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3.1 Narradores de suas histórias: apresentando personagens

3.1.4 A filha de João e Maria: de empregada doméstica à sapateira

IMAGEM 4: ERONI GUILHERMINA MACHADO

Daí nós viemos no trem. Duas malas. Ou três malas. Uma mala com uma roupa. Outra mala com uma roupa. Só o que nós trouxemos, mais nada. Deixemo tudo lá. Aqui comecemo tudo de novo.

Natural de Cachoeira do Sul72, Eroni chegou a Novo Hamburgo no ano de 1976. Filha de um ex-militar de baixa patente e de uma “dona de casa”, João e Maria, a história de vida de Eroni é repleta de elementos comuns a mulheres pobres e brancas de meados do século XX. Com nove anos iniciou nos mundos do trabalho em Porto Alegre. Como empregada doméstica “ajudava” nos serviços da casa de sua patroa. Segundo a entrevistada: “eu fazia o serviço da casa, era todo comigo, e eu era uma criança. Daí eu tinha que fazer: lavar roupa, limpar casa, fazer café, lavar louça, essas coisas. Isso tudo era comigo”. Neste mesmo período, Eroni cursou o ensino primário na instituição franciscana de Porto Alegre “Chaves Barcellos”, possivelmente origem de sua fé católica.

Após “terminar os estudos” - que significava para a entrevistada concluir o quarto ano do ensino primário, equivalente hoje ao quinto ano do ensino fundamental - Eroni retornou à sua cidade natal, Cachoeira do Sul. Ali voltou a trabalhar como doméstica. Perguntada sobre as possibilidades de trabalho naquele município, a entrevistada disse-me:

É que lá não tem grandes [empregos]… Não tinha, ou tu trabalhava de doméstica ou tu trabalhava nas lavouras de arroz, e eu não ia trabalhar nas lavouras de arroz, [então] trabalhava de doméstica.

Era muito pesado pra trabalhar com arroz?

Não, é pesado e é… tem muita água. Tem muita água e tem muito aquelas pontas do… quando tu corta o arroz fica umas pontas. Aquilo ali machuca muito. Tem que saber, tem que ser... pra homem mesmo.

A inevitabilidade do serviço doméstico apresentou-se à memória de Eroni como elemento que a aproximou dos trabalhos com a casa, sobretudo por ser uma atividade considerada “feminina”, ao contrário do trabalho “masculino” que a entrevistada associou ao cultivo de arroz. Dessa forma podemos notar que a ideia de trabalhar em casa, seja com os serviços de manutenção do lar ou de outra espécie, foi construída pela memória da entrevistada como algo inerente ao gênero feminino e em acordo com uma cultura de gênero mais ampla. Mais adiante veremos que esta informação ajuda a própria entrevistada a construir-se como profissional.

72 Município gaúcho emancipado em 1820, considerado como “Capital Nacional do Arroz”. Pertencente à região

Em 1968, após alguns anos de trabalho em Cachoeira do Sul, Eroni casou-se. Constituiu família, alugou casa, mas questões de saúde do marido lhe fizeram abandonar os projetos de vida que tinha estabelecido. Como seu companheiro trabalhava em um almoxarifado de fumo, um problema pulmonar decorrente da exposição ao produto consumiu sua saúde. De acordo com Eroni, o médico consultado teria lhe dito que, se não se afastasse do emprego, ele viria a falecer. A mulher, segundo seu depoimento, convenceu o esposo de que deveriam se mudar. Na perspectiva da entrevistada, as dificuldades locais para arrumar outro emprego poderiam lhe impor complicações para permanecer em Cachoeira do Sul, sendo que a “única” saída seria a mudança para uma cidade com maiores oportunidades.

Assim como ocorreu com Alba, anos antes, Eroni chegou a Novo Hamburgo já com uma “colocação”, como a entrevistada se referiu à habitação previamente arranjada por sua família. Seu irmão mais velho teria se mudado para a nova cidade anos antes, abrindo caminho para o restante da família – conforme vimos e ainda veremos, este não é um caso isolado.

Em Novo Hamburgo, Eroni teria trabalhado na empresa “Máquinas Enko”, metalúrgica próxima de sua nova residência. Mas que por questões de segurança de seus filhos, teria abandonado seu trabalho na firma. Nas palavras da entrevistada:

A Jaque [filha] era pequeninha, tinha 3 anos, o Eduardo [filho] tinha 6, não tinha onde deixar, aí quando eu consegui a creche, botei na creche, mas aí começou aquele problema, e eu comecei a ficar muito nervosa, muito apavorada, e não consegui mais, não consegui mais trabalhar. Cheguei no patrão e disse “quero, quero, parar, não quero mais trabalhar”. Aí ele queria saber porque, eu digo: “não dá pra deixar na creche, tá perigoso”. Porque eu chegava lá, a mulher dizia assim, a tia, professora, sei lá: "Ah, porque o tio veio buscar as crianças no colégio, e queria levar a Jaque". Eu digo: “mas como? Ninguém leva, quem leva sou eu ou o pai. Não tem vó, não tem tio, não tem ninguém. É só nós que vamos buscar”. Chegava lá no outro dia: "ah, o tio queria levar". Eu digo: “mas como?” Foram passear no centro: “ah mas tinha um tio que sentou no banco, disse que era tio dela e queria levar”. Eu digo “vocês tão doido, desse jeito eu não vou conseguir trabalhar”. Ah, não, eu cheguei lá e pedi minhas contas. Vão me roubar meus filhos e por causa de que? De um salário mínimo? Não. Aí parei de trabalhar, foi aí que eu parei.

O pedido de demissão de Eroni da metalúrgica ocorreu por conta de seu medo de ter seus filhos roubados. O perigo que a entrevistada narra, apesar de ser crível, não parece ter sido uma ação muito comentada à época. Os jornais nada dizem sobre roubos de crianças na segunda metade dos anos 1970, como se isso fosse um problema generalizado e comum ao período. Ainda assim, a lembrança de Eroni dá conta de elencar um cotidiano de pavor e medo por ter seus filhos roubados. Sua narrativa exemplificou este cotidiano com três situações diferentes em que “o tio” viria a sequestrar seus filhos, fingindo-se passar por um membro da família.

Esse motivo teria lhe impulsionado a pedir demissão da fábrica. Entretanto, outro ponto nos induz a pensar nas possibilidades para sanar este problema. A entrevistada conta que o próprio patrão lhe ofereceu outra creche para manter seu trabalho, mas mesmo assim, não houve acordo.

Ainda que aceitemos que o medo de Eroni em deixar os filhos para outras pessoas cuidarem seja o motivador de sua demissão, é interessante perceber como tal sentimento expressa o papel social que as mulheres tinham (e continuam a ter) nesse sistema de gênero: o de cuidadora, sobretudo das crianças. Mais tarde Eroni começou a trabalhar preparando calçados em casa, informalmente.