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Sabemos, por meio de trabalhos como o de Nagasava (2015), que a ditadura civil- militar brasileira desenvolveu um projeto de sindicato. O “sindicato que a ditadura queria”, de acordo com a autora, deveria ser uma entidade que criasse a narrativa da representação sindical de modo ordeiro; quando das reivindicações, esperava-se que os sindicalistas tivessem bom senso e calma, agindo sempre nos termos da lei e, acima de tudo, com um discurso desprendido das atribuições do Estado. Se, no período varguista (1930-1954), o plano governamental era aproximar os sindicatos do aparelho estatal, na ditadura civil-militar a proposta era inversa. Ao desvincular os sindicatos do Estado, esse regime pretendia criar uma nova forma de relação entre trabalhadores e sindicatos, o que lhe permitiria desonerar a pasta do Ministério do Trabalho e reforçar a ligação entre operários “comuns” e operários sindicalistas. Aliado a isto,

a reformulação da estrutura ministerial e as direções sindicais foram questões de grande valor para os generais.

As formas de atuação dos sindicatos, entretanto, não foram completamente alteradas, ainda que muitas intervenções tenham sido realizadas, não somente nas direções sindicais. O Ministério do Trabalho passou por reorganizações que envolviam desde “contadores e profissionais especializados em entender as complexas fórmulas de reajuste salarial e o aumento de causas sobre esse tema”, até alterações da chefia da pasta ministerial (NAGASAVA, op. cit., p.188). A chegada de Jarbas Passarinho neste posto (1967-1969) significou uma mudança bastante brusca, tanto em termos de ação política quanto de ação repressiva.

Conforme mostraram Corrêa e Fontes (2016, p. 134), as primeiras ações do aparato repressivo ditatorial foram voltadas ao movimento operário e ao que ele representava naquela sociedade. Ainda na madrugada do dia 1º de abril de 1964, militares, comandados pelo general Olímpio Mourão, “invadiram a Fábrica Nacional de Motores – símbolo do nacional- desenvolvimentismo da Era Vargas – localizada estrategicamente na estrada que liga Minas [Gerais] ao Rio [de Janeiro], para prender e isolar os trabalhadores”. Simbólica e materialmente estava posto que a ditadura também combatia alguns dos avanços que o sindicalismo pré-64 tinha conquistado. Esses avanços pareciam incomodar certos grupos daquela sociedade, sobretudo o empresariado e a esfera mais abastada entre os trabalhadores, aquela que convencionou-se chamar de “classe média”.

Das alterações realizadas pela ditadura, talvez a mais eficaz tenha sido a mudança de significado dos sindicatos. Se, no período “populista”124, esses eram tidos como organizações abertamente a serviço do Estado, funcionando como elo entre trabalhadores e governos, no pós-64, como assinalamos acima, buscou-se desprender o sindicato do regime, ao menos no discurso oficial. Nas palavras de Santana (2008, p. 282):

Por não se propor a manter relações próximas aos sindicatos e relegando esses ao papel de controle sobre os trabalhadores, o Estado corta o canal de acesso em termos políticos que os sindicatos vinham tendo no período anterior e reforça a lógica assistencial naquelas entidades. Com isso, não se visa propriamente o enfraquecimento dos sindicatos; antes, busca-se dar-lhes outro tipo de força. A ideia era fortalecer os sindicatos e o sistema corporativo para seu papel na construção da nação e da coesão social. Não é por acaso, portanto, que por meio dos dirigentes impostos aos sindicatos, visou-se tornar atrativa a filiação aos sindicatos, fornecendo mais benesses dos que as já dispostas na CLT.

124 Usamos o termo entre aspas por sua amplitude e complexidade, mas, antes de tudo, por se tratar de uma

perspectiva pejorativa, frequentemente utilizada pelos “novos sindicalistas”. A noção de sindicalismo populista foi discutida no primeiro capítulo.

Ao passo que a ditadura impunha aos sindicatos a função de “controle” sobre os/as trabalhadores/as, a estratégia adotada pelos governantes era a de fortalecer estas entidades, e não a de lhes enfraquecer. Ainda assim, quando antes essas organizações de classe serviam de ponte para o acesso às discussões do Estado, no pós-64 foram cortadas tais ligações diretas. Nesse sentido, reforçar a assistência à saúde nas dependências dos sindicatos, ou pela via dos convênios entre tais entidades e o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), tornou-se um plano fundamental nas administrações militares.

Quando nos deparamos com as memórias de trabalhadores do calçado de Novo Hamburgo sobre os anos de 1970, a proposta de um sindicato direcionado para a coesão social e para a assistência à saúde se torna mais compreensível. As lembranças que estes e estas sapateiros/as têm do sindicato no período são quase sempre muito semelhantes. Sobre isso, Alba e Celomar disseram, respectivamente:

Eu consultei lá [no sindicato], algumas vezes. Eu nunca fui assim, como eu te disse eu tive boas relações com meus chefes e com meus patrões. Podia até não gostar da pessoa, mas como chefe, eu respeitava. [...] E daí eu nunca tinha motivos pra acusar alguém do sindicato, pra fazer uma denúncia. Eu ia na época pra consultar sim, na época do Orlando, antes de entrar a CUT, era o Orlando por muitos anos. Ia lá fazer uma consulta, dentista às vezes.

Você falou antes em sindicato, né? Fui associado do sindicato, sempre fui muito bem atendido, tinha médico, tinha tudo… Porque meu pai me disse assim: “o sindicato é muito bom pra nós”. Segui o exemplo do meu pai, o sindicato é muito bom nessa assistência aí.

O acesso destes trabalhadores ao sindicato foi permeado pela constância da assistência à saúde. Nestes termos, percebe-se que os entrevistados lembram de forma positiva do sindicato, quase sempre tentando dissociar seu acesso de assuntos políticos, enfocando nas benesses da assistência prestada aos sócios. No que diz respeito à Alba, a lembrança que tem de Orlando Müller, ainda que turva e em poucos detalhes, está relacionada com os serviços de assistência à saúde prestadas pelo sindicato: “Eu ia na época pra consultar, sim”. Do mesmo modo, Celomar também fez questão de frisar a importância do sindicato no âmbito assistencial. Algo que, como lembrou, não foi apenas uma construção propriamente da ditadura, ainda que ela a tenha fortalecido. Em sua lembrança, seu pai já lhe havia alertado sobre as vantagens de ser associado ao sindicato: “[...] porque meu pai me disse assim: ‘o sindicato é muito bom pra nós’”. Mas a lembrança destes/as operários não é a única fonte que indica a importância da assistência à saúde prestada pelo Sindicato dos Sapateiros de Novo Hamburgo.

Em 1974 o sindicato teria pedido 250 mil cruzeiros ao Ministério do Trabalho, a fim de prestar “melhor assistência aos sindicalizados e dependentes” (JORNAL NH, 30/01/1974, p. 4). No mesmo ano, contratou mais de 12 médicos para sua sede (JORNAL NH, 13/03/1974, p. 8). Reforçando a lembrança de Alba, que disse ter consultado dentistas no sindicato, no ano de 1974 mais de 1700 pessoas foram atendidas por estes profissionais na sede da entidade (JORNAL NH, 10/05/1974, p. 10.). O modelo construía uma fonte de renda para o sindicato, já que dos seus 20 mil associados em 1974, cada um dispendia 2% de seu salário mensal para a entidade (JORNAL NH, idem). A função de assistência social prestada pela entidade e reforçada pela ditadura ajuda a explicar alguns dos números existentes sobre o período acerca do desejo de operários/as em associarem-se aos sindicatos.

De acordo com dados do IBGE os sindicatos de trabalhadores industriais no Rio Grande do Sul contavam com 138 mil sócios em 1969, sendo que, 5 anos mais tarde, em 1974, chegavam à quantia de 230 mil pessoas, para, em 1978, contabilizarem 344 mil associados. Este aumento pode ser atribuído, ao menos em parte, o agravante da transformação de trabalhadores rurais para urbanos e, por consequência, uma maior participação na vida industrial. No entanto, sozinha, esta explicação não dá conta de elucidar a adesão dos novos trabalhadores industriais a sindicatos. Ao que tudo indica, a assistência, longe do que apresentam as narrativas de novos sindicalistas, tinha importância significativa na vida de operários e operárias da década de 1970.

Nidi lembrou do Sindicato no pré-64 dessa forma:

É… e naquele tempo se falasse em comunismo… Ah!!! E o véio [Alcides] Rosa era um baita de um sindicalista, tchê! Um exímio trabalhador em calçado. [...] Não houve, até foi melhor que os outros… Só que ele foi muito, assim, assistencialista. Porque me parece que não é bem a filosofia marxista, de ser muito assistencialista, mais é “aprender pra ti lutar”.

A ideia de um sindicato “assistencialista” também não é muito bem vista por Nidi. Entretanto, o que nos interessa aqui é perceber que, nas lembranças do vereador sobre Alcides Rosa, presidente do sindicato entre 1958 e 1962, está presente a imagem da assistência como fundamento essencial do sindicato. O entrevistado lembrou daquele velho homem como “um exímio trabalhador em calçado”, o melhor que Nidi já viu. Ainda assim, muito “assistencialista”.

Cabe a nós pensarmos em que termos a palavra “assistencialista”, utilizada pelos “novos” sindicalistas e membros aliados àquele movimento dos anos 1980, pode ser percebida como uma ofensa. A ideia do sindicato “assistencialista”, associada aos sindicatos getulistas e

do pós-64, é sempre retomada de forma depreciativa. Por outro lado, não tenho tanta certeza se ela escapa à tradição dos sindicatos brasileiros desde antes da, assim denominada, “Era Vargas” ou depois da tentativa de reformulação das estruturas sindicais, intentada pelos “novos” sindicalistas.

Se observarmos a trajetória dos sindicatos brasileiros, pela ótica tanto de Batalha (2010), ao tratar das discussões sobre mutualismo no Brasil, quanto de Fortes (1999), ao tratar das estratégias de resistência da classe operária em Porto Alegre (RS) na primeira metade do século XX, apenas para citar dois autores que influenciaram esta dissertação, perceberemos que a ideia de uma “cultura associativa” (BATALHA, 2004) é presente nas organizações operárias deste país desde, pelo menos, o final do século XIX. Isso se não contarmos as irmandades negras, associações de socorro mútuos ou outras organizações que articulavam trabalhadores livres e escravizados ao longo daquele século. Ou seja, distante do que Rodrigues (1968) supôs, a periodização do movimento operário brasileiro não está dividida em fases estanques, sendo que em uma primeira fase estaríamos presos ao mutualismo, desfeito após o período de “resistência”, mais ativo e revolucionário. Os estudos supracitados deram conta de desvincular a história social do trabalho de periodizações estáticas, o que permitiu uma compreensão mais conectada e processual das mudanças ocorridas nas organizações operárias. Assim, é possível enxergar uma permanência dos auxílios e assistências como funções dos sindicatos, mesmo quando esses se mostravam “resistentes”.

A ideia de que é preciso agir diante das dificuldades materiais que o capitalismo impõe aos trabalhadores está, em geral, presente nos sindicatos. Isso não parece ser fruto de uma inabilidade revolucionária ou falta de interesse político. A necessidade de sindicatos serem também espaços de assistência material é presente durante todo o século XX e parece estar ligada ao que Savage (2004) chamou de “insegurança estrutural”. O autor explica esta noção da seguinte forma:

Na sociedade capitalista, a retirada dos meios de subsistência das mãos dos trabalhadores significa constrangê-los a acharem estratégias para lidar com a aguda incerteza da vida diária, que deriva seu estado de impossibilidade de reprodução autônoma e sem o apelo a outras agências. Essa formulação nos possibilita reconhecer certas pressões estruturais sobre a vida operária, embora também pontue a urgência de examinarmos a enorme variedade de táticas que os trabalhadores podem escolher para cuidar de seus problemas - da luta contra seus empregadores à formação de cooperativas, à demanda de amparo estatal, à tessitura de redes de apoio nas vizinhanças e por aí vai (SAVAGE, 2004, p.33).

Aplicando esta ideia a um período e local bem específicos, como é o caso trabalhado aqui, percebemos que as estratégias operárias para resistir aos ditames da ditadura na década

de 1970 eram variadas. Entre elas, estava encontrar meios de acesso à saúde e proteção jurídica. Se os sindicatos cumpriam tal demanda era também porque havia uma compreensão de que aquele espaço deveria ser destinado a essa assistência. Isso não significa necessariamente que o sindicato tinha sido esvaziado de função política, ou que os/as trabalhadores/as não o viam como um espaço para debates de outra ordem que não a da assistência - pelo contrário, o sindicato permanecia sendo entidade de referência política para os operários e operárias, mesmo que não a entidade respondesse à altura.

A precarização do emprego na iniciativa privada com a criação do FGTS deixou os/as trabalhadores/as mais suscetíveis às oscilações dos mercados de trabalho. A ocultação governamental de dados oficiais sobre o índice inflacionário brasileiro deixou estes/as mesmos trabalhadores sem acesso a uma remuneração minimamente justa. A impossibilidade de dizer “não” abertamente ao governo, sob pena de prisões, torturas e assassinatos, dificultou a articulação política de operários/as. Não bastassem os constrangimentos clássicos do sistema capitalista, vividos pela classe desde, pelo menos, o século XIX no Brasil, durante a ditadura os/as operários/as viram-se diante de mais estes problemas. Os sindicatos, falando de modo genérico, cumpriam parte da demanda que a insegurança gerava. Se a contestação do sistema capitalista deveria fazer parte ou não das funções de um sindicato nos anos 1970, isso é outra questão. O fato é que a assistência à saúde por parte da entidade sindical foi bem vista por trabalhadoras/es de Novo Hamburgo, dentre outros motivos, porque era um dos poucos espaços de auxílio material com os quais aqueles sujeitos podiam contar.

Por isso, tomando cuidado ao olhar para esse passado, defendo aqui a expressão “assistência à saúde”, ao invés de “assistencialismo”. A primeira dá conta de compreender as diferentes interpretações quanto à função do sindicato, enquanto que a segunda serve mais à depreciação de um modelo indesejado pelos “novos” sindicalistas.

Se, por um lado, o aspecto positivo do sindicato é lembrado pelos/as trabalhadores/as entrevistados/as como a assistência à saúde, os aspectos negativos são narrados sob a perspectiva política.