nunca afetado por nenhuma doença. Ora, o que permite a

(27)

Segundo essa teoria, a natureza humana seria constituída por quatro tipos de

humores: sangue, flegma, bile amarela e bile negra. Ser saudável ou não depende da

proporção equilibrada ou não desses humores. Esse equilíbrio se configura tanto qualitativa

como quantitativamente. A doença, nessa perspectiva, seria o isolamento de um desses

humores, em pequena ou em grande quantidade em determinado lugar do corpo. (FRIAS

2005).

Contudo, vale ressaltar que a teoria humoral não surge exclusivamente com

Hipócrates. Alcmeão de Crotona e Empédocles já haviam aventado ser a natureza humana

um contínuo fluxo de humores. Alcmeão, por exemplo, afirmara que ser saudável era o

mesmo que estar em perfeita harmonia com as potências que compõem o corpo, a saber,

quente/frio; seco/úmido; doce/amargo; etc. A doença só se estabelecia quando uma dessas

potências se sobressai em relação à outra, isto é, quando se instaurava uma situação de

“monarquia” entre uma potência e outra.

Não obstante a uma possível aproximação teórica entre as escolas de Cnidos e Cós,

não podemos compreender que a teoria dos humores de Hipócrates seja apenas um avanço

em relação à teoria das potências de Empédocles; pelo contrário, há um corte

epistemológico em relação a todas as teorias médicas defendidas anteriormente. (Frias,

2005) .

O que vai diferenciar Hipócrates de Empédocles e dos demais filósofos da natureza

é justamente o método por ele empregado. Enquanto que os médicos de Cnidos deduziam

suas teorias acerca da natureza do homem das suas teorias filosóficas acerca do cosmos,

Hipócrates compreende que as doenças não possuem sua causa direta nos elementos da

natureza, mas se constituem no interior do próprio organismo vivo. Em outras palavras,

Hipócrates realiza um movimento de interiorização dos humores, pois não são os agentes

naturais (frio, calor, seco, úmido) os elementos etiológicos proeminentes ou exclusivos na

produção da doença, mas sim um desequilíbrio interno do organismo.

Pólibo, discípulo de Hipócrates e possível autor do tratado Da natureza do homem, afirma que as doenças originam-se tanto do regime alimentar quanto da influência das

estações da natureza. Sendo assim, o tratamento medicamentoso teria por finalidade

(28)

para o organismo ou só para as estações do ano, mas para um conjunto multifacetado de

fatores, a fim de se alcançar a cura necessária.

Quem quiser aprender bem a arte de medico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os efeitos dos diversos gêneros de águas. Estas distingue-se não só pela densidade e pelo sabor, mas inda por suas virtudes. Quando um médico (que é considerado, como era habitual naquela época, médico ambulante) chegar a uma cidade desconhecida para ele , deve determina, ante de mais nada, a posição que ela ocupa em relação as várias correntes de ar ao curso do sol...assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... se conhecer o que diz respeito às mudanças das estações e do clima e o nascimento e o ocaso dos astros...Conhecerá antecipadamente qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isso demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança no clima. (POLIBO, apud JAEGER, 2003, p.1007).2

Nessa concepção, as doenças não são consideradas isoladamente, mas no homem,

juntamente com toda a natureza que o cerca. O que há é uma relação de interdependência

entre o homem e o cosmos em que vive.

Pólibo também recomenda uma dieta saudável que acompanhe as estações do ano,

bem como a idade. Mas não apenas isso. São necessários exercícios físicos, banhos,

vomitórios para liberar o flegma, principalmente no inverno e laxativos para eliminar a bile

negra. (Frias, 2005). Segundo Hipócrates: “um único ser no nosso universo não poderia

substituir um só instante sem todos os outros. E a ausência de um acarretaria o

desaparecimento dos demais, pois é em virtude de uma só e mesma lei que eles se acham

todos reunidos e que eles nutrem mutuamente”.3

Hipócrates configura a natureza do homem com a integrada à natureza inteira,

submetida às leis do cosmos. Nessa perspectiva, os humores também estão intimamente

vinculados às variações naturais, podendo sofrer alterações de aumento ou diminuição. Por

exemplo, o flegma predomina mais no inverno, embora mantenha sua vitalidade na

2 Escrito de Pólibo, discípulo de Hipócrates. Tratado Dos ventos, Águas e Regiões, citado por Jaeger, 2003,

p.1007.

(29)

primavera. O sangue aumenta na primavera, mas se mantém no verão. A bile amarela se

potencializa durante o verão, enquanto a bile negra no outono, atinge sua máxima força.

(Frias, 2005).

No tratado Da Medicina Antiga, escrito por volta do final do século V a. C., Hipócrates, ao tratar do binômio saúde-doença, se mantém arraigado a um modelo vitalista,

segundo a qual a saúde se configura como sendo um equilíbrio dos humores bem como de

uma boa distribuição das qualidades e virtudes pelos mais diversos espaços do organismo.

Na interpretação de Frias (2005), a concepção vitalista afirma que as qualidades

(amargo, doce, ácido, insosso) presentes nos alimentos, também constituem virtudes que se

manifestam nos humores. Nesse sentido, consideramos a doença, como desequilíbrio dos

humores. A terapia teria que, por meio de dietas, impedir o domínio de uma virtude sobre a

outra.

Contudo, o tratado Da Medicina antiga vai muito além de postular a doutrina dos humores como virtudes ou qualidades. No final da tratado, Hipócrates ressalta a

importância de se pensar as estruturas internas do corpo. A denominada “patologia dos

esquemas” 4 é um complemento teórico às explanações acerca da teoria dos humores.A

doutrina dos esquemas tem por objetivo dar um subsídio mais naturalista acerca da

evolução da doença e de como esta se relaciona com a teoria humoral. Ter saúde nada mais

é do manter em equilíbrio os humores. Mas essa tese está, dentro da doutrina dos

esquemas, vinculada a uma outra, a saber, a doutrina da cocção. Segundo essa doutrina, certos humores, à medida que a doença caminha para seu fim, se alteram qualitativamente,

tornando-se espessos e alterando sua cor. As alterações se vão de tênues, líquidos e acres a

amarelos e viscosos. Mas qual a importância de se analisar as alterações físicas dos

humores? O que está em questão aqui é o que produz a doença. Ela é externa ou interna?

A teoria da cocção nos permite compreender que o processo que leva a adoecer é

causado por um humor ruim que se encontra em seu estado de crueza. Para que ele possa

ser eliminado é preciso que ele seja transformado, nesse caso pela cocção, em uma matéria

menos perigosa (FRIAS, 2005). Mas como isso é possível? Os humores ruins devem ser

expulsos do corpo por meios fisiológicos, como pelo suor, urina, vômitos e evacuações e

por meio também da expectoração. A eliminação desses humores denominou-se na

(30)

Medicina Antiga como crise. As crises dependem do estado geral do doente, da estação do ano em que ele está. Isso resultou para os filósofos-médicos do século V a.C. o

estabelecimento da noção de prognóstico, uma vez que era possível prever quando é que a

doença se tornaria mais intensa e, conseqüentemente traçar um plano terapêutico que

respeitasse a individualidade de cada doente em determinado tempo.

Mas tudo isso não seria possível se a Medicina antiga não desenvolvesse um

método, uma arte médica capaz de garantir a eficácia no tratamento. Para isso foi preciso

que a medicina hipocrática, do século V a.C., atingisse o seu auge no que se refere ao

modelo clínico de abordagem da doença e as possíveis soluções.

O grande avanço da medicina hipocrática pode se perceber no seu apurado método

de observação clínica. Nos livros das Epidemias, Hipócrates descreve de modo pormenorizado a importância que se deve dar aos sentidos, sobretudo, ao olhar, pois são

eles que nos garantem registrar por escrito os sinais e sintomas. A medicina ocidental até

hoje considera esse método como imprescindível no que se refere à evolução da doença e

seu tratamento.

Mas não apenas as observações clínicas por meio dos sentidos são importantes.

Hipócrates nos chama a atenção para o fato de que existem doenças internas que exigem do

médico uma destreza maior em seu diagnóstico. Mas como é possível atingir o invisível?

Sabemos que somente no século XVIII, com o aperfeiçoamento da anatomia patológica e

da microscopia é que foi possível confrontar as hipóteses clínicas com os achados no

interior dos órgãos pelas técnicas de necropsia.

Contudo, os médicos hipocráticos acreditavam que a analisar o timbre da voz, a

freqüência respiratória, o aspecto dos excrementos seriam meios importantes de se obter

informações significativas de como o corpo estava funcionando lá dentro. Contudo, quando

a natureza se recusava, por esse caminho, fornecer informações, havia a possibilidade de

forçá-la a fazê-lo. “a arte encontrou meios de coação pelos quais a natureza violentada sem

prejuízo (...) revela àqueles que conhecem as coisas da arte o que é preciso fazer.”

(Hipócrates, apud Frias, 2005, p. 62).

Assim, era muito comum técnicas de extração do pus por meio de bebidas ou

alimentos, “suadores” que eram feitos ou por ervas ou até mesmo por corridas e

(31)

mecanismos. Somente ao médico era dado o direito de escolher qual o melhor método para

que a doença se revelasse, de modo a contribuir para que o diagnóstico se confirmasse.

A preocupação dos médicos hipocráticos era com a phýsis do corpo, ao passo que os filósofos da natureza a concebiam como sendo universal. Essas contradições não se

revelam apenas no que tange a phýsis, mas também ao conceito do divino, uma vez que esse estava intimamente vinculado às práticas médicas da Grécia Antiga. Vejamos quais

são os pontos de divergências entre os filósofos da natureza quanto ao sagrado.

Em sua obra datada do século V a.C., intitulada Da doença sagrada, Hipócrates se refere de modo especial à epilepsia. Os gregos antigos designavam epilepsia como um conjunto de surtos convulsivos, cuja etiologia era atribuída a fatores causais naturais (frio,

o sol, os ventos). Ora, tais fatores na verdade eram ainda considerados divinos, de modo

que é se possível postular ser essa doença divina. O que podemos notar aqui é um

movimento de laicização da medicina, que outrora tratava o doente com encantamentos e

purificações.

O autor do tratado Da doença sagrada questiona àqueles que consideram a doença, nesse caso a epilepsia, como derivada dos deuses. Se os deuses são puros, na verdade não

desejariam o mal, logo não podem ser responsáveis pelas doenças que acometem os

homens.

Na concepção de Pigeaud (1987 apud Frias, 2005), o autor hipocrático procura

racionalizar a doença e com isso isenta Deus de ser o autor do mal. Não que o autor do

tratado estivesse dessacralizando a doença ou desconsiderando a divindade, mas sim que

não é conveniente sustentar a tese de que as doenças são enviadas aos homens pelos deuses

como castigo por suas transgressões morais.

Não se trata aqui de negar a divindade bem como sua existência, mesmo porque a

crença de que os deuses estão presentes na medicina era algo ainda muito respeitado pelos

hipocráticos. Basta ler o tratado A Dieta que logo teremos uma noção exata que como os médicos receitavam, além da dieta, preces para seus doentes. Ou mesmo o juramento de

Hipócrates ainda dá amplo espaço à crença nas divindades: “Juro por Apolo médico, por

Asclépio, por Higéia, por Panacéia e por todos as deusas”.5

5 Juramento de Hipócrates. Cairus (1999) considera que se dirigia aos deuses para jurar e não para procurar

(32)

Da mesma forma postula Jouanna (1989 apud Frias, 2005), quanto ao racionalismo

nascente na medicina grega que não se pode falar em um “ateísmo”, pois esse conceito era

incompatível com a cultura grega que era essencialmente religiosa, apesar da medicina dos

Asclepíades não ter nascido nos templos isso não nos permite considerá-la descrente.

Como dissemos anteriormente, o racionalismo médico dos hipocráticos tem como

ponto de partida não a negação dos deuses, mas a naturalização das doenças, ou em outras

palavras, pretendia-se dessacralizar as doenças, sem, contudo dessacralizar a vida na sua

totalidade. Mas como compreender isso?

No próprio tratado Da doença sagrada, o autor afirma no passo c.2 que “a dita doença sagrada atinge somente os fleugmáticos, poupando os biliosos” (Hipócrates apud

Frias, 2005, p.71). É o cérebro o centro onde se dá a manifestação dessa doença (epilepsia).

As veias são responsáveis por levar o ar para todo o corpo. Na concepção do autor, as veias

são “respiradouros do corpo”. Quando em algum lugar do corpo a passagem do ar é

interceptada, a parte em questão torna-se incapaz de realizar qualquer movimento. Ora, é da

natureza do fleugmáticos serem incapazes de fazer a purgação do cérebro antes do

nascimento, o que os torna mais vulneráveis a terem a dita “doença sagrada”.

Com efeito, nos afirma Frias (2005 p.71-2):

Na descrição fisiopatológica da doença dita sagrada, o flegma descendo do cérebro, penetra nas veias e impede a entrada do ar, que não supre mais esse órgão, provocando a perda da voz e do conhecimento. Um outro mecanismo descrito é mistura do flegma (frio) com o sangue (quente). Se o fluxo de flegma é abundante e espesso, ele esfria o sangue e o coagula, levando o doente à morte; porém se o fluxo do flegma for menor, ao penetrar nas veias, ele, inicialmente, intercepta o movimento do ar, em seguida, misturado ao sangue, que é abundante e quente, o flegma não consegue mais impedir a entrada d ar nas veias e o paciente se recupera. 6

Os surtos epilépticos ocorrem pela ação dos ventos que mudam bruscamente e

exercem sobre o organismo, de modo especial no cérebro, uma mudança abrupta. Os ventos

entram e relaxam o cérebro, tornando-o úmido, dilatando assim suas veias. Úmido, esse

órgão se move e ao mover-se o doente fica confuso, ouvindo coisas e vendo coisas que não

existem (delírio).

6 A descrição desses mecanismos de humores é descrita minuciosamente no tratado Da doença sagrada de

(33)

No passo c 14 do tratado Da doença sagrada o autor define quais são as causas da loucura e naturaliza os afetos:

As alterações do cérebro se fazem pelo flegma ou pela bile.Os loucos sob o efeito do flegma são pacíficos; ao contrário, pela ação da bile tornam-se agitados. Os temores são explicados pelo aquecimento do cérebro provocado pela precipitação de bile, proveniente do restante do corpo, que nele penetra a partir das veias. A tristeza e a angústia são, ao contrário, explicadas pelo resfriamento do cérebro por ação do flegma. (HIPÓCRATES apud FRIAS, 2005, p.73).

É interessante notarmos a importância que se dava a esse órgão denominado

cérebro. Já no século V a. C. podemos pensar em uma fisiologia que correspondia as

expectativas do ideário holístico grego, pois não só o cérebro, por si só, era capaz de

produzir a dita “doença sagrada”, mas sua interação com outros elementos naturais bem

como os humores espalhados pelo corpo.

Cremos ser pertinente citarmos aqui os passos c 15 e c 16 do tratado Da doença sagrada, interpretado por Frias (2005), de modo a elucidarmos a importância cognitiva que esse órgão possui, inclusive sua proeminência sobre outros órgãos.

O cérebro é o órgão mais potente no homem; o ar lhe proporciona inteligência. Todo o corpo participa a inteligência na proporção em que participa do ar. Para a inteligência, o cérebro é o mensageiro. O ar inspirado atinge primeiro o cérebro e nele deixa sua parte mais ativa, que é inteligente. O cérebro é o intérprete da inteligência, não o diafragma (músculo frênico), cujo nome grego – phrenós – deriva do verbo phronéo, que significa pensar. O diafragma, não possuindo cavidades é incapaz de receber o ar, sendo em vão ele ter uma tal designação; da mesma forma que a aurícula , uma das cavidades do coração, em nada contribui para a audição. (...) nem o diafragma nem o coração participam da inteligência, somente o cérebro. (HIPÓCRATES, apud FRIAS, 2005, p. 73).

É notório o quanto à medicina hipocrática estava avançada, sobretudo no que tangia

a relação dos órgãos com sus funções. O cérebro já era visto como a sede dos processos

mentais, entre esses a inteligência. É pela sua constituição anatômica e por sua fisiologia

que o cérebro se torna importante. Os atuais estudos das neurociências só vêm

corroborando o que os gregos do século V a.C postularam, sem terem todo o aparato

tecnológico que hoje temos à nossa disposição. É nesse sentido que consideramos a

medicina grega como ponto de partida de nosso estudo, sobretudo no que se refere a

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