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CAPITULO 2 – SOBRE AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS

2.2 A fala da criança, o dado linguístico e seu recorte

Nas proposições que venho elaborando sobre minhas escolhas metodológicas, um objeto de estudo que contemple os traços de tropeços, as inconsistências e as indeterminações merece um delineamento que comporte esses traços, já que o interesse é sobre a língua como acontecimento de linguagem na clínica com crianças. Também, nesse ponto, o paradoxo que pode caracterizar a impossibilidade de se trabalhar com a Linguística e a Psicanálise se apresenta quase de modo incontestável, pois é com a fala da criança – no contexto de minha experiência de linguagem na clínica – que se trabalha.

Para a Linguística, a fala é uma consistência no sentido de possibilitar as ocorrências das regularidades da língua nas relações entre os indivíduos. Em contraponto, para a Psicanálise, a fala tem função de comportar as manifestações do inconsciente, o que somente é possível no corte, no equívoco, na opacidade e nas variadas formações do inconsciente como os chistes e os atos falhos. Ainda, para a Psicanálise, tudo isso que é descontínuo, que causa embaraço ao ouvinte e ao falante, tem um funcionamento e que é justamente o funcionamento distintivo dos significantes na língua. Esta, em Saussure (1916/1995), dentre outras maneiras, pode ser concebida como herança cultural e, consequentemente, a fala torna- se uma condição individual a partir da apropriação que o falante faz de parte da língua. Assim, a fala se sustenta na oposição dos signos linguísticos, envolvendo uma articulação física, fisiológica e psíquica em que o signo linguístico recorta a massa amorfa do pensamento permitindo, dessa maneira, a exteriorização, a fala e seu circuito de ocorrência. Todavia, a língua que comparece na clínica, não é individual (particular). Essa língua é singular e, por isso, não pode ser apreendida no recorte de um dado de fala: somente pode ser suposta nos acontecimentos de linguagem nessa clínica. Desse modo, o dado linguístico é a informação que se tem sobre a existência de enigmas na fala, melhor dizendo, sobre suas inconsistências e indeterminações.

Considerando isso, a fala da criança, o dado linguístico e seu recorte são tomados como empiria e sintagmas concernentes a uma pesquisa sobre a linguagem da criança, no campo dos Estudos Linguísticos. Porém, como estou trabalhando dentro do limite da indeterminação e da certeza, do contraditório e da inconsistência, esses sintagmas nominais (pois suas funções são nomear um objeto sob diferentes aspectos) são meramente triviais, porque tendem à completude, melhor dizendo, se limitam ao comum e generalizável do conhecimento linguístico. Faz-se necessário, então, torná-los paradoxais para que sejam condizentes com o inconsciente e a possibilidade de um sujeito em constituição.

Inicialmente, faço como nos ensinou Saussure (1916/1995): parto de meu ponto de vista sobre a língua e a linguagem da criança. Nesse sentido, interessa-me os níveis de linguagem que permitem a escuta do funcionamento da língua em sua lógica distintiva que suporta o impasse nessas ocorrências: o impasse em sua sintaxe, em sua semântica, em seus enunciados, em seu funcionamento fonológico, na enunciação, pois esses impasses constrangem os agentes do Outro diante da criança e lhes impõe imperativos como o “Ele não

se comunica”, dito sobre Cadu. Contudo, tomar esses impasses como dado linguístico, por meio de um recorte, implica uma definição paradoxal do que é dado linguístico como aquilo que mostra as falhas nesse circuito de linguagem.

Primeiramente, fiz como todo pesquisador da Linguística que trabalha com falas: registrei o objeto de estudo gravando os diálogos entre eu e a criança, portanto, colocando o gravador entre nós, já limitando nossa experiência de linguagem. Como abordei anteriormente, sendo o encontro na clínica psicanalítica de fato um (des)encontro, esse gravador passa a ter função de “resolver esse problema” preenchendo a distância entre a criança e a analista, portanto, ligando falante e ouvinte. Assim, seria possível escutar de modo mais preciso possível o que era dito nas sessões.

Na história da Linguística o advento do gravador tornou os estudos da fala ilimitados e, o investigador, no próprio ato da gravação delimita seu dado linguístico: uma ou outra ocorrência da língua pertinentes aos objetivos de seu estudo (só essa escolha já tende a diminuir o desencontro). Também, são inúmeros os bancos de dados de fala que podem ser alçados a objeto de pesquisa, ocorrendo um isolamento desse dado que permitiria apenas a análise descritiva dos fatos de linguagem, pois o que é da ordem da enunciação ou do discurso está perdido na gravação. Desse modo, tem-se uma prevalência da sincronia ficando o diacrônico fora dessa análise. Todavia, o funcionamento da língua é efeito desses dois aspectos e, também, há que se ponderar as relações diacrônicas perdidas na gravação.

Pois então, a gravação um dos atos que dão origem ao dado linguístico, não o define, em meu ponto de vista. Exemplificando: de uma gravação passa-se a audição, da audição passa-se à transcrição por meio dos mais variados sinais e símbolos fonéticos e fonológicos que vão depender da área de estudo, dessa transcrição passa-se a uma descrição dos elementos linguísticos nos diferentes níveis da língua, dessa descrição passa-se à análise (esta feita com base em um quadro hermenêutico), essa análise irá gerar uma interpretação que resulta em um sentido para aquele fato de linguagem, se não um sentido, pelo menos uma constatação dessa ocorrência. Assim, um dado linguístico seria esse sentido último, ou seja, aquilo que tem

sentido. Entretanto, o ponto a ser resolvido seria: e quando não é possível um sentido? Isso porque em se tratando do inconsciente e da incompletude da linguagem é preciso tomar o não sentido como dado linguístico. Em Cadu, não fazia sentido, inicialmente, ele não se comunicar e, ao mesmo tempo, falar de modo tão insistente.

Em relação à delimitação do dado linguístico, também é preciso não desconsiderar aquilo que se perde ao longo desse percurso em uma gravação (provavelmente, o mesmo que se perdeu ao se constatar que o menino não se comunicava). De fato, dependendo da área, como a teoria gerativa, são as inconsistências e os inequívocos o que se perde (deixa-se intencionalmente de fora do recorte).

Com base nisso que foi exposto, o estatuto paradoxal do dado linguístico em um estudo que articula linguagem e inconsciente é o de ser definido por sua incompletude, pela suspensão de sentido nessa terceira margem onde o desencadeamento da cadeia significante está enodado de tal forma que é suspenso e, nessa cadeia, prevalece uma espécie de retorno sobre si mesma. Vale ressaltar, sempre, que esse dado é irrepetível, instaurando, com isso, nos Estudos Linguísticos, a lógica do um a um da clínica psicanalítica: um caso leva a outro caso e, da mesma forma, uma ocorrência de língua desencadeia outra devendo, por isso, se tomada como acontecimento singular nessa experiência de linguagem.

Ainda considerando as gravações como delimitadoras do dado linguístico, nesta pesquisa a contradição está no fato de que aquilo que ficou de fora dessas gravações – que denominei de inaudível ao gravador, momentos sem possibilidade, para mim, de transcrição -, é o lugar de inscrição da hiância causativa desse sujeito em vias de se constituir, de seu deslocamento de uma estrutura da língua que inscrevia o menino em posição solitária, dificultando o laço social, para uma possibilidade de sua inscrição no discurso. Certamente, é a clínica psicanalítica atualizando o dado linguístico, possibilitando aos Estudos Linguísticos dizer sobre o inconsciente descontínuo e sua impossibilidade. Mas, não apenas como dado linguístico, porque esse inaudível ao gravador é importante fundamento do caso clínico. Por ora, pode-se colocar que nessa ausência de fala deu-se esse encontro entre linguagem e inconsciente, e isto será retomado no momento da análise clínica e linguística, momento em que o pequeno Cadu (e sua língua) dirá sobre sua verdade como sujeito em constituição.

Nesta pesquisa, optei pela gravação sonora de sessões clínicas para que fosse possível analisar o funcionamento das falas da criança depois de transcritas. Com isso, essas gravações mostrariam de modo literal um processo terapêutico possibilitando explicar como as leis de funcionamento da língua se manifestavam na fala da criança em impasse subjetivo,

considerando o que esse funcionamento poderia dizer de sua constituição estrutural em um percurso recortado de três anos aproximados de tratamento. Porém, isto é o trivial por ser coerente demais com o que se espera de uma analise linguística e com a busca de um objeto de investigação completo. Em uma busca como essa todos os elementos em jogo na questão da constituição do sujeito e da linguagem da criança ficariam de fora, como as especificidades da linguagem da criança, o campo do Outro, a transferência (melhor dizendo, seu efeito), o impasse subjetivo, a própria criança (como corpo pulsional), o cenário enunciativo, o histórico e o cultural constitutivo dessa criança, os atos da criança (atos de linguagem, o brincar, o manuseio de objetos empíricos) e da analista. Diante disso, nesta pesquisa, o dado linguístico deve contemplar esses aspectos, o que o torna irrecortável, impossível de recortar, daí ter que ser narrado.