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A medicina da alma: contribuições de Descartes para um novo conceito de saúde e doença

CAPÍTULO I: A DEFINIÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA E SEU ESTATUTO

HISTÓRICO-FILOSÓFICO

1.3 A medicina da alma: contribuições de Descartes para um novo conceito de saúde e doença

Ao longo do período renascentista, medicina e filosofia mantiveram laços estreitos. Nas faculdades de medicina, as disciplinas se organizavam de tal modo que se podia falar de um verdadeiro corpus científico. Herança da Filosofia da Escola, as disciplinas de botânica, química, física, farmácia, anatomia fisiologia, patologia e filosofia constituíam uma saber indispensável para aqueles que quisessem se dedicar ao cuidado do corpo humano.

Dentre as disciplinas acima descritas, a filosofia se apresenta como imprescindível à compreensão do funcionamento do corpo, pois ela fornecia subsídios que permitiam ao médico elaborar argumentos consistentes. Segundo Roger (1971) 14, nos exames finais, o

candidato ao título de Doutor em Medicina deveria submeter-se a uma argüição oral. Nesse momento a filosofia era de grande valia, pois por meio do domínio do silogismo o candidato era capaz de responder a todas as questões propostas por seus interlocutores.

Os exames finais estavam em consonância com o método desenvolvido pelos mestres no decorrer do curso de medicina. Segundo esse método, os professores utilizavam obras latinas que eram lidas do alto da cátedra, recorrendo sempre a um comentador. As aulas de anatomia se limitavam apenas à leitura das partes do corpo humano, enquanto que um auxiliar mostrava os órgãos correspondentes ao texto lido. As aulas eram rápidas e os alunos anotavam tudo o que podiam, pois não havia técnica de conservação dos órgãos.

De acordo com Donatelli (2000), o referencial teórico do curso de medicina era Aristóteles. Buscava-se ensinar aos alunos os elementos fundamentais na metafísica e da física aristotélica, a saber, o conceito de matéria e forma, geração e corrupção dos corpos, as quatro causas, os primeiros princípios, o movimento. A fisiologia dos órgãos baseava-se ainda no modelo teleológico, no qual se concebia que a existência de um órgão se justificava pela sua função que ele exercia no interior do organismo.

13 PLATÃO, Timeu. 73b. 14

ROGER, Jacques. Lês sciences de la vie dans la pensée française du XVIIe siècle: la génération des aimaux de Descartes (2.éd). Paris, Colin, 1971.

Tanto a anatomia quanto a fisiologia constituíam disciplinas dependentes do paradigma teleológico aristotélico. Isso se torna evidente na obra de Fernel (1497-1558) intitulada De usu partiu in medicina15 editado em 1543. Nessa obra Fernel aponta a

necessidade de se pensar que todas as partes do corpo se colocam à serviço da alma, pois é ela a responsável por produzir os movimentos do corpo. Em sua leitura da obra Lês Sept livres de Physilogie de Fernel, Donatelli (2000), comenta importância da fisiologia aristotélica para o século XVII no que se refere à constituição do corpo. Tal comparação pode se encontrada na obra de Aristóteles intitulada Das Partes dos Animais, II, I, 646 b. Nas palavras de Donatelli (2000, p. 18), Fernel é defensor do legado aristotélico na medicina.

[...] o corpo é formado por partes simples e compostas, ou seja, no corpo há partes que se dividem em partes semelhantes entre si e outras que se dividem em partes dessemelhantes. As partes têm como base de formação os quatro elementos: fogo, água, ar e terra. A combinação desses elementos engendra as qualidades primárias (quente, frio, seco e úmido) cuja mistura produz as qualidades secundárias (fino, grosso, gordo, magro, liso, áspero...). Cada parte do corpo humano possui um temperamento que é o resultado da relação harmônica das qualidades primarias dos elementos misturados: a predominância de uma qualidade sobre as outras define os temperamentos.

As concepções de Fernel a respeito do corpo humano irão influenciar significativamente Descartes, bem com seu conceito de homem. Um dos problemas enfrentados por Descartes em sua teoria médica e que foi bem desenvolvido por Fernel diz respeito ao movimento do coração. Esse problema encontra seus desdobramentos na metafísica cartesiana, que tenta explicar a união do corpo e da mente por meio da glândula pineal e da influência dos “espíritos animais”. Vejamos seus fundamentos.

Para a tradição escolástica, a respiração constitui função vital que depende de duas causas, a saber, a alma, entendida como causa eficiente e de uma certa força motriz própria do corpo. (Marques, 1993). De acordo com a tradição, existe um movimento no coração. Ora, como dissemos anteriormente, a fisiologia tinha como referencial teórico a teleologia. Nesse sentido, o movimento do coração se dava em virtude de sua finalidade, qual seja a de refrigerar-se. Segundo Gilson (1951)16, o coração, sede do calor, foi dotado pela natureza de

15 Sobre o uso dos órgãos em medicina (tradução nossa). 16

GILSON, Etienne. Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartesien, Paris, 1951.

um movimento ininterrupto que faz com que outras partes do corpo, menos quentes que ele, sejam também movimentadas.

De acordo com Fernel, a concepção do coração como sede do calor é de origem aristotélica. Para o filósofo grego, o coração tinha por objetivo manter a vida. A leitura de Fernel da Parties des animaux de Aristóteles considera que o calor não se origina dos elementos que compõem o corpo, mas de um “princípio oculto”. Mais uma vez Donatelli (2000) nos apresenta as palavras de Fernel:

C’est donc pourqoui Aristote a três bien dite t a laissé par écriti à la posterité, comme um chose commune et vulgaire, que la vie consistait en la seule chaleur et que sans la chaleur, ni les animaux ni les plantes ne vivent point et qu’il a defini la mort être l’extinction de la chaleur naturelle. (FERNEL, 1655 apud DONATELLI, 2000, p. 19). 17

Na visão de Fernel, os espíritos constituem instrumentos das principais faculdades da alma se originam a partir de três digestões. Donatelli (2000) em nota afirma que essa explicação tem seus fundamentos em Galeno, de que Fernel se mantém seguidor.

Vejamos quais seriam esses três sistemas anatômicos e quais suas funções na constituição dos espíritos:

2. O fígado é responsável por produzir o espírito natural, cuja característica é o vapor, e está ligado às condições fisiológicas da procriação, nutrição e crescimento.

3. Graças às transformações ocorridas no coração, os espíritos naturais se tornam mais sutis e chegam à estatura de espíritos vitais, cuja característica é o ar. São esses espíritos vitais responsáveis pelo princípio vital que instancia o funcionamento do coração, o calor e a respiração.

4. Ao chegar ao cérebro, os espíritos vitais passam por mais um processo de transformação e se constituem em espíritos animais, cuja característica é o éter. Esses espíritos circulam, por meio do sangue, por todo o corpo, até serem transportados ao interior do cérebro por meio das artérias carótidas. São eles responsáveis por controlar toda a atividade psíquica, além de coordenar o movimento e as sensações.

Gilson (1951) em sua pesquisa sobre a influência do pensamento medieval na constituição do pensamento cartesiano considera importante esse debate acerca da constituição dos três espíritos e sua influência para a metafísica de Descartes. Ora, a

17

É por essa razão que Aristóteles bem tem dito e escrito desde sempre que a vida consiste no calor e sem este os animais e as plantas não vivem. A morte seria a ausência do calor. Tradução nossa.

aceitação da existência de espíritos animais evidencia, no entender de Gilson, que Descartes de alguma forma se mantém fiel à tradição que recebera no Collège de La Fléche.

Diferentemente de Descartes, o médico inglês Harvey18 não considera ser possível

aceitar a tese dos três espíritos como subsídio teórico para a medicina. Segundo Gilson (1951), Harvey não aceita a tese de que o sangue esteja impregnado de espíritos. A tese de Harvey partia do princípio de que o coração era um músculo e como tal tinha por si só o poder de fazer circular o sangue, por meio do movimento de contração. Harvey, contudo, defende a ideia de que há uma força vital por ele denominada de “vis pulsifica”. Seria essa força responsável pelo movimento de contração.

Não é possível a Descartes aceitar a tese de Harvey de que há apenas uma força vital. Com efeito, nos afirma Descartes: “Eu terminei de ler o livro De motu cordis, do qual V. S., uma vez, falou-me, e sou de opinião diferente dele, embora eu só o tenha lido depois de ter terminado de escrever sobre essa matéria”.(Descartes, 1898 apud Marques, 1993, p. 33).

A dificuldade de Descartes em aceitar a tese de Harvey encontra-se na teoria do movimento. Descartes introduz a concepção do calor cardíaco para justificar sua tese mecanicista. Para o filósofo francês, não há nenhuma “força vital” ou mesmo uma “alma vegetativa ou sensitiva” que anima o corpo, mas apenas o “calor” proveniente do coração. Nas palavras de Descartes (1994, p.80-1):

Demais, gostaria de que lhes fosse dado considerar que a grande artéria e a veia arteriosa são de uma composição muito mais dura e firme do que a artéria venosa e a via cava, e que se compõem de uma carne semelhante à destes; e que há sempre mais calor no coração o que em qualquer outro lugar do corpo, e, enfim, este calor é capaz de fazer que, se uma gota de sangue entrar em suas cavidades, ela se infle prontamente e se dilate, como procedem em geral todos os líquidos quando os deixamos cair gota a gota nalgum vaso que esteja muito quente.

A importância de se destacar esse tipo de explicação acerca do movimento do coração e a recusa em se aceitar uma “força vital” responsável pelo movimento está no paradigma mecanicista inaugurado por Descartes. De fato, diferentemente da tradição escolástica, o coração é visto como uma espécie de motor, de máquina. Em sua obra,

18 A obra de Harvey intitulada Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis, publicada em 1628. A

obra não foi bem aceita entre os círculos acadêmicos da época, pois colocava em questão o referencial teórico até então utilizado pela medicina.

Tratado do Homem, Descartes assim reafirma seu compromisso com uma medicina mecanicista.

E o fogo que está no coração da máquina que descrevo só serve para dilatar, esquentar e refinar assim o sangue, que cai continuamente, gota a gota, por um tubo da veia cava do pulmão, que os anatomistas denominaram de artéria venosa, em sua outra concavidade, de onde ele se distribui por todo o corpo. (DESCARTES, 1993, p. 143).

É graças ao calor do coração que os “espíritos animais” podem circular pelo corpo até atingir a glândula pineal, localizada no centro do cérebro. Para Descartes esse tipo de movimento é de suma importância para compreender a sensação, pois se não fossem os “espíritos animais” não seria possível o movimento do organismo como um todo.

Não obstante a isso, é a partir de 1629 que os olhares de Descartes se voltam para a medicina de modo especial. Em sua obra, O Tratado do Homem, o filósofo de la Fléche afirma que o estudo das condições fisiológicas do corpo não constitui condição suficiente para se explicar o homem.

Sendo assim, não é possível, ao menos na concepção de Descartes, comparar o corpo humano ao do animal, do ponto de vista mecânico. Ao homem há um elemento além do simples movimento interno dos órgãos, a saber, a alma. Nas palavras de Descartes (1994, p. 88).

Pois é uma coisa bem notável bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrario, não exista outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo. E isso não acontece porque lhes faltem os órgãos, pois vemos que as pegas e os papagaios podem proferir palavras assim como nós, e, todavia não podem falar como nós, isto é, testemunhando que pensam o que dizem; ao passo que os homens que, tendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os animais costumam inventar eles próprios alguns sinais, pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles, disponha de lazer para aprender a sua língua. E isso não testemunha apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão.

Se o homem, entendido na concepção cartesiana, é uma união de corpo e alma, não faz sentido considerar apenas o aspecto mecânico do corpo para explicar, por exemplo, as

doenças. Há na filosofia cartesiana uma influência causal entre mente e corpo, de modo que a doença é entendida como uma sensação desagradável sentida pela alma e capaz de produzir alterações na estrutura do corpo.

Para Donatelli (2000), a novidade que desponta dessa maneira de compreender o homem permitiu a Descartes propor uma compreensão acerca da “patologia” e da “terapêutica”, apesar de não ser esta ultima suficientemente desenvolvida por ele. Nesse sentido, num primeiro momento o conceito de “patologia” passa a se referir a um “desajuste” no corpo-máquina, o que exigiria, portanto, uma intervenção externa, no intuito de restabelecer a ordem, a normalidade perdidas pela doença. A “terapêutica” cartesiana, por sua vez considera desnecessário o uso de medicamentos, mas, seguindo a lógica interacionista entre mente e corpo, aconselha que se busque o equilíbrio no interior da própria alma.

1.4 O mecanicismo cartesiano e suas implicações para a medicina do século