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Fontes (2013) argumentou que as sociedades amigos do bairro (SABs) foram essenciais para a construção da imagem de Jânio Quadros no Brasil de modo geral, mas principalmente em São Paulo. Se, de um lado, a memória solidificou o presidente como um sujeito excêntrico, populista e, ao mesmo tempo, “manipulador das massas”, o referido estudo vai na contramão dessa literatura memorialística, indicando que Jânio contou com a participação de movimentos populares paulistas, ao mesmo tempo em que dava retornos concretos aos moradores, com políticas voltadas às referidas associações. Fica evidente que os moradores-trabalhadores se tornaram “atores políticos fundamentais da vida na cidade” (idem, p. 88), no caso, em um período anterior ao examinado nesta dissertação.

De qualquer forma, o exemplo indica a tendência de alguns espaços políticos a serem atravessados pela mobilização e organização popular. O que defendo aqui, com base na documentação apresentada e na bibliografia consultada, é que boa parte das organizações populares existentes no município entre 1974 e 1979 foram relevantes para a ocorrência de certas alterações significativas no status quo social e político em Novo Hamburgo. Ademais, as dificuldades experimentadas pelos agentes que migraram do campo para a cidade naquela década foram fundamentais para a propagação de um novo clima político.

O que a documentação indica é que as comunidades formadas em Novo Hamburgo iniciaram um processo de desconstrução da hegemonia teuto-brasileira desde a década de 1950, mas de modo mais acentuado nos anos 70, em diferentes setores. Ao observar as narrativas aqui transcritas, percebemos que nesse período houve uma reconfiguração do perfil dos/as trabalhadores/as, fruto de alterações anteriores – de, pelo menos, um período de 20 anos antes -, mas que tomou proporções maiores na época aqui enfocada. O processo migratório, afora seus elementos de conflitos de classe e de combate às violências do Estado, gerou uma cidade plural e, ao que tudo indica, conquistada à base de muitos conflitos.

Por todas essas razões, não parece absurdo falarmos em termos de uma “nova identidade” do/a trabalhador/a hamburguense, baseados naquilo que Fontes (2002, p. 385) designou como “identidade do trabalhador”. Neste estudo, o autor comenta sobre uma “identidade nordestina”, criada a partir dos conflitos oriundos da migração interna em São Paulo. Nas suas palavras:

Esse senso comunitário em São Miguel imbricou-se com a criação, tensa e relacional, de uma identidade nordestina por parte dos migrantes. No específico contexto dos anos 50 em que a ‘questão nordestina’ ganhava forma, os migrantes exerceram um papel fundamental neste processo. Esta identidade ‘nordestina’ criada e recriada em

São Paulo articulou-se por sua vez, a uma identidade de trabalhador, o que abriu espaço para um forte sentimento classista entre muitos migrantes (FONTES, 2002, p. 385).

Aplicando tal linha de raciocínio para o município focado nesta dissertação, sugiro que algumas questões são muito similares entre as duas realidades, não obstante as diferenças temporais e espaciais. O perfil de trabalhadores/a que migraram para Novo Hamburgo nos anos 1970, como vimos, é de indivíduos do campo, conhecidos na região como “colonos”. Essa “identidade colona” em Novo Hamburgo associou-se com uma “identidade teuto-brasileira”, mas tornou-se maior que ela, gerando aquilo que Fontes denominou “identidade de trabalhador”.

Talvez por esse motivo encontramos nos depoimentos obtidos uma tensão entre a ideia de trabalho e a própria percepção da organização sindical. Todas as entrevistas realizadas com sujeitos que não participavam de atividades políticas (sindicatos ou movimentos populares) tiveram em seu âmago o desejo de dissociar sua imagem do sindicato. Essas falas deixam entrever uma associação entre a militância sindical e o “não-trabalho”. Eroni comenta isso ao falar de sua rápida passagem pela metalúrgica hamburguense: “A [fábrica Máquinas] Enko se quebrou muito por causa das greves [...]. Era muita bagunça”. Alba reiteradamente levanta essa questão: “Não, nunca, isso não tinha. Eu não me lembro, desses anos todos, se alguém fez greve. É que as pessoas eram mais francas, resolviam seus problemas - pelo menos eu fazia isso - conversando diretamente com o patrão”. Outros personagens, que estarão presentes no capítulo seguinte, também apontam nessa direção.

Outro ponto importante aqui é a relação entre as greves e a presença dos “de fora”, exposta na entrevista de Celomar:

[...] Aí depois, quando subiu, quando aumentou a produção e funcionários, que vieram muitos funcionários do estado, da periferia, migraram para as empresas, porque eram uma mina de trabalho, aí como tinha muito trabalho, começou a aparecer a questão das greves.

Assim como Alba construiu a sua representação de que a violência em Novo Hamburgo teria sido fruto do afluxo migratório, Celomar reconstituiu o passado da cidade com base também nos novos habitantes, mas responsabilizando-os pelas greves. De fato, a documentação nos possibilita construir uma narrativa que aponta para a emergência de conflitos muito mais visíveis a partir da metade e finais da década de 1970 - como foi o caso da Greve de 1979, que será apresentada com maior detalhamento no capítulo final.

Conforme pontuou Weber (2004, p.392), a região metropolitana de Porto Alegre, à qual Novo Hamburgo pertencia politicamente, ganhou ares de um “grande mercado de trabalho, que é também a área de atuação dos sindicatos, [onde] as vilas são o locus a partir do qual os ‘vileiros’ exercem sua cidadania, inclusive quando estão fora do mercado de trabalho”. O mais provável é que este espaço de disputa política que independe da mediação sindical tenha sido um ponto de convergência para diferentes agentes que chegaram em Novo Hamburgo, ou mesmo que já habitavam a cidade. Não é à toa que o movimento popular serviu de alavanca para duas candidaturas de Nidi à Câmara de Vereadores, tendo sido eleito em ambas. Também não é à toa que Nelson de Sá, figura conhecida pela burguesia e elite política da região, tenha retornado ao movimento social. A força dos trabalhadores também se mostrou fora das fábricas e fora da luta sindical.

Partindo do pressuposto thompsoniano de que classe e luta de classes são as últimas e não as primeiras instâncias de onde os sujeitos organizados partem, poderíamos dizer que os conflitos gerados no âmbito das migrações foram fundamentais para desestabilizar uma certa ideia de harmonia entre as classes em Novo Hamburgo. Também foram importantes para construir sentimentos de unidade entre mulheres e homens provenientes de regiões distintas do sul do Brasil.

No próximo capítulo irei argumentar que instituições políticas ou movimentos sociais organizados não foram os únicos responsáveis pela formação do perfil do operariado e por tensionar as relações entre sindicato e categoria. O esporte operário em Novo Hamburgo ganhou uma dimensão que ultrapassou a área do lazer e alcançou uma relativa expressão política, de forma muito parecida ao que aconteceu em outras partes do país, ainda que com algumas características próprias em função das peculiaridades do contexto local.

4 JOGO DE CLASSES: FUTEBOL, ASSOCIAÇÕES, IDENTIDADES

Un vacío asombroso: la historia oficial ignora al fútbol. Los textos de historia contemporánea no lo mencionan, ni de paso, en países donde el fútbol há sido y sigue siendo un signo primordial de identidad colectiva (GALEANO, 2005, p.243).

Betinho nem sempre foi sindicalista, como o primeiro capítulo deixou claro. A partir da década de 1980 passou a se interessar pelos assuntos políticos do sindicato e da categoria de trabalhadores do calçado, mas até então não tínhamos muitas informações sobre como se deu sua iniciação política e de como agia nos anos 1970. Em suas lembranças narradas na segunda entrevista concedida à presente pesquisa, comentou que o despertar para a política foi fruto de uma relação estabelecida nas fábricas, mais precisamente na fábrica de calçados “Czarina”, localizada a poucos metros de sua casa, mas que pertencia ao município vizinho de São Leopoldo. De acordo com o próprio entrevistado: “E aí eu fui conhecer um pouco mais [do Sindicato] quando eu fui trabalhar na Czarina. E aí eu fui conhecer um pouco mais de um cidadão chamado Antônio Bernardino de Souza - tinha um apelido de Rancheirinho”.

O contato de Betinho, jovem trabalhador, com o experiente operário e militante político, na década de 1980, alterou sua perspectiva e lhe indicou um dos possíveis caminhos dali por diante: o de aliar-se aos “novos” sindicalistas, contra os “velhos”. Rancheirinho tornou-se famoso pela oposição sindical de 1968, que, como foi comentado no primeiro capítulo e será retomado adiante, gerou uma série de perseguições políticas e terminou com sua mudança para a cidade vizinha. Betinho, por outro lado, não tinha nenhuma relação com qualquer sindicalista da região - ao menos de acordo com o que as evidências apontam - mas, por algum motivo, foi convidado a fazer parte de um movimento que, no início dos anos 1980, tomava forma no Vale do Sinos. O contato entre Rancheirinho e Betinho, dado a partir das relações entabuladas na fábrica, veio a construir uma nova liderança dos sapateiros, que aos poucos aproximou-se do sindicato oficial da categoria.

Confesso ao leitor e à leitora que a primeira indagação que fiz às fontes ao começar este trabalho foi: como a carreira política de Betinho se tornou tão forte no município, entre os anos de 1980 e 1990, chegando a consagrar-se presidente do sindicato e vereador da cidade? Seguindo-se a isso, perguntei-me: e por que Betinho fora convidado à luta política pelos meios sindicais? Na sua primeira entrevista, ele forneceu uma opinião que pode nos ajudar a responder ao primeiro questionamento:

É que na época tinha o campeonato do Sesi, organizado pelo Sesi, na época da Ditadura ainda. Como tu não podia se organizar pra reivindicar salário, tu jogava futebol. Era isso. E o Sesi cumpria esse papel, que é o do social. Quando começa lá

no início dos anos 80, que tu sai das grandes greves, é disso. Eles te enxergam como uma liderança que vai conseguir organizar os trabalhadores.

Na leitura retroativa de Betinho, a sua aproximação com a categoria de sapateiros a partir dos jogos esportivos organizados pelo SESI colaborou para a difusão da sua imagem junto aos trabalhadores (não apenas sapateiros, mas também de outras categorias que participavam de tais campeonatos). A partir dessa primeira interpretação comecei a me indagar sobre o papel que o futebol de fábrica exerceu ao longo dos anos, e de que forma a grande circulação de operários pelos meandros do esporte funcionava como palanque político, podendo ser convertido em confiança nos assuntos eleitorais, fossem eles sindicais ou não.

No entanto, qual não foi minha surpresa ao questionar o entrevistado, já em outra entrevista, e sobre o mesmo assunto obter a seguinte resposta:

Tu acha que ficou conhecido entre as pessoas [por causa do futebol] e que isso te ajudou depois dentro do sindicato?

Não, não. Era amizade o que a gente tinha. Eu fiquei muito conhecido depois quando eu assumi a presidência do sindicato. Quando eu fui pra dentro do sindicato. Eu controlava a eleição de CIPA nas fábricas. Nós tínhamos uma cláusula no dissídio que nós fazíamos as eleições, e aí como dirigente sindical, aí eu fiquei muito em cima. Eu ia nas fábricas falar com os trabalhadores. Eles nem lembram disso, do jogo, mais como dirigente mesmo, de colocar minha posição.

Assim, nessa segunda entrevista, Betinho negou que sua circulação em diferentes grupos de trabalhadores pela via do futebol tenha sido preponderante para seu crescimento na política. Minha reação no momento da entrevista foi a de questionar o próprio depoente e contrastar esta fala com a primeira. Não o fiz porque, sendo a memória sempre do presente (HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1989; ROUSSO, 2006), levei em consideração os dois períodos distintos em que as entrevistas foram concedidas: na primeira, realizada antes do Golpe de 2016, quando Betinho ainda ocupava um cargo de chefe de gabinete da prefeitura municipal, membro ativo do PT da região; na segunda, já aposentado, sem participação ativa no partido, posterior ao Golpe e com uma conjuntura política pouco inspiradora, com a retirada de direitos trabalhistas. Os diferentes momentos podem ter alterado sua forma de lembrar do passado, mas, para esta análise, a contradição existente na lembrança de Betinho serviu de desafio e, ao mesmo tempo, de gatilho para novas perspectivas que serão entregues ao leitor e à leitora agora.

Este capítulo tratará de entender os meandros do esporte operário em Novo Hamburgo, delimitado ao período estabelecido nesta análise, ainda que compreenda os processos históricos

anteriores e posteriores. A partir da redução na escala de análise, pretendo mostrar que os anos 1970 não encerraram uma apatia política da categoria de sapateiros por falta de representação e de combatividade sindical. Ao contrário disso, assim como fizeram em relação aos movimentos sociais de luta pela moradia e resistência associativista, trabalhadores/as utilizaram algumas das ferramentas disciplinadoras do próprio Estado para se beneficiar - o futebol é um caso especial, tanto no que se refere ao esporte organizado pela burguesia industrial - o SESI - quanto pelos campeonatos varzeanos, disputados por clubes independentes de Novo Hamburgo e região. Deste modo, considero relevante situar o papel do “esporte bretão” nas relações sociais de dominação e resistência estabelecidas entre as classes, no Brasil e no mundo.

4.1. “O esporte que o mundo tornou seu”

A importância do futebol enquanto articulador de conflitos e associações tem sido pontuada nos últimos anos também pela historiografia. O fato deste esporte ter sido aquele “que o mundo tornou seu”, de acordo com Hobsbawm (1995, p. 158), passou a ser percebido como um elemento de organização de identidades e relevante para historiadores sociais. As críticas que Galeano (1995) tecia à ausência de diálogo entre as ciências humanas/sociais e o esporte bretão parecem ter surtido algum efeito - e, no entanto, ainda há muito a ser feito.

Nestes termos, creio não haver nada de muito novo em dizer que o futebol faz parte da cultura operária. Desde o início do século XX, quando o esporte se espraiou pelo Brasil, trazido pelo britânico Charles Müller, o jogo de bola foi subvertido em manifestação popular. Se considerarmos o futebol profissional, por exemplo, já nos anos 1930 boa parte do elenco nacional de jogadores era formado por trabalhadores de fábricas e provenientes de vilas operárias, como mostrou Leite Lopes (2010). Seja pelo baixo custo, seja pela facilidade em praticá-lo em qualquer espaço mais ou menos propício, o futebol foi disseminado em todo o território nacional, seguindo a linha de outros países, até chegar ao ponto em que é, hoje, considerado uma das grandes - e talvez a maior - expressão esportiva. No caso do universo trabalhador, o futebol operou em diferentes esferas do conflito de classes.

Antunes (1994) nos indicou que na primeira década do Novecentos o futebol foi elemento de desacordo entre os movimentos anarquistas e os de caráter comunista. Os primeiros acusavam-no de ser o “ópio do povo”, dada sua função “alienante”, que fugiria ao verdadeiro enfoque necessário à classe operária: a luta de classes. Por outro lado, os

movimentos de caráter comunista percebiam que aquele jogo poderia ser subvertido em espaço de radicalização política (ANTUNES, 1994).

Com o passar do tempo, diferentes governos nacionais perceberam a força do esporte enquanto aglutinador de massas. O populismo varguista usufruiu dele, os movimentos políticos dos anos de 1960 também, sem esquecer do trabalho de difusão do otimismo através da seleção brasileira, realizado pelo ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974)101. Quanto a este último, há uma aparente contradição: se, por um lado, a administração de Médici se caracterizou por ser um dos períodos mais sangrentos da ditadura civil-militar, por outro, foi também o mais popular. Na perspectiva de Guazzeli (2000), este ponto contraditório se deve ao movimento ufanista que se seguiu à conquista do título mundial pelo selecionado brasileiro de futebol, em 1970. O grupo empresarial responsável pela mídia utilizou em larga escala o elemento unificador que o futebol trazia (FICO, 1997). Dessa forma, “o Brasil se tratava de um país ‘vencedor’ e que se unia ao redor de uma única identidade, trajando o verde-amarelo oficial do uniforme futebolístico brasileiro, visto por milhões de pessoas, por meio das transmissões televisionadas das partidas futebolísticas” (PRODANOV e MOSER, 2013, p.57)102.

Talvez por esse motivo minha preocupação inicial foi entender os objetivos da Prefeitura Municipal e do SESI ao estimularem esportes operários com tamanha expressividade. Um esporte de grande reconhecimento por parte da classe trabalhadora, que se tornou símbolo de uma identidade nacional coesa, incentivada pela ditadura e que ganhou dimensões regionais.

Os anos de 1970 foram atravessados pela disseminação de campeonatos regionais e estaduais de futebol operário no Rio Grande do Sul, organizados com base no discurso de congregação e alianças entre operários e patrões. No entanto, cabe sinalizar que o fato de haver um projeto nacional visando o discurso da conciliação classista com base em esportes operários ou em propagandas nacionalistas não significava que a classe trabalhadora brasileira aceitava a “isca” e se comprometia com o jogo proposto. Assim como em outras regiões do mundo, o esporte operário serviu de resistência a muitas práticas de dominação103 e, como veremos, em Novo Hamburgo o futebol se evidenciou como um espaço de socialização, lazer e disputa política.

101 No que diz respeito à relação dos ditadores pós-64 com o futebol, ver Fico (1997), Skidmore (2000) e Guazzeli

(2000).

102 Guazzeli (op. cit.) mostrou que o movimento identitário proposto pela ditadura fora tensionado pelo

movimento gaúcho de futebol que, em 1972, teve sua expressão máxima no confronto entre duas seleções: a brasileira e a gaúcha.