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5.1 Sindicato dos Sapateiros de Novo Hamburgo: mudanças repletas de permanências

5.1.8 Orlando Müller (1968-1986)

Da trajetória de Orlando pouco saberíamos, não fosse uma lei municipal de 1996, que deu seu nome a uma rua da cidade120, um ano após sua morte. Mesmo assim, temos acesso a seus dados biográficos mais básicos, restando ainda um trabalho a ser realizado sobre esse homem, que assim como tantos outros, participou ativamente de um período complexo da história do trabalho latino-americano.

Orlando nasceu em 1932, no município de Taquara, Rio Grande do Sul.121 Aos sete anos de idade mudou-se para Novo Hamburgo, estabelecendo-se no bairro Guarani. Este é o mesmo bairro em que “Nidi”, personagem do terceiro capítulo, também se fixou quando de sua ida a Novo Hamburgo - ambos mudaram-se em períodos muito próximos. O que unia os dois personagens também era a necessidade de migração para uma região que apresentava um significativo progresso urbano.

Tanto “Nidi” quando Orlando passaram a viver em Novo Hamburgo na região que lhes foi permitida, zona de conflito étnico-racial que, à época, era chamado de “Bairro África”. Quando perguntei a “Nidi” se tinha conhecido o líder sindical, este respondeu-me apenas que sim, “ele se criou aqui também, a gente era amigão!”. Sem dar muitos detalhes e visivelmente direcionando sua fala para outras lembranças que considerava mais importantes, “Nidi” não forneceu muitos pormenores de seu relacionamento com Orlando. Tal fato ajuda a entender a primeira movimentação migratória para a cidade ainda nos anos 1940.

De acordo com o trabalho de Mascarenhas (1956), até o ano de 1955, 18% das pessoas que migraram para Novo Hamburgo eram provenientes de Taquara e região. Se considerarmos a totalidade de sua pesquisa, quase 60% da população hamburguense era migrante, vinda do interior do estado a procura de emprego. O período coincide com o estudado por Schneider

119 As contas do sindicato foram congeladas, algumas pressões políticas executadas, mas nenhuma intervenção

foi realizada naquela entidade (SAUL, 1982).

120 Lei Municipal 76/96, que institui “a Rua 25 do loteamento Vila Torres” como “Rua Orlando Muller”. As

informações sobre Orlando antes de sua entrada no sindicato estão disponíveis no referido documento, na seção “histórico”.

121 Cidade localizada a 60 km de Novo Hamburgo. Um município quase essencialmente rural a esta época,

(1996), trabalho que aponta o primeiro afluxo migratório em direção a Novo Hamburgo, por conta das ofertas de emprego. Este ponto nos induz a pensar que a chegada de Orlando e sua família no município, no final dos anos 1930, estava ligada com a necessidade de trabalho. Ou seja, Orlando não parece ter vindo de uma família com muitas posses.

A trajetória de Orlando não difere de outras de crianças brancas e pobres daquela época. Aos 13 anos, em 1945, ingressou no mundo do trabalho como sapateiro na fábrica Oscar Kraemer, “na função de passador de cola”, onde trabalhou até 1952. Neste ano passou a trabalhar na Calçados Grande Gala.

A trajetória do sindicalista hamburguense poderia ter, facilmente, se entrecruzado com a de outros operários também presentes nesta dissertação. Como a de Alba, por exemplo. Em seu depoimento, a costureira afirmou ter trabalhado por duas vezes “no Ruy Chaves” - o nome da fábrica, em nenhum momento foi dito pela entrevistada, mas referia-se à empresa Calçados Grande Gala, talvez o principal nome dos calçados para exportação no Rio Grande do Sul. Inclusive, em termos de cronologia, apesar de não haver indícios concretos, não podemos descartar a atuação de Alba junto à fábrica no mesmo período em que Orlando ali trabalhou.

Não sabemos como Orlando conheceu o sindicato. Ainda que saibamos que se tornou parte do movimento operário em 1960, quando foi eleito Delegado Sindical, não conhecemos os detalhes dessa iniciação. Desde o final da década de 1940 o sindicato realizava campanhas de sindicalização (SAUL, 1982). É possível que a greve de 1960 e a reivindicação por armazéns populares tenha chamado a atenção de Orlando, que viu no sindicato um espaço de atuação política mais ampla.

Mesmo que não tenha sido a greve o estopim de tal interesse, ele parece ter tomado gosto pela atuação nos meandros da política sindical, já que em 1964 tornou-se membro oficial da entidade, como Secretário Geral, até chegar à Presidência em 1968, para sair 18 anos depois. Ao todo, Orlando permaneceu como membro da direção executiva do sindicato por 22 anos. Cabe assinalar que a pertença étnica de Orlando ao grupo hegemônico do sindicato pode ter lhe favorecido à frente da entidade. Desde o surgimento, a entidade vinha sendo administrada por homens brancos de origem alemã. Lichtler, Blum, Rosa (ambos, apesar do nome, tinham traços europeus e eram conhecidos como “alemães” entre os contemporâneos). Esse elemento parece ter importância em um terreno onde a construção social é influenciada pelos pertencimentos raciais e étnicos.

Se considerarmos as divisões políticas que o sindicato vinha vivenciando desde a época de Rudor Blumm, perceberemos que a trajetória de Orlando é, no mínimo, curiosa. Em 1960, quando se tornou delegado sindical na fábrica “Calçados Grande Gala”, o presidente do

sindicato era Alcides Rosa. Alcides, como vimos, alinhava-se politicamente com o trabalhismo varguista. Orlando fazia parte deste grupo político ou, pelo menos, estava sendo inserido nos bastidores da política local quando, em 1963, outro grupo, opositor aos trabalhistas, passou a dirigir o sindicato. Orlando permaneceu na entidade, tornando-se Secretário Geral do STIC- NH em 1964.

É claro, poderá pensar a/o leitora/o, o simples fato de Orlando ser delegado sindical no período em que Alcides presidia a entidade não faz dele um agente político alinhado com aquele grupo - era comum, por exemplo, que certos delegados sindicais fizessem oposição à direção estabelecida. Contudo, alguns indícios nos levam a pensar na proximidade de Orlando com o trabalhismo getulista. A entrevista de Ederson, referida no primeiro capítulo, aborda essa questão. De acordo com o entrevistado:

Quando a gente [CUT] chegou aqui [1986], o Cláudio [viu que] tinha as fotos do Getúlio né...

Tinha as fotos do Getúlio aqui no sindicato?

Tinha, tinha! Por que aqui tinha uma linha getulista né, de esquerda, entre aspas, pra época, e quando deu o golpe, sim, quando deu o golpe os caras tiveram que esconder tudo que tinha que se identificava com alguma coisa do trabalhismo ou de esquerda né, coisa do “comunismo”.

Seria pouco provável supor que as imagens de Getúlio, caras a certos sindicatos que, por tradição, o veneravam, eram apenas resquícios de um período antigo. Também seria pouco provável que Norci Rosa fosse um exímio getulista. Tendo a crer que a fala de Ederson, pouco precisa e baseada na memória coletiva que circunda o sindicato, mantém relação com a concepção de “populismo” que o “novo” sindicalismo atribuiu aos “velhos” - já abordada no primeiro capítulo. De toda forma, não é menos importante a informação de que havia imagens de Vargas escondidas na sede da entidade. Se essas imagens realmente existiram e permaneceram no sindicato por, pelo menos, 22 anos (!) é fácil supor que Orlando Müller, apesar de ser presidente do sindicato num período anti-getulista, minimamente respeitava o “velho” presidente, mantendo seus retratos no lugar.

No início da década de 1960 a lembrança do governo varguista era evocada a cada ação política do presidente João Goulart, deposto ilegalmente em 1964. Após o golpe seria quase impossível que um sindicato de tradição getulista mantivesse sua gestão intacta. E no entanto, mesmo com as idas e vindas de gestões varguistas no sindicato dos sapateiros de Novo Hamburgo não houve intervenções. Claro que ponto importante foi a participação do MSD e de Norci Rosa.

Apoiado pelos próprios agentes das intervenções, Norci representava um grupo político que lucrou com a ilegalidade daquele ano. Neste jogo, Orlando, que de delegado sindical em 1960, passou a presidente do Sindicato dos Sapateiros em 1968. Mostrou-se então muito hábil e soube se adequar aos novos ventos. Membro da gestão getulista de Alcides Rosa, Orlando adaptou-se e permaneceu na gestão de Norci. Essa maleabilidade lhe permitia ficar “à terceira margem” das disputas políticas: ora se adequava ao modelo trabalhista, ora vinculava-se ao MSD.

O conflito entre o MSD e os sapateiros Nélson de Sá e Rancheirinho provavelmente gerou as já mencionadas denúncias, que resultaram nas fugas destes militantes e no abandono das disputas no sindicato até a década de 1980. De 1968 até 1986 passaram-se quase 20 anos sem que nenhuma chapa contrariasse o status quo, e Orlando Müller tornou-se presidente sem nenhuma oposição em épocas eleitorais - cabe lembrar que, de acordo com o estatuto da entidade, as eleições deveriam ocorrer de três em três anos. Alguns ainda poderiam supor que esta aparente calmaria estaria relacionada com a repressão aos opositores. De fato, não se pode descartar essa hipótese. O medo que Orlando tinha de intervenções do Ministério do Trabalho (e que veremos mais adiante) indica um estado de vigilância dos órgãos governamentais sobre os sindicatos deste município, assim como do restante do país. Outrossim, os acontecimentos de 1968, quando da eleição e da acusação de “comunistas” aos opositores - discutidos no segundo capítulo, podem ter gerado um certo receio. Mas ainda uma terceira possibilidade pode ajudar na compreensão da tradição sindical em Novo Hamburgo.

Observemos, primeiramente, a tabela construída com base nas informações apresentadas até aqui dos presidentes do STIC-NH desde 1933:

TABELA 5: PRESIDENTES DO STIC-NH ENTRE 1933 E 1986

PERÍODO NOME

1933-1934 Augusto “Fera” Lichtler

1934-1935 ?122

1935-1944 João Abílio Becker

1946-1950 Sílvio Longo

122 Apesar de termos os nomes que compunham a diretoria neste período, não é possível confirmar o nome do

1951-1952 Rodolfo Terra

1953 - 1958 Rudor Blumm

1959 - 1962 Alcides Rosa

1963-1968 Norci Rosa

1968 - 1986 Orlando Müller

Fonte: Saul (1982); Oliveira (1987); Lichtler (1996). Elaborada pelo autor.

Observando-se o tempo de mandato de cada presidente, veremos que há uma certa regularidade. Apenas João Becker permaneceu na presidência da direção sindical por mais de 5 anos -admite-se, ainda, um possível equívoco nos dados deste período, já que não constam outros documentos que comprovem a permanência de Becker nas outras gestões.. Aliás, dos 8 presidentes até 1968, apenas dois excederam o período de um mandato, mais por uma questão burocrática de troca de funções do que por permanência no poder.

A legislação trabalhista vigente desde 1946 previa que a reeleição para cargos no sindicato ocorressem apenas para ⅓ da diretoria. Ou seja, ⅔ precisariam, impreterivelmente, afastar-se da direção oficial. O texto da CLT123 que vigorou até 1955 impedia reeleições de presidentes e diretorias sindicais. Nesses termos, somente após 1955 é que diretorias puderam ser reeleitas, sem limites. Com esta alteração, Rudor Blumm, que já estava no cargo de presidente em 1955, pôde se reeleger, até perder para Alcides Rosa no final dos anos 1950.

Mas isso não quer dizer que o mesmo grupo não tenha dirigido o sindicato por muitos anos. Rodolpho Terra, presente no movimento operário desde o final da década de 1920, permaneceu nos bastidores da entidade até, pelo menos, 1951, quando assumiu o cargo de presidente. Portanto, vinte anos com o mesmo grupo! É claro que isso não significa que, durante todo esse tempo, outros grupos não tenham surgido e tensionado a estrutura política do sindicato. Mas tais dados nos induzem a pensar que a política sindical, pelo menos em Novo Hamburgo, se manteve mais ou menos estável, com poucas oscilações.

No que diz respeito ao caso de Orlando, foi membro da estrutura da direção sindical desde 1960 e permaneceu até 1986. Foram 22 anos na direção sindicato, 26 se contarmos seu período como delegado. Como veremos adiante, neste intervalo de tempo, Orlando dialogou

123 Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-

com representantes de muitos espectros políticos, dentre eles os próprios opositores que o retiraram da entidade na década de 1980.

Quero dizer com tudo isso, que a tradição do STIC-NH aparenta, pelo menos até onde foi possível averiguar, uma tendência maior à permanência do que à mudança. Isso não significa que não houvesse oposição às direções estabelecidas, ou que jogos de poder não fossem jogados entre os principais nomes políticos do sindicato e até fora dele, mas que havia um certo “acordo” que envolvia as disputas por poder.

Durante a ditadura, sobretudo a partir de 1968, quando a direção apoiada pelo MSD percebeu um perigo real de perder posição, a repressão agiu para a manutenção da nominata estabelecida que agradava aos setores empresariais locais e regionais. Então é importante levar em conta que a repressão atuava para garantir a posse da chapa “aceitável”. Todavia, aliadas à repressão, as estratégias políticas do próprio Orlando Müller colaboraram para a manutenção de seu poder, incorporando certos grupos quando lhe convinha, afastando-os quando o “perigo” se aproximava. Orlando atuou dessa forma até quando foi possível.