• Nenhum resultado encontrado

O presidente do Sindicato da Indústria de Calçados de NH (SIC-NH), Níveo Friedrich (1974-1987), disse, em pronunciamento veiculado na mídia no ano de 1975, que “a falta de moradias [tornou-se o] maior entrave ao desenvolvimento da nossa indústria” (JORNAL NH, 12/09/1975, p. 7). Na mesma matéria, o periódico ressaltava que “a falta de habitações está criando, inclusive, problemas para o nosso desenvolvimento industrial, pois a oferta de empregos não tem sido acompanhada pela respectiva oferta de casas onde o trabalhador possa morar”. No ano seguinte, a preocupação com a indústria e a falta de habitações para trabalhadores continuava impactando os representantes do estado, já que esses organizaram uma visita dos secretários do Trabalho e Ação Social (Carlos Alberto Chiarelli), do Planejamento (Eduardo Muller) e da Indústria e Comércio (Cláudio Strassburger), a fim de discutirem os rumos da habitação na região (JORNAL NH, 07/01/1976, p. 12). De onde vinha tanta preocupação em tão pouco tempo? Abaixo apresento uma possível resposta.

Na segunda metade dos anos de 1970, “metade da população da RMPA era constituída por migrantes” (WEBER, op. cit. p.370). Oriundos do interior do estado e em busca de trabalho - e, no caso hamburguense especificamente, de trabalho na indústria de calçados -, migrantes que chegavam na região precisavam de local para morar, sobretudo porque boa parte dessas pessoas vinham com suas famílias e não poderiam ficar hospedadas em pensões ou casa de passagem (como foi o caso de Gilnei, exposto no capítulo anterior). Dessa forma, sem local de moradia adequado, uma das soluções adotadas por boa parte dos migrantes foi a ocupação de

terras estaduais ou particulares, caracterizada como um “padrão periférico de moradia”97. Esse fenômeno teria criado um atrito político na região, que, como vimos, precisou acionar agentes do Estado em nível municipal e estadual, de diferentes áreas para tentar resolver o problema. Em pouco tempo, a situação de trabalhadores em padrões periféricos de moradia iria afetar o trabalho, que, de ordeiro e voltado ao progresso, na visão das elites e dos governantes locais, passaria para caótico. Obviamente a burguesia industrial da cidade não desejava algo assim.

Em segundo lugar, é preciso levar em consideração o impacto do movimento popular em Novo Hamburgo, relacionando-o com o crescimento dessa forma de mobilização no Brasil e a outros tipos de movimentos sociais.

Desde o final da década de 1950, a política nacional conhecia a força que tinham as organizações comunitárias. Um exemplo significativo: o caso paulista das Sociedades Amigos do Bairro (SABs) e as sucessivas eleições de Jânio Quadros para vereador, deputado, governador e, por fim, presidente, revelaram que associações desse tipo naquela região garantiam boa parte do apoio político ao candidato98. Na perspectiva de Duarte (2008, p.196), durante e depois da Segunda Guerra Mundial, o “associativismo de bairro teve duas expressões fundamentais: os Comitês Democráticos e Populares (CDPs) e as Sociedades Amigos do Bairro”. O autor fala de um período diferente do nosso, mas seu estudo ajuda a pensar, de modo mais geral, as bases de uma perspectiva política que situa as organizações de bairro como relacionadas à luta democrática, quando “a ideia de democracia, ou de redemocratização estava diretamente vinculada à moradia” (DUARTE, 2008, p.196).

Diferentes movimentos populares brasileiros ao longo do século XX dão conta de exemplificar as possibilidades de organização dos trabalhadores à revelia dos sindicatos. Em se tratando da segunda metade daquele século, destacamos um movimento que ganhou força principalmente após o golpe civil-militar.

Fundada em 1925 pelo belga Leon Joseph Cardijn (1882-1967), a Juventude Operária Católica (JOC) passou a ser conhecida pelos brasileiros em 1932, ainda que tenha sido reconhecida e oficializada somente em 1948 (MENDES, 2011). Com o apelo evangelizador e na perspectiva de conquistar a juventude, “recuperando operários para o seio da igreja” (idem, p.2), a JOC passou por um processo de transformação durante a segunda metade da década de 1960. De acordo com Mendes (2011, p. 3), a organização católica afastou-se “das questões

97 A expressão vem de Carrion (apud WEBER, 2004, p. 373) e refere-se “tanto às áreas espacialmente afastadas

dos pontos mais centrais, quanto às áreas desprovidas de infraestrutura satisfatória e compatível com as necessidades de moradia, mesmo que centralmente situadas”. A mesma noção é utilizada por Fontes (2013, p.74).

espirituais para assumir as questões sociais relativas aos trabalhadores”, tornando-se “uma prática política também radical”. Essa radicalização foi sentida por Nidi.

Narrando sua relação com Nélson de Sá, o barbeiro-vereador disse que o conheceu na JOC, além de serem vizinhos. Explicando a sua formação política, Nidi afirmou:

Eu já era da Juventude Operária Católica, e ali se discutia essas questões, e ali tinha uns padres que explicavam pra nós. Essas coisas que a gente olha, não é, o que a gente enxerga pelos olhos não é, é o que a gente não está enxergando, lá é o problema. [...] Aí eu comecei entender o que é o imperialismo internacional…

A relação da formação de Nidi com a Igreja, sobretudo por sua condição de “jovem”, parece-me fundamental para entender o direcionamento de sua inclinação política. No caso argentino, Estela Blanco (2014, p. 215) constatou que ser jovem para a JOC era uma questão não apenas biológica, mas também de identidade: os jovens eram “varones solteros, de catorce a veinticinco años, en edad de elegir oficio asalariado; alumnos de escuelas profesionales e industriales, de artes y oficios; jóvenes trabajadores de fábricas y talleres, pequeños empleados de oficinas”. Essas características parecem valer também para o “jovem Nidi”. Em termos comparativos, Brasil e Argentina parecem compartilhar elementos comuns, como a própria noção de jovem trabalhador, mas também apresentam diferenciações.

Comentando o surgimento da JOC na Argentina, a mesma autora nos informa que “surgió a nivel nacional en 1940 en un contexto laboral de baja sindicación, con una organización obrera dominada por la dirigencia comunista y en menor medida socialista y sindicalista”99 No caso brasileiro, as organizações passaram a ser comandadas por dirigentes trabalhistas-getulistas a partir da década 1930. A respeito do caso hamburguense, Saul (1982) ressalta que, pelo menos desde o final dos anos 1940, a sindicalização de trabalhadores aumentou, fruto das campanhas realizadas na região do Vale do Rio dos Sinos. Se a construção da JOC no país vizinho foi fruto de baixa sindicalização, no caso do Brasil, podemos levantar a possibilidade de uma fortificação desta juventude católica justamente no período em que a sindicalização foi alta, contudo, atrelada ao Estado.

Os espaços da Igreja serviam de apoio para os trabalhadores e trabalhadoras, como nos afirma Paulo Lourenço, metalúrgico, homem negro, hamburguense e ex-sindicalista:

Já nessa primeira empresa, em função de a gente ter uma certa disposição de ter um olhar crítico mesmo com aquela idade, eu fui convidado para participar da oposição. Oposição à direção dos metalúrgicos. Eu me lembro que eu participei de algumas reuniões (...) na Igreja São Luís, bem no Centro de Novo Hamburgo.

[...]

Então Novo Hamburgo tinha um bispo, se não me falha a memória era a época do Dom Sinésio100, que ele era um bispo que vinha na linha da teologia da libertação.

Então ele auxiliava muito o pessoal mais à esquerda. Então se recorria de entidades que davam mais apoio e eles abriam as portas pra oposição. Mas se procurava ter o máximo de sigilo possível. Se reunia lá no fundo, meio quietinho, procurando não ser muito aberto. Até porque se a patronal soubesse que estávamos nos reunindo, no outro dia estávamos demitidos (LOURENÇO apud LUCIANO, 2016).

O entrevistado lembrou, portanto, da participação de setores da Igreja relacionados com a teologia da libertação e de como a igreja foi um espaço importante de rearticulação sindical. A ausência (ou negligência) da direção do Sindicato frente aos desmandos patronais pode ter induzido alguns trabalhadores e trabalhadoras a se organizarem em diferentes bases, algumas distantes do movimento sindical, como é o caso de Nidi, outras paralelas a ele, na perspectiva da oposição sindical, como nos mostrou Paulo. O fato importante aqui é que tanto a Igreja quanto os movimentos populares foram espaços de formação política de militantes responsáveis por novas articulações no movimento sindical em meados dos anos 70.

Nelson Sá, como vimos anteriormente, participou ativamente da oposição à direção do Sindicato dos Sapateiros de Novo Hamburgo desde, pelo menos, 1968. Ao mesmo tempo, articulou as novas bases políticas que viriam a se tornar um eixo importante da fundação do PT na região, concomitante ao seu trabalho de base no movimento comunitário. Podemos defini- lo como um militante plural, que atuava em diferentes esferas do movimento social, por isso sua trajetória nos ajuda a compreender a própria relação entre os sapateiros e sapateiras que chegaram em Novo Hamburgo nos anos 1970 e o sindicato, enquanto instituição considerada representativa dos interesses da categoria.

Nidi comentou que, em algum momento, teria combinado com Nelson quais seriam as abordagens políticas e as bases em que atuariam nos próximos anos. Ainda que saibamos que, normalmente, a memória busque articular uma coerência para o passado, e que talvez não tenha sido propriamente numa reunião que ambos firmaram tal “acordo”, o fragmento é importante para a análise:

Aí eu disse: “Nelson, vamos fazer o seguinte, a minha linha é o movimento comunitário. Tentar arregimentar o povo, os menos esclarecidos, tu fica na linha sindical”.

[Nelson teria respondido] “Eu tô na linha sindical”.

“Então tá, quando tiver uma coisa importante lá me convida que eu vou lá com vocês”.

“Quando tiver alguma coisa da Associação de Moradores, tu pode vir também. Só que o movimento estudantil? Como é que fica? Aí fica com a gurizada, mas vâmo animar aí esses guris”.

Então esses três [setores] começaram uma revolução pacífica aqui dentro [de Novo Hamburgo], e os caras olhavam e diziam: “isso não vai dar boa coisa”.

Quem falava?

A classe dominante. [...]

E aí nós éramos taxados de “quarto poder”. Até a Zero Hora [periódico] de Porto Alegre [perguntou:] “Por que quarto poder?” Porque tem uns cara aí e botam pessoas na frente da prefeitura e plaquinha [dizendo:] “nós queremos telefone”, “nós queremos luz”, “nós queremos água”, “nós queremos escola”. E tava o Nidi e o Nelson lá no meio. E os invejosos chamaram de Quarto Poder.

Este “Quarto Poder” se apresentou à disputa política local de forma incisiva. Não por acaso, já em 1976, Nidi foi eleito vereador com o terceiro maior número de votos do MDB - atrás apenas de Adalberto Martins (representante do Sindicato dos Sapateiros) e Wilson Korb (advogado trabalhista do mesmo sindicato). O MDB, em verdade, vinha ganhando força em todo o Brasil. A partir de 1974, as forças de centro, centro-esquerda e, em alguma medida, de esquerda venceriam algumas das mais importantes disputas eleitorais, mesmo que a repressão seguisse forte durante o mandato do ditador Ernesto Geisel (GASPAROTTO e PADRÓS, 2009), o que pode ter influenciado na eleição destes três nomes como os mais votados para a vereança em Novo Hamburgo. Nas disputas para vereadores das grandes cidades, nomes do MDB cresceram. Skidmore (2000) considera que este pleito marcou o princípio de uma retomada das forças opositoras ao regime, ainda que tenha gerado uma contra-ofensiva da ARENA, motivando cassações e outras medidas, as quais visavam o enfraquecimento do partido oposicionista a nível nacional. Do ponto de vista local, a eleição demonstrou a importância política que a categoria dos sapateiros tinha no município, inclusive frente aos desejos de um movimento popular que nascia com a perspectiva de ser um “novo” movimento social. Ficar em terceiro lugar na sigla de oposição significava que Nidi era um nome conhecido e referendado pela classe trabalhadora - mas que os membros do Sindicato dos Sapateiros ainda tinham mais respaldo frente à categoria.

Dada a proximidade de Nidi com a diretoria do Sindicato dos Sapateiros, questionei o entrevistado sobre a relação que esse mantinha com a questão da habitação popular:

O Sindicato não ajudava nessa questão da habitação?

Não, o sindicato era só melhores, melhorar o sistema de vida do trabalhador, ou do calçado, ou do metalúrgico, era só ali, eles ficaram muito abitolados, só ali. E eles também não tinham tempo pra olhar como é que estava o sócio do sindicato. O sócio do sindicato estava morando mal. Pessimamente. O Orlando Muller nunca se interessou em fazer uma reunião numa vilinha. Então nós é que fazíamos. E aí eu explodi. [...]

Obviamente que não poderíamos deixar de trazer à análise, na compreensão de tal ponto, a tensão existente entre os personagens desse enredo. Nos bastidores das disputas políticas brasileiras, há um jargão bastante popular que diz: “na política não há espaço vazio”. Assim, os novos movimentos sociais apareciam neste caso como uma resposta à ausência do sindicato nos pleitos pela moradia das/os trabalhadoras/es. No entanto, a ideia de que o movimento popular poderia ser revertido em capital político favorável a novos setores de oposição foi apreendida por membros do Sindicato dos Sapateiros.

Adalberto Martins, membro dirigente do Sindicato desde 1968, foi eleito vereador de Novo Hamburgo em 1976 como segundo candidato mais votado do MDB. Quando perguntei para Nidi quais eram os projetos do vereador-sindicalista na Câmara e se esses tinham relação com a vida dos operários fora das fábricas, o entrevistado respondeu:

Não, só sindicalismo. Só tinha uma coisa: se caía da vila, um sapateiro da vila, aonde a gente tinha passado pelas minhas mãos, pelas mãos do Nelson, caísse lá pra pedir exame ou encaminhamento de médico - o sindicato naquele tempo tinha dentista, tinha uma assistência, tinha um assistencialismo lá que eu vou te dizer. Era assim: “Onde é que tu mora?”. “Ah, eu tô lá na RS, assim, assim”. “Tu tá naquela vilinha do Nidi”? “Óh, cai fora!”. “Mas eu sou secretário da associação”. “Não é mais, nem te mete”. Isso aí o Adalberto fazia. Ele era um populista. E eu era de arregimentar a população. [...] Eu dizia: “Adalberto, tu é do sindicato, toma conta dos ‘calcista’ [sapateiros], eu sou do movimento popular, eu tomo conta das vilinha e das pessoas que vieram lá de Alecrim [município gaúcho] e perderam as terras pro Banco do Brasil. Quer dois exemplos, eu trago na Câmara. “Não, não, não traz” [imitando Adalberto]. Porque se trouxesse dois exemplos pra Câmara, vinha toda a vila e enchia a Câmara. Mas eles vieram. E eu fui à tribuna e disse: “Aqui tem três cidadão sentado nos bancos lá em cima, eles tinham lá fora 35 hectares que eles compraram com o Banco do Brasil, altos juros de pagamento, e aí deu um problema da época e a terra não deu, aí foram no Banco do Brasil pra renegociar, e o banco levou a terra deles. Tem três aqui, se vocês não querem acreditar levantem e digam ‘eu perdi minhas terras pro banco do Brasil’”. Mas daí abafaram e botaram panos quentes.

Existe na fala do depoente uma forte vontade de afastar o Sindicato das disputas políticas que os novos teriam travado – e, sobre isso, eu já alertava no capítulo anterior –, inclusive na ênfase dada ao termo “assistencialismo”. No entanto, cabe aqui um adendo interessante: a disputa pela “base”. O que o barbeiro-vereador narrou foi uma disputa política que levava em consideração a base de sapateiros-moradores. Em princípio, Adalberto compreendia as consequências de sapateiros se organizarem em diferentes bases e os perigos que isso poderia acarretar para a diretoria do Sindicato. Se este tipo de diálogo entre Adalberto e os/as trabalhadores/as do calçado realmente existia, o sindicalista possivelmente temia a agência da categoria e sua força de organização à revelia da entidade sindical.