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Para uma ética da liberdade: a reabilitação psicossocial à luz do pensamento espinosano

CAPÍTULO III: DESCONSTRUINDO ANTIGOS PARADIGMAS: DA SERVIDÃO À LIBERDADE

3.5 Para uma ética da liberdade: a reabilitação psicossocial à luz do pensamento espinosano

A secção que acaba de findar-se nos colocou diante de uma das questões mais polêmicas do pensamento espinosano: como se dá a passagem da inadequação-paixão à adequação-ação? Em outras palavras, o que é preciso fazer para aumentarmos a força de nosso conatus e termos uma saúde plena?

Para Espinosa, o homem é desejo, na medida em que faz parte de sua essência lutar por perseverar na existência. Esse desejo, contudo, pode sofrer variações que tanto pode aumentar quanto diminuir essa força de ser e de agir. A causa dessas variações se encontra

numa dinâmica altamente complexa dos afetos. São afetos que direcionam as nossas vidas, e podem tanto nos conduzir à escravidão quanto à liberdade.

No decorrer da história do pensamento, as paixões estavam literalmente vinculadas a ideia de vício. A tradição também nos ensinou que somente uma alma voltada à razão poderia se livrar dos laços animalescos dos vícios. Sob a égide dos vícios se ergueu o pensamento moderno para compor paulatinamente o conceito de irrazão, de bestialidade. Vimos que na crítica que Foucault faz a modernidade, a irrazão se desloca do campo metafísico e ético, para o campo da psiquiatria e da clínica. Ou seja, a loucura não pertence somente aos objetos tratados pela ética dos costumes, mas se torna um elemento manipulável pela medicina. Ora, a primeira implicação que se tem é que a doença mental entendida sob o fenômeno da loucura, se apresenta como passível de ser controlada, porém, não mais por meio de uma ascese, de uma purificação do espírito, mas por meio da medicalização e da contenção física em manicômios.

Mas quais foram os pressupostos que permitiram a modernidade compreender as paixões como doença? A tradição teológica-metafísica, não obstante o advento dos séculos das luzes, influenciou autores importantes como Descartes. Segundo a tradição, o termo “passivo” e “ativo” se apresentam como denotadores de uma hierarquia. Nesse sentido, passivo é tudo aquilo sobre o qual recai a ação de outro e ativo, por outro lado, é tudo aquilo que faz recair sua ação sobre outro. (CHAUI, 2011). Isso quer dizer que, a partir desse ideário, existe entre alma e corpo uma relação de superioridade, uma vez que é da natureza da alma comandar o corpo. É a vontade que deve colocar, assim como colocamos freio na boca dos cavalos e o dirigimos para onde quer que queiramos, um freio nas paixões avassaladoras oriundas do corpo. Nessa perspectiva, ser escravo é estar sob o domínio das paixões e levar uma vida baseada na irrazão.

Diferentemente do que pensava a tradição, Espinosa, por meio de sua teoria do paralelismo psicofísico, propõe não haver nenhuma separação qualitativa entre mente e corpo, pelo contrário, a mente é vista como ideia do corpo, logo, a mesma não poderá ser ativa se o corpo for passivo e nem poderá ser passiva se o corpo ativo. Nesse sentido, não há uma hierarquia de substâncias separadas, pois o que acontece no corpo acontece na mente concomitantemente.

A posição de Espinosa é inovadora, na medida em que não postula nenhuma superioridade entre corpo e mente e, mais do que isso, os coloca em pé de igualdade, o que de certo modo provocou enormes problemas para o cristianismo, assim como também para vertentes da teologia judaica. Para ambas, o corpo sempre se apresentou como um dos grandes entraves para a ascensão e purificação da alma. Por essa razão, por muitos séculos a mística religiosa privilegiava a contemplação da alma e a negação dos desejos nascidos do corpo.

Ao propor que a alma e o corpo se constituem como modos dos atributos infinitos de Deus, Espinosa reconhece que não é possível pensar o homem apenas com sendo dotado de uma alma racional e, portanto, capaz de dominar o corpo. Somos ativos ou passivos por inteiro, e a única coisa que nos permite a passividade é a variação de nossos afetos, que se manifestam em causas inadequadas, do mesmo modo que só somos ativos na medida em que a dinâmica de nossos afetos contribuir para que causas adequadas conduzam nossa vida.

A atividade e a passividade não são virtudes ou vícios, saúde ou doença, equilíbrio e insensatez, mas apenas representam o que somos ao sabor das causas que motivam nossas ações. Com efeito, nos afirma Espinosa (2010, p. 163):

Digo que agimos quando, e nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada, isto é, quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo, ao contrário, que padecemos quando em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial.

Desse modo, agir adequadamente implica ser causa de suas próprias ações, isto é, ser autônomo e não se deixar sucumbir pelas forças externas escravizadoras. Por outro lado, ser passivo é ser causa parcial de nossas ações, ou seja, deixar-se sucumbir diante de forças externas escravizadoras; é o mesmo que viver na heteronomia. Mas eis que uma questão se coloca diante de nós de maneira capital: quais são os afetos que nos tornam ativos e quais nos tornam passivos? Na medida em que a Ética espinosana abandona o antigo ideário dualista entre vício e virtude e reconhece ser o desejo o que caracteriza a essência do homem, é preciso também redirecionar as causas que levam os homens à escravidão e quais os levam à liberdade.

Vimos anteriormente que três são os principais afetos: o desejo, a alegria e a tristeza. Os afetos da alegria e da tristeza não são estados, mas um modo de ser e de existir do homem. A alegria, como nos explica Espinosa, é a passagem de uma perfeição menor para uma perfeição maior, enquanto que a tristeza é a passagem de uma perfeição maior para uma menor. Essa variação implica na força do conatus, que tanto pode enfraquecer quanto aumentar, dependendo do modo como se dão as forças dos afetos envolvidos.

Assim, só podemos vencer uma paixão que tende a diminuir nossa força de ser e agir se pudermos encontrar uma paixão maior e mais perfeita que aumente nossa capacidade de agir tanto no corpo quanto na mente simultaneamente. Por essa razão que Espinosa afirma que as paixões que podem aumentar nosso conatus são todas aquelas nascidas da alegria e as que enfraquecem emergem da tristeza.

Espinosa é categórico quando afirma que o homem é essencialmente afeto. Todas as dimensões da vida humana são permeadas por afetos, mesmo aquelas que compreendem o campo das ciências. Isso nos leva a crer que não há nenhuma dimensão que escape ao jogo dos afetos. Essas constatações nos direcionam para o cerne de nossa pesquisa. Quais seriam os afetos envolvidos na produção dos conceitos de saúde e doença mental? Não seria o conceito de doença mental moldado à luz de afetos tristes que culminam na segregação e destituição de direitos de tantos indivíduos considerados pelo modelo biomédico como loucos?

O que caracterizava o louco era justamente a inexistência de uma razão capaz de nortear os comportamentos bizarros, as manifestações alucinantes exageradas. A psiquiatria nasce como negação dos afetos, e mais do que isso como arbítrio capaz de determinar quais são e quais não são os afetos possíveis de serem vividos. A construção do conceito de saúde e doença na perspectiva do modelo biomédico parte do princípio de que não é possível viver todos os afetos como uma subjetividade singular, mas de que é preciso seguir um modelo de vivência normal para assim ser considerado saudável.

As conseqüências nefastas dessas concepções podem se fazer sentir na punição daqueles que insistiam em viver em seus “delírios”. A hospitalização surge não como um espaço em que era permitido e garantido nascer os afetos nascidos da alegria, mas como um lugar por excelência do enfraquecimento da potência de ser e de agir do indivíduo.

Espinosa nos ensina que os afetos nascidos da tristeza são a vingança, crueldade, temor, avareza, medo, orgulho, autoritarismo, enfim, essa lista continuaria tanto quanto se fizer necessária na compreensão dos afetos tristes. Ora, esses afetos são evidenciados de modo especial nos locais de confinamento, sobretudo nos hospitais psiquiátricos. Mesmo sobre a tênue ideologia da terapêutica, os indivíduos que lá se encontram não dispõem de instrumentos que garantam a expansão positiva de seu conatus; isso se dá pelo simples fato de que eles são “pacientes”, isto é, numa linguagem espinosana eles vivem sempre como causa inadequada, não sendo causa total de suas ações, mas sendo sempre tutelados por outros que detém o poder.

Viver no hospital é o mesmo que viver sob a política do medo. O que será que o médico irá fazer comigo? Serei transferido de unidade? Minha exaltação é passível de ser compreendida como uma manifestação da minha subjetividade ou será entendida como delírio e, portanto, sujeita à terapêutica medicamentosa mais agressiva?

Essas são algumas questões que freqüentemente (caso adentremos no universo da instituição psiquiátrica) iremos ouvir por parte dos pacientes que lá residem. A compreensão do doente e da doença passa necessariamente pelos afetos que motivam tal imagem de mundo. O que é de fato ser doente mental? É não corresponder aos cânones da normalidade? Quais são os fundamentos que legitimam a normalidade?

A grande dificuldade em compreender como os conceitos de saúde e doença foram constituídos, reside no fato, já apontado por Basaglia e os demais reformadores, de se enfocar a doença e desconsiderar o indivíduo, entendido em sua totalidade e não uma mente e um corpo separados. Espinosa contribuiu para alcançarmos um novo conceito de saúde, tendo como fio condutor o indivíduo singular e sua relação com o mundo, uma vez que ele é um modo finito da substância infinita que é Deus. Ou seja, ele está interligado à substância que por sua vez liga-se a natureza toda: “Deus sive natura”72.

Assim, a vida saudável depende de uma luta constante por permanecer na existência. Permanência essa que não se limita apenas em se manter vivo biologicamente, pois como vimos não há mais em Espinosa a clássica dualidade entre mente e corpo. Ter saúde da mente é ter saúde do corpo concomitantemente.

72 “Deus, ou seja, a natureza”. Essa célebre expressão de Espinosa nos convida a compreensão da

imanência. Deus não cria o mundo do nada como postulara a tradição judaica-cristão, mas o mundo é uma modificação dos atributos de Deus, na medida em que expressão o poder de Deus.

Como modos finitos da substância infinita, somos sujeitos a alterações em nossa força de ser e de agir. A variação dessa força é que vai determinar o aumento ou a diminuição de nosso conatus. Vimos anteriormente que o aumento ou a diminuição do nosso conatus depende de um jogo complexo dos afetos. Contudo, os afetos nunca se apresentam a nós de modo puro, ou seja, só a alegria ou só a tristeza, mas eles vêm acompanhados de outros afetos que se interligam numa série intricada, e que constitui a dinâmica própria de um ser singular.

O ser singular, na medida em que busca aumentar sua potência de ser e de agir, não o faz isoladamente. É preciso considerar que a rede ampla e complexa dos afetos que culminará no aumento a diminuição do conatus encontra-se intimamente vinculada a um espaço de interação com outros conatus.

Na próxima secção veremos que a produção da saúde ou da doença depende do modo como o indivíduo se relaciona com o meio em que vive. Por essa razão, a filosofia de Espinosa contribui para desconstruir o paradigma mecanicista cartesiano que encontra ressonância nos modelos biomédicos. A leitura que aventamos fazer do pensamento de Espinosa nos conduz a pensar que a construção de um novo conceito de saúde mental implica numa compreensão de como se dá a dinâmica dos afetos na relação de um conatus singular com os demais conatus, de modo a constituir o que Espinosa chama de Imperium.