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3.1 Narradores de suas histórias: apresentando personagens

3.1.2 A costureira: “Trabalho é meu nome”

IMAGEM 2: ALBA KAYSER

Foto: do autor (2018)

Meu nome é Alba Kayzer, eu nasci em São José do Hortêncio, município do Caí, na época era, agora não é mais porque … tenho 74 anos. Vim pra Novo Hamburgo com 7 anos de idade, quando meu pai comprou esse terreno aqui e a gente mudou pra cá, do Caí pra cá. Eu cresci aqui.

Alba Kayser nasceu em 1944, na região de São José do Hortêncio, antes pertencente ao município de São Sebastião do Caí66. Migrou para Novo Hamburgo com seus pais quando tinha 7 anos; a família buscou acolhimento na casa de um parente próximo, que já havia se mudado anos antes e que forneceu as bases para a consolidação dessa migração. Este dispositivo de “recepção” foi percebido em outra entrevista realizada para a pesquisa, mas também em outros trabalhos como o de Weber (2004) mostrando ser uma forma comum a processos migratórios internos. Seus pais trabalharam em uma olaria, próxima à sua casa - local onde vive até hoje.

Das várias questões a serem pontuadas em sua entrevista, e que pretendo analisar nas páginas que virão, a primeira a ser partilhada com a/o leitora/o é a desconfiança de Alba com minha entrevista. Isso teve interferência, sobretudo, na forma como a depoente narrou o que sua memória trouxe à tona.

A desconfiança de Alba era com o fato dessa entrevista poder gerar alguma produção publicitária para o Partido dos Trabalhadores, sendo que se tratava de um ano eleitoral. Terminada a entrevista, com o gravador já desligado, Alba confessou, um tanto sem jeito, sua desconfiança e pediu-me sinceridade ao transcrever suas palavras e ao analisar sua memória. Não foi à toa que esta desconfiança surgiu. A mediação travada para que esta entrevista acontecesse foi realizada por Betinho, nosso já conhecido personagem. Alba é tia de Betinho,

66 Município gaúcho emancipado em 1875, caracteriza-se economicamente pela produção agrícola, reconhecido

nacionalmente como a “Capital da Bergamota (tangerina)”. No início do século XIX, antes de sua emancipação, recebeu imigrantes portugueses e, mais tarde, algumas levas de famílias germânicas.

mas isso não significa que sua relação com o sindicato tenha sido próxima, ou mesmo que sua aproximação com o grupo cutista que dirige o sindicato desde 1986 seja fluída.

Costureira desde a adolescência, a sapateira ainda se mantém ativa no mundo do trabalho, preparando calçados em um ateliê improvisado que construiu em seu terreno. Dos pontos que mais chamaram a atenção no andamento de sua fala, o principal é o seu amor pela produção de calçado aliado à necessidade de afirmar o gosto pelo trabalho.

Magalhães (op. cit., p.80), referindo-se à formação da identidade hamburguense, chegou mesmo a afirmar que “a representação construída e reforçada no cotidiano, a partir de sua emancipação como município, respalda-se no ‘tripé’ trabalho, ordem e progresso”. Por isso não é de todo estranho que Alba precise reforçar o amor pelo trabalho.

Em sua entrevista, assim como em outras que realizei e que apresentarei adiante, a desconfiança com a pesquisa e sua relação com “sindicatos” foi recorrente. Em diferentes momentos, o sindicato apareceu como órgão importante, mas que não era ligado à vida quotidiana da depoente. Talvez de fato não o fosse, mas a agilidade narrativa em distanciar-se dele, enquanto órgão reivindicativo, revela a preocupação de Alba com a sua imagem, e sua autoconstrução de trabalhadora.

Quando me contou sobre as suas primeiras experiências laborais, Alba já começou a dar indícios dessa autoafirmação como amante do trabalho:

E aí eu estudei. Tem o [colégio] Caldas Júnior aqui, nem tinha, estavam construindo o colégio quando nós viemos, aí no ano seguinte abriu e eu entrei. Aí eu fiz 5 anos ali, fechei o primário, depois fui estudar no [colégio] Santa Catarina. Ganhei uma bolsa de estudos da prefeitura na época [...] [Eu] não lembro de onde nós vinha… entramos num atelier de costura que era daquela firma que é do Fredolino Hack, [...] enorme, - minha cunhada e minha irmã trabalharam anos ali,- eles tinham um atelier do lado da firma, e a gente entrou lá, pra conversar, porque a outra conhecia ela. Quando eu botei os olhos naquela mulher costurando aquele calçado, eu disse: “é isso aí que eu quero!”. Eu chutei o estudo pro alto - era pra ser professora, eu tava no Ginásio - não quis mais. E fui trabalhar no calçado, de costureira.

Sabemos que o universo de trabalhos para mulheres em finais da década de 1950 não era tão amplo e ser professora era uma das soluções para mulheres brancas que desejavam (ou precisavam) trabalhar. Em verdade o papel social de professora refletia, não apenas no Brasil, uma determinada profissão do universo feminino, associada ao universo materno (LOURO, 1997). De acordo com o trabalho de James (2004, p.299), na cidade de Berisso (Argentina) das décadas de 1940 e 1950, uma personagem importante de seu estudo teria se recusado a ministrar aulas, ainda que fosse “uma mulher inteligente”. Na narrativa de sua entrevistada, a proposta teria surgido quando de seu interesse pelos sindicatos. Um interlocutor então teria lhe dito:

“Porque não se envolve com escolas ou em alguma outra coisa, não em política, não em sindicatos? A senhora deveria deixar esse tipo de coisa para os homens. A senhora gosta de crianças, eu acho, porque não se dedica a escolas?”.

Em todo caso, tomadas estas informações de Alba como dados históricos mais ou menos precisos, ser professora poderia ter lhe rendido uma vida relativamente confortável. É claro que sua posição étnico-racial - branca, de origem germânica - lhe favorecia àquela época.

Este depoimento, que revela um sistema de produção comum ao período (fábrica + manufatura), também indica que algo influenciou Alba a “chutar o estudo pro alto” e a “ir trabalhar no calçado, de costureira”. Neste ponto, podemos assumir ao menos duas suposições razoavelmente críveis quanto a ela ter aberto mão dos estudos: a primeira, de que não se alinhava às normativas do magistério do período. Em diferentes momentos, a entrevistada disse ser “desconfiada” ou ainda, orgulhosa de “nunca [ter] baixado a cabeça pra patrão”, atitudes que poderiam estar em desacordo com a submissão feminina esperada. Todavia ao que tudo indica, não podemos descartar a ideia de que a narrativa dessa “opção” foi, no fim das contas, uma forma de dar sentido ao seu passado, legitimando uma escolha que a necessidade impôs. Como veremos nos exemplos de outros depoentes, largar os estudos para trabalhar no calçado não era uma atitude incomum no município estudado, tampouco no país das décadas de 1950 e 1960. É possível entender o peso que o trabalho tem em sua vida até hoje. Em suas palavras: “Como diz minha filha: trabalho é meu nome”.

A narrativa de Alba também se caracterizou como uma das histórias de vida mais atribuladas dentre as que tive acesso. Mulher e mãe de dois filhos (à época), cuidando de sua mãe doente, solteira e trabalhadora em tempo integral: algumas características de Alba nos apontam, em função dos papéis e hierarquias de gênero vigentes em nossa sociedade, para dificuldades superiores àquelas que homens carregavam em situações semelhantes - se é que homens passavam por situações semelhantes! Por isso, em diversos momentos, a entrevista tornou-se emocionante, ao passo que, nesses instantes, a entrevistada terminava dizendo: “mas era muito bom naquela época”. Ecléa Bosi (op. cit., 480) justificou essa necessidade de enaltecimento do passado quando narrado por operários idosos como algo incorporado ao “sistema nervoso do trabalhador”, introjetado em sua sensibilidade. Ou seja: é investido em seu passado e em seu trabalho uma “carga de significação e de valor talvez mais forte do que a atribuída no tempo da ação. [...] A memória vem acompanhada de uma valorização do trabalho evocado e de uma [...] estranheza em face de certos costumes atuais”.

Como veremos ao longo das próximas páginas, ao passo que o trabalho se tornou central na narrativa de Alba, a tensão entre ela e o sindicato tomou um sentido ambíguo, que será

melhor exemplificado e explorado adiante. A mesma ambiguidade esteve presente na entrevista de nosso próximo personagem.