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No início da década de 1960, o SESI inaugurou uma série de atividades desportivas de cunho competitivo, tais como ciclismo, atletismo, futebol, handebol e bolão104. Esses jogos foram chamados de Olimpíada de Confraternização Operária do SESI (OCO). De acordo com a própria instituição, o objetivo central era o “congraçamento dos trabalhadores das mais diferentes indústrias do Rio Grande do Sul” (TORRESINI, 2016, p.75).

A participação de trabalhadores na Olimpíada era muito variada. O papel feminino, por exemplo, era relativamente baixo até a metade da década de 1970, mas a participação de mulheres aumentou com o decorrer dos anos. Se considerarmos que em Novo Hamburgo quase metade da força de trabalho era composta por mulheres, poucas foram as trabalhadoras a entrarem nas disputas da OCO, sendo que só em 1975 foi inaugurada uma sessão do certame específica para elas (JORNAL NH, 07/02/1975, p. 9). Se, até 1975, o papel feminino na OCO era relegado à coadjuvância, o crescimento de mulheres nos postos de trabalho, seu protagonismo nas fábricas e as discussões do período sobre o papel feminino na política105 possivelmente alteraram as perspectivas quanto às suas participações nos campeonatos. Em diferentes escalas o esporte feminino ganhava força. A título de exemplo, lembro que em 1975 um campeonato interno do Grupo Sinos (mantenedor do Jornal NH) chamava a atenção para a participação feminina no torneio de futebol de salão, apontando para a existência de outros certames, à parte das organizadas olimpíadas do SESI (JORNAL NH, 12/03/1975, p. 07).

De qualquer forma, o SESI se construía como referência em termos de esporte operário no Estado. Sua participação nas questões públicas também fazia parte dessa construção. Em virtude das diferentes efemérides comemoradas em Novo Hamburgo, o esporte aparecia como elemento de unificação, funcionando como lazer daquela população, mas ao mesmo tempo instituindo símbolos de identificação com a cidade e a estética germânica. Não foram poucos os casos em que a prefeitura, o estado do Rio Grande do Sul e o SESI organizaram eventos para comemorar as efemérides da Imigração Alemã. Em um dos casos, o de 1974 (ano de comemoração do Sesquicentenário da Imigração Alemã), milhares de pessoas participaram do

104 Esporte de origem teuto-brasileira que agrega algumas características do boliche.

105 Talvez não por acaso o ano coincida com o da formação do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), que

construiu uma frente de oposição ao regime, composta e liderada por mulheres do MDB. A força feminina na política mostrava-se mais ativa e, é possível prospectar, estes movimentos interferiam em outras esferas do público. Sobre a MFPA ver o trabalho de Padrós e Gasparotto (2014) e o depoimento de Lícia Peres (2014), membro fundadora da seção gaúcha do MFPA.

torneio de ciclismo (JORNAL NH, 04/07/1974, p. 4). Inclusive há que se considerar esse como esporte bastante difundido neste período. Em 1977 o Ministério do Trabalho desenvolveu uma atividade de ciclismo em Novo Hamburgo, ligada à semana sindical, em que muitos participantes encheram as avenidas da cidade (JORNAL NH, 18/03/1977, p. 11). No que diz respeito aos espaços de lazer e esporte do município, a prefeitura firmou parcerias com o SESI, a fim de desenvolver esportes como bolão, vôlei, basquete, ciclismo e tênis (JORNAL NH, 11/06/1975, p. 8).

O fato é que o SESI jogava um peso significativo nas atividades de esporte e lazer na cidade. O destacamento de um líder regional do Serviço, que ficaria encarregado de comandar as ações desportivas na região do Vale do Sinos, representava a importância que a instituição dava ao Vale. Dario Loblein, diretor regional de esportes do SESI, acompanhava as atividades nesta localidade, tornando-se muito conhecido entre os trabalhadores (JORNAL NH, 22/02/1974, p. 10). Sua boa circulação entre o setor produtivo lhe indicou caminhos para a atuação política e, em 1976, ele se lançou candidato à vereador pela ARENA, mas não foi eleito, fazendo poucos votos.

Em 1975 um projeto animou alguns grupos do município. Através de uma discussão realizada na câmara de vereadores, os membros do legislativo municipal aprovaram com unanimidade a doação de um território para a construção da sede municipal do SESI, localizada no bairro Rondônia (JORNAL NH, 10/10/1975, p. 3)106.

No que concerne à atenção dada pelos membros da burguesia industrial gaúcha e, em especial, hamburguense, ao esporte operário e aos campeonatos de futebol do SESI, resta o questionamento dos motivos subjacentes à retórica do congraçamento. Quais as razões para a difusão da prática desse esporte? Sugiro pensar em três motivações principais: a aparente, a legal e a instrumental.

A motivação aparente se expressa nos discursos oficiais do SESI, de acordo com o texto sobre a entidade (TORRESINI, op. cit.): congregar as diferentes categorias num espírito de lazer e sociabilidade. Essa motivação foi introjetada por alguns jogadores do campeonato, como o próprio Betinho, de acordo com o que vemos no seguinte trecho:

É que na verdade os empresários da época que investiam nos times deles né.

E por que investiam?

106 O projeto original que datava de 1974 tornou-se concreto apenas em 1978, com a abertura oficial do Centro

Para a prática do esporte. Que gostavam, na época. Hoje isso não existe. Hoje, por exemplo, que nem nós aqui, a gente conversando, os empresários do setor coureiro- calçadista, ou metalúrgico, ou de outra área, são muito poucos os que investem, por exemplo, no [clube] Novo Hamburgo e no [clube] Aimoré.

[...]

Mas eles investiam muito nessa questão do lazer, era o campeonato. E com o passar do tempo isso foi se perdendo. Hoje não tem mais esse papel. O próprio SESI não incentiva mais a prática do esporte, que antes era muito forte.

Na rememoração do operário-jogador a motivação do empresariado local para o futebol era a própria prática esportiva e lazer. De fato, as evidências apontam para casos em que donos de empresas participavam dos campeonatos ou que assistiam aos jogos com regularidade, como veremos adiante. Mas isso não explica, por exemplo, quais os motivos para ações mais incisivas das empresas nos campeonatos, formando times para vencer - e, assim como é comum no futebol de fábrica mundial, contratando ex-jogadores107. Em todo caso, há uma motivação mais ampla e de cunho legal.

A partir de 1975, a ditadura regulamentou a construção de equipes de futebol organizados por empresa, pela Lei 6.251. A lei, que tornava mais rigorosa a necessidade de difusão da prática esportiva (já presente no regime desde 1968), previa “uma estrutura básica para a promoção de eventos esportivos localmente, de modo a promover a integração entre esses setores sociais” (ROQUE, 2012, p.13). As fábricas também teriam que arcar com os custos da infraestrutura, recebendo isenção de impostos como contrapartida. A prática existente no Brasil desde o início do século tornou-se oficial, portanto, para o regime e, com isso, aliou- se ao Conselho Nacional de Desportos, fazendo parte da estrutura desportiva do Estado ditatorial108. Assegurado pela lei, o futebol operário recebeu um salto significativo, ao menos no que diz respeito às fontes concernentes à Novo Hamburgo.

A segunda metade da década de 1970 marcou um período de muita difusão esportiva entre os trabalhadores, seja ela promovida por membros do Estado ou por representantes da indústria. Observando todos esses acontecimentos e pensando a partir de uma política repressiva, autoritária e violenta como foi a daquele período, pode-se argumentar que o esporte foi utilizado como ferramenta do Estado para disciplinar mentes e corpos dos operários. Dessa

107 Cioccaro (2014) informa que este mesmo modelo era aplicado por empresários franceses. Alguns casos no

Brasil confirmam essa tradição, não apenas nos anos 1970, mas antes e depois também. Até porque muitos destes jogadores surgiram do futebol de fábrica e, quando não podiam mais jogar pelos clubes, voltavam para as fábricas. Veremos alguns casos como estes mais adiante.

108 Lei 6.251 de outubro de 1975. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6251-8-

forma, nos momentos de lazer, estariam ocupados com atividades corporais e disciplinados pela perspectiva de conciliação de classes a fim de não pensarem em ações “subversivas”109.

Olhando para a difusão do esporte em diferentes países do globo, como na França, por exemplo, perceberemos “o claro interesse dos empresários em promover, através desse esporte, uma identificação clube-empresa, suscitando a crença de que jogadores, trabalhadores e patrões formavam uma grande família” (ANTUNES, 1994, p. 106). O caráter instrumental da difusão do esporte operário e do futebol como carro-chefe apresenta-se, assim, na perspectiva de disciplinarização, mas também de unificação e formação de identidade entre operários de uma mesma fábrica.

É válido também apontar a legitimidade destes campeonatos frente aos atletas que participavam. Na memória de Betinho, por exemplo, a redução dos campeonatos do SESI representa um ponto negativo para a cidade: “O próprio SESI não incentiva mais a prática do esporte”. A força do seu depoimento precisa ser compreendida de outra forma, já que não se trata de um operário sem formação política, mas de um ex-sindicalista e político experiente da cidade.

A instrumentalização do futebol operário também pode ser vista por uma perspectiva mercadológica. Quando jogavam em campeonatos municipais e intermunicipais, os atletas- operários levavam o nome da empresa adiante, numa demonstração de força perante outras fábricas (ANTUNES, 1994). Como apontou Roque (2012, p. 11), o time da fábrica era “um meio de divulgar seus produtos e disseminar uma boa imagem da mesma perante a comunidade”. Vencer era mais do que uma questão de difusão do esporte ou de construção da identidade operária dentro da fábrica.

Nesse sentido, diferentes estratégias foram traçadas, nos anos 1970 em Novo Hamburgo, para a disputa dos campeonatos, para a construção de carreiras profissionais sólidas e para disputas políticas no interior de um regime violento. No primeiro caso, a contratação de operários-jogadores e jogadores-operários110 era uma prática bastante difundida.

109 Antunes (1994, p.105) comenta o debate clássico nesta seara, em que, de um lado, ficam teóricos como Anatol

Rosenfeld, levantando “a possibilidade de que o incentivo seria uma forma de domesticar seus corpos para o trabalho”, e de outro, acadêmicos como Waldenyr Caldas, que rejeitam este argumento, baseados em questões mais complexas, como a própria construção identitária de determinadas fábricas, ou mesmo a disputa mercadológica - o “time” seria a propaganda da empresa.

110 Utilizo as duas expressões com base no trabalho de Roque (2012), em que o “jogador-operário” era o ex-

profissional que, após a aposentadoria dos campos, iria para as fábricas, trabalhar em meio turno como operário e meio turno como jogador da empresa. O “operário-jogador” tinha como precedência a condição de operário, mas como jogava bem futebol, era contratado para a fábrica, podendo se destacar e entrar para times profissionais.

Para discutir esta questão apresento ao leitor e à leitora mais dois personagens que fazem parte deste texto: Osmar e Jaime da Silva.