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Os pressupostos histórico-filosóficos da crítica ao modelo manicomial

CAPÍTULO III: DESCONSTRUINDO ANTIGOS PARADIGMAS: DA SERVIDÃO À LIBERDADE

3.1 Os pressupostos histórico-filosóficos da crítica ao modelo manicomial

Antes de adentrarmos no conceito de Reforma Psiquiátrica e de tercemos, à luz da filosofia de Espinosa, algumas considerações acerca desse movimento, se faz necessário compreender em que medida se deu a crítica ao modelo hospitalar e quais foram os pressupostos teóricos dos críticos.

Após a Segunda Guerra Mundial estabeleceu-se um consenso universal de que os campos de concentração não mais deveriam existir, porque eles representavam o que era de mais degradante que o homem poderia produzir. Ora, os hospitais psiquiátricos até então reproduziam a mesma lógica de degradação dos campos de extermínio: o isolamento, os castigos para os que não se adequavam ao sistema, a nulidade das identidades, enfim, o desrespeito para com os direitos humanos.

Os soldados sobreviventes dos campos de extermínio voltaram com sérios problemas mentais decorrentes dos horrores da guerra. Os transtornos pós-traumáticos de guerra invalidaram uma miríade de homens que tiveram seus destinos encerrados em hospitais psiquiátricos, o que de alguma forma produziu um déficit considerável na economia de seus países, uma vez que esses foram obrigados a arcar com as despesas hospitalares desse contingente como também de suas famílias, as quais sem a presença do pai acabaram se tornando um ônus para a previdência. Não seria estranho considerarmos que os primeiros movimentos que criticaram o modelo hospitalar aconteceram entre os paises tanto do Eixo (Alemanha, Japão e Itália) como também os países que compunham a tríplice dos Aliados (Inglaterra, França e Estados Unidos).

A agenda dos críticos tinha como fio condutor a necessidade de se repensar os conceitos de saúde e doença mental, pois até então o hospital empreendeu seus esforços em se focar em torno da doença e não da saúde. Do ponto de vista prático essa agenda crítica teve três momentos fundamentais. O primeiro momento dizia respeito à crítica que deveria ser feita no interior das instituições asilares que deveriam ser transformadas à luz de um modelo terapêutico que não confinasse. Daí surgiram os modelos das Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional. (Amarante, 2005).

O segundo momento da crítica se referia ao hospital como espaço de cura. Era preciso compreender em que medida uma prisão poderia curar. Daí surgiram os modelos da Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Comunitária ou Preventiva.

Por final, o terceiro movimento de crítica se deu a partir do questionamento das práticas e saberes da própria psiquiatria enquanto detentora de uma série de normas e regras que pretendia compreender o fenômeno da loucura a partir de um modelo biomédico. A esta perspectiva insurgem as críticas dos reformadores italianos, a saber, o modelo da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrática Italiana.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, na Inglaterra, sob o protagonismo do psiquiatra Maxwell Jones, tendo como precursores os psicólogos Bion e Reichman deu-se início às Comunidades Terapêuticas. O objetivo desse movimento era de efetuar uma reforma no interior do hospital psiquiátrico, por meio de uma remodelação na dinâmica administrativa e técnica do hospital.

Um dos elementos inovadores desse modelo foi a instauração das assembléias coletivas. Essas assembléias tinham por objetivo levar a toda comunidade terapêutica, isto é, médicos, enfermeiros, auxiliares, técnico-administrativos, familiares e os próprios pacientes a uma experiência de debate público dos anseios e ao mesmo tempo de propostas de melhorias. (CIRILO, 2006). Com efeito, nos afirma Desviat (1999, p.35) acerca de quais seriam as intenções dessas assembleias:

Liberdade de comunicação em níveis distintos em todas as direções; análise em termos da dinâmica individual e interpessoal de tudo que acontece na instituição; tendência a destruir as relações de autoridade tradicional em um ambiente de extrema tolerância; atividades coletivas (bailes, festas, excursões); presença de toda a comunidade nas decisões administrativas do serviço.

Não obstante aos avanços que as Comunidades Terapêuticas tiveram, não podemos deixar de constatar, na esteira de Amarante (2003) e Rotelli (1990), os limites desse movimento. O movimento das comunidades Terapêuticas deixou intocado o conceito de doença mental bem como sua relação com a sociedade. Além do que, não permitiu que o fenômeno da exclusão fosse de fato discutido. Tentou-se colocar remendo novo em roupa velha.

O segundo momento dos movimentos reformadores iniciou-se na França com um movimento liderado por Tosquelles no Hospital de Saint Alban, que ficou denominado de

Psicoterapia Institucional. Segundo esse movimento, o hospital deveria retomar a sua finalidade originária, a saber, ser um local e cura e não o lugar da violência e da repressão. Tosquelles buscou na Psicanálise de cunho lacaniano os referenciais teóricos que tanto necessitava para propor uma remodelação à instituição (AMARANTE, 1996).

A Psiquiatria de Setor teve uma influência muito grande na luta contra o modelo biomédico hospitalar de confinamento. Surgida também na França, esse modelo propunha que o doente não deveria ter apenas o hospital como referência para buscar tratamento, mas que deveria haver no seio da comunidade setores de atendimento à população. Com isso, o hospital deixaria de ser o centro de atenção e de referência para doentes mentais. Esse movimento não tinha a intenção de extinguir o hospital, mas de expandi-lo até à sociedade, de modo que determinados diagnósticos poderiam ser tratados sem a necessidade da internação. Isso de certa forma reduziria os gastos com internação e diminuiria o contingente de doentes confinados.

Nos Estados Unidos a Psiquiatria Comunitária ou Preventiva assume um caráter proeminente em vista das Comunidades Terapêuticas que também existiam. Seu expoente na América foi o psiquiatra Gerald Caplan que não só propunha uma mudança no que se entende por doença mental como também entendia que seria necessário repensar as estratégias para se produzir saúde mental. Caplan aposta na ideia de que se deve pensar em prevenir situações que possam desencadear sintomas doentios. Para ele, o binômio saúde / doença deve ser visto de forma dinâmica, ou seja, antes do surgimento da doença mental com seus sintomas há momentos de crise que são passíveis de serem tratados, evitando assim que a doença se instaure de forma aguda. (SANTOS, 2008).

Caplan (1980) acreditava que o meio ambiente tinha um peso considerável nas crises que antecediam a doença. Cabia assim ao psiquiatra dar uma atenção primária, isto é, um suporte para que o paciente pudesse melhor se adaptar ao meio. Desse modo, a loucura se tornou sinônimo de falta de adequação ao meio em que se vive, uma situação de angústia frente às situações muitas vezes inóspitas do meio.

A Psiquiatria Preventiva de Caplan (1980) versava por procurar possíveis suspeitos que por conta da dificuldade de se adaptar ao meio poderiam vir a tornarem-se loucos. A busca por possíveis candidatos à loucura se dava por meio de questionários em que se

procurava ressaltar as possíveis variáveis ambientais precursoras de desencadear sintomas doentios. (CIRILO, 2006). Nas palavras de Caplan (1980, p.47):

Uma pessoa suspeita de distúrbio mental deve ser encaminhada para a investigação diagnóstica a um psiquiatra, seja por iniciativa da própria pessoa, de sua família e amigos, de um profissional de assistência comunitária, de um juiz, de um superior administrativo no trabalho. A pessoa que toma iniciativa do encaminhamento deve estar cônscia de que se apercebeu de algum desvio no pensamento, sentimentos ou conduta do indivíduo encaminhado, e deverá definir esse desvio em função de um possível distúrbio mental.

Para Amarante (2003) a visão de Caplan permitia com que a psiquiatria não mais se focasse em torno do conceito de doença mental, mas pensasse em promover a saúde para toda a esfera social. Por um outro lado, a experiência desse modelo mostrou, ainda segundo Amarante (2003), que nos Estados Unidos, apesar de haver um grande número de pessoas atendidas fora do ambiente hospitalar, a internação hospitalar crescia em ritmo maior, isso porque aumentou o número de pessoas acometidas por intervenções de ordem psicológica.

Um das possíveis críticas a esse modelo reside na ideia de um “rastreamento” dos possíveis candidatos a desenvolverem patologias mentais. Ao que nos parece a ideia de “rastreamento” coaduna com a de eugenia, na medida em que a psiquiatria eugênica estava comprometida com o ideário do biopoder, de modo que tratava os possíveis herdeiros de pais desajustados mentalmente como pessoas potencialmente desajustadas.

Ao que tudo indica, tentar identificar possíveis pessoas suscetíveis a transtornos mentais não implica necessariamente em estar se preocupando com o bem estar dos “normais”, mas permite com que esses “possíveis anormais” sejam enquadrados, treinados a se adaptarem ao meio em que vivem. É o controle dos corpos, não mais no interior dos muros da “instituição total”, mas a reprodução externa da lógica do poder que agora extravasa pela comunidade.

O terceiro momento, talvez o mais significativo dentre todos os demais modelos reformadores, diz respeito ao paradigma da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrática da Itália. Quando nos reportamos à reforma psiquiátrica e suas implicações políticas e sociais, inevitavelmente somos convidados a reconhecer como o grande protagonista desse ideário o psiquiatra Franco Basaglia. No ano de 1961, Basaglia deixa a carreira acadêmica na Universidade de Pádua e empreende esforços no sentido de melhor atender aos loucos que vivam em situações degradantes no Hospital de Gorizia. Como diretor dessa instituição,

Basaglia a identificar-se com o submundo de miséria e marginalidade em que viviam os loucos daquela instituição.

As mudanças propostas por Basaglia estavam em consonância com a dos reformadores nos mais variados lugares: abertura das portas, eliminação das grades, das camisas-de-força e todos os mecanismos comprometidos com a lógica da repressão. Mas Basaglia não estava disposto apenas a repetir as mesmas experiências de reformas ocorridas na França e nos Estados Unidos. Era preciso que, além disso, se centrasse nos mecanismos de produção do poder, isto é, a própria psiquiatria. O que alimentava os mecanismos de poder estabelecido pela instituição psiquiátrica era o conceito de doença. Por essa razão Basaglia sugere que se deve colocar entre parênteses a doença. Ouçamos o próprio Basaglia (1981, p xxii, apud AMARANTE, 1994, p.65):

[...] uma ação prática de desmantelamento das incrustações institucionais que cobriam a doença; foi necessário tentar colocar entre parênteses a doença como definição e codificação dos comportamentos incompreensíveis, para buscar suprimir as superestruturas dadas pela vida institucional, para poder assim individualizar quais partes eram de responsabilidade da doença e quais da instituição, no processo de destruição do doente da doença.

Quando Basaglia sugere que se deve colocar entre parênteses a doença mental ele não está negando a existência de alguma coisa que traga dor ou sofrimento, mas justamente ele quer negar o enfoque da doença que deixa de lado a vida, a existência do indivíduo acometido de algum sofrimento psíquico. (AMARANTE, 1996).

A doença entre parênteses é a constatação de que o modelo biomédico baseado na medicalização e no confinamento não era capaz de explicar o fenômeno da loucura, uma vez esta se inscrevia na existência do sujeito e não nos moldes da instituição. Sendo assim, a reforma empreendida por Basaglia não se limitava apenas a criticar os saberes e práticas em torno da loucura, mas também colocava em xeque o próprio poder institucionalizante. O poder institucionalizante como um conjunto de forças, mecanismos e aparatos institucionais, ocorre quando segundo Basaglia (1981, p.250 apud AMARANTE, 1996, p.67):

[...] o doente fechado no espaço augusto da sua individualidade perdida, oprimido pelos limites impostos pela doença, é forçado, pelo poder institucionalizante da reclusão, a objetivar-se nas regras próprias que o determinam, em um processo de redução e de restrição de si que, originalmente sobreposto à doença, não é sempre reversível.

Ao que nos parece, a instituição gera um duplo da doença. Por duplo entendemos o sofrimento que se coloca, além daquele vivido pelo próprio indivíduo, por meio da instituição. É a face institucional da doença (AMARANTE, 1996). A instituição nega a subjetividade, não permite a troca de identidades e a produção de cultura.

A psiquiatria clássica colocou entre parênteses o doente, sua existência favorecendo a lógica da valorização da doença com seus sintomas e o tratamento medicamentoso. O fenômeno da medicalização tem na instituição o seu grande referencial, pois afinal qual o papel do médico psiquiatra se não prescrever? Por essa razão que Rotelli (1990) corrobora a tese de Basaglia de que só será possível uma reforma na psiquiatria se está romper com o paradigma institucional que acredita ser o fenômeno da loucura passível de ser explicado por meio de uma causalidade linear. É preciso romper com a instituição, desmontar o paradigma de que se pode curar fora da vida, prescindindo do meio social.

Para Basaglia (1985), o que marca o doente mental é o fato dele ser excluído da sociedade e, portanto, marcado pelo diagnóstico. Desse modo, romper com a condição de sujeitado não implica somente numa intervenção de caráter médico, mas, sobretudo, social, político e cultural. Se a intenção da nova psiquiatria era reabilitar o indivíduo, essa não poderia mais continuar se moldando aos paradigmas reducionistas. É preciso compreender uma multifacetada dimensão da vida e construir a partir dela os referenciais teóricos que permitiram a compreensão do sofrimento / existência.

No início dos anos 70, Basaglia assume o Hospital de San Giovanni em Trieste. É lá que as propostas de uma Psiquiatria Democrática são alcançadas. Basaglia ao assumir o hospital rompe com a lógica de exclusão e de confinamento e manda abrir os pavilhões até então trancados e extingue os símbolos de opressão, como as camisas-de-força e os espaços de contenção conhecidos como as celas fortes. A transformação também deveria contemplar o corpo técnico-administrativo que acostumados com o modelo manicomial, de repente se viu reformulado. Foram contratados novos profissionais além de redistribuição dos doentes não mais a partir do diagnóstico, mas criou-se o que nunca pensou que poderia acontecer no hospital: as alas mistas (homens e mulheres). (AMARANTE, 2003).

O objetivo de Basaglia era desinstitucionalizar, ou seja, não apenas criar mecanismos que permitissem o rompimento com o hospital, mas o desmantelamento de todo um complexo sistema de práticas e saberes que alimentavam a noção de loucura. Era

preciso reinventar a saúde mental para libertá-la dos grilhões da hospitalização e da institucionalização. Para Basaglia a reforma só se efetivaria se ela atingisse as políticas publicas de saúde e levassem o parlamento a elaborar leis que tenham como fio condutor não mais a doença, mas a saúde. Era preciso o abandono de antigos paradigmas acerca da doença mental e que se elaborassem leis que de fato colocassem entre parênteses a doença e evidenciassem o sujeito. E assim se fez.

Em 1978, os parlamentares se reuniram e aprovaram a lei 180 proibindo a internação em hospitais psiquiátricos e encaminhando a criação obrigatória de serviços alternativos ao hospital. Ao mesmo tempo modificaram o dispositivo jurídico qe definia o doente mental como perigoso e, portanto, não mais detentor de direitos civis.

Segundo Rotelli (1990), só em Trieste foram criados sete centros de saúde mental com atendimento ininterrupto. Além desses centros foram criados outros dispositivos como ateliês, rede de apartamentos, lares abrigados, associação de usuários e familiares dos serviços de saúde. (CIRILO, 2006). Nas palavras de Sade (2011):

Em Trieste e Arezzo, foram criadas casas para os hóspedes, estruturas com suporte de operadores vinte e quatro horas: são núcleos com seis a oito pessoas e cada um possui seu quarto. As portas das casas estão sempre abertas para o morador ir e vir. Hoje, em Trieste, no complexo de San Giovanni, há quatro residências; na maior, moram oito pessoas, atores sociais que viveram internados no ex-hospital psiquiátrico por longos anos. Esses moradores reconquistaram seu direito de se constituírem enquanto pessoas, exercendo sua liberdade.

Três anos depois, as mudanças que ocorreram na Itália serviam de modelo de transformação para as políticas públicas em saúde mental em todo os países que enfrentavam problemas com instituições asilares. A experiência de Trieste trouxe à luz uma reflexão que até então nunca realizada, as saber, de que era possível viver sem o hospital psiquiátrico. Em outras palavras, era possível negar a instituição com suas práticas e saberes opressivos e, ao mesmo tempo, oferecer um tratamento que atendesse à dignidade daqueles que de algum forma viviam sob a égide de algum sofrimento psíquico. É essa mudança que se tornou tão significativa para os reformadores, a ponto de Delgado (1992, p.13) assim afirmar:

A progressiva abertura do manicômio de Trieste, ao buscar entre outras coisas restituir ao louco a sua condição de cidadão -indivíduo que sofre, mas que é acima de tudo um cidadão - desmascarou estruturas hipócritas que legitimavam a sanidade “dos de fora” em troca da loucura “dos de

dentro” e praticamente forçou um posicionamento de cada cidadão a respeito do tema.

O poder médico baseado no paradigma biologizante, herdeiro direito do mecanicismo clássico cartesiano, viu-se abalado em seus fundamentos. Já não era mais aceitável pensar o louco como objeto de uma área restrita do saber.A nova psiquiatria propunha que não se deveria intervir na vida do louco de modo a cercear sua liberdade ou até mesmo considerá-lo um sujeito da desrazão. As implicações de Trieste e de seus reformadores nos permitem pensar que o ideal democrático de liberdade se constitui como o melhor dos regimes, aquele que melhor assegura os direitos inalienáveis da pessoa humana. Nas próximas secções veremos a importância de se pensar, à luz da Ética espinosana da liberdade, o conceito de saúde mental e suas implicações no campo prático das políticas públicas de atendimento às pessoas portadoras de algum sofrimento psíquico.

É importante ressaltarmos os avanços e as limitações da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil para que essa nossa pesquisa também possa servir de subsídio teórico de novas implementações no campo da saúde mental brasileira.

3.2 A experiência da reforma democrática no Brasil: reconstruindo novos