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CAPÍTULO 5 – A AMARRAÇÃO SINTHOMÁTICA: AS CERZIDURAS

5.2 Reforçando o funcionamento da língua como a amarração sinthomática

sinthomática

No paradoxo constitutivo de Cadu, sua fala que não servia para que ele se comunicasse com as pessoas em seu entorno, chegava aos ouvidos de modo insistente e repetitivo. Em seu percurso, entre ele e o outro, havia uma distância preenchida por um echo: a exata distância entre sujeito e Outro, na proximidade possível a Cadu, e que era delimitada pela repetição verbal e sonora em sua fala. Assim, na cadeia de signos de sua fala algo parecia ligá-lo ao Outro, pois havia uma direção disso que ecoava e se expandia como apelo e, desse modo, dando à fala de Cadu a função de carretel, de ligar o sujeito a uma possibilidade de causa. Novamente, justifica-se o estatuto de amarração sinthomática aos modos de Cadu fazer com a língua e com a linguagem: como o quarto elemento de sua estrutura psíquica, de seu suporte como sujeito do inconsciente em estruturação. As tentativas dele, em minha versão de seu mito constitutivo, foram nomeadas com base nos modos de sua língua funcionar. Porém, é preciso não reduzir essa amarração a uma descrição linguística. Mas, sim

compreender em que topos dessa cadeia, onde se planifica seu percurso, e também em seus entremeios, fez-se possível ao pequeno ascender como sujeito do inconsciente em constituição.

Se o verbo insistente não lhe servia para ele se comunicar porque ele insistia em falar, e, além de insistir, por que persistia, por que no jogo da transferência, era nessa fala que uma espécie de saber suposto que caía? E mais ainda: Cadu per-sistia em não se isolar em seu Um solitário e sua ex-sistência é movimento marcado por intensidades que o conduz a uma aproximação ao Outro, pois insistir é persistir para Cadu.

Portanto, a amarração sinthomática de Cadu se caracteriza pelo ato de linguagem que é o repetir, o tornar a fazer em circunstâncias outras, por meio de algo que lhe é singular e é insiste. Desse modo, passo, agora, a apresentar os modos insistentes pelos quais Cadu falava (e fala), colocando sua língua em funcionamento.

O primeiro desses modos é a ecolalia. Nesta, a fala é ecoada indefinidamente sem um deslocamento metonímico e, por vezes, há também o metafórico, prejudicando tanto a associação como as substituições na cadeia. Mas, lembrando Jakobson, um desses funcionamentos pode suprir a dificuldade com o outro.

Há uma importante observação a ser feita sobre esse funcionamento ecolálico no que tange às crianças com possibilidade de autismo e crianças com possibilidade de psicose. Como para as primeiras há a não constatação da alteridade, a primazia é em ecoar não as palavras do Outro, mas os blocos maciços de signos (impossível de furo) que circundam essas crianças, vindos de todos os não semelhantes (pois não haveria identificação no autismo do tipo A não é A). Por exemplo, viriam de revistas, da televisão, escutadas ou lidas aleatoriamente e de modo automático. Nessas ocorrências, não seria possível demarcar de quem viria essa voz, já que não haveria um alguém na posição primordial, e, ainda, nem mesmo na posição de espelhamento76. Por isso, essas crianças “não se comunicam”, mesmo que falem por meio de sua ecolalia maciça, sem furo. Além do mais, é comum crianças em posição autística ecoarem listas de números telefônicos, dizeres de propagandas de televisão, mas em falas em que não seria possível identificar a palavra de alguém em específico, pois o Outro é barrado: o sujeito seria, portanto, todo gozo, e os signos ecoados seriam signos de gozo do sujeito.

76 O quantificador Todos, na Língua Portuguesa, tem, na verdade, uma dimensão de absoluta indeterminação,

pois todos pode ser qualquer um ou qualquer coisa dentro de um universo enunciativo, sendo preciso um dêixis para determiná-lo.

Por outro lado, em crianças, em possibilidade de psicose, os blocos sintáticos, semânticos e prosódicos ecoados seriam mais específicos e trariam, por associação e substituição, a palavra de seus semelhantes e até mesmo daquele que estaria respondendo pela posição de Outro primordial, podendo-se constatar uma espécie de gozo do Outro nas palavras ecoadas pela criança angustiada. Ou seja, na possibilidade de psicose, as palavras ecoadas seriam signos do gozo do Outro. Sem o reconhecimento desse Outro como faltoso trata-se, nessa relação, da impossibilidade de inscrição da falta na criança, pois o Outro não é faltoso já que a criança encobre sua falta, daí o gozo do Outro nessa condição de psicose em que não há nem Outro barrado e nem sujeito barrado, portanto, não há inscrição da metáfora paterna. Refém desse gozo, a criança retém suas palavras, porque não há a inscrição da hiância causativa, assim como não há distinção entre sujeito e Outro, estabelecendo-se, então, não a ecolalia maciça do autismo, mas uma ecolalia alienante.

Porém, em nenhum dos dois modos, é possível o diálogo entre a criança e seus semelhantes, em termos de posição dialógica (DE LEMOS, 2002), pois a tomada da fala do outro não sofreria trocas metafóricas, não haveria deslocamento de sentidos e nem continuidade na cadeia de linguagem. Todavia, em termos de dialética, na alienação haveria uma tentativa de estabelecer laço, pois de todo modo, já se trata de uma inscrição no discurso do Outro. Nesse sentido, a ascensão a uma amarração sinthomática pelos modos da ecolalia alienante – um funcionamento psicótico – seria uma tentativa de enfretamento do sujeito diante de sua resolução autística. Mesmo assim, essa escolha é um impasse em sua estruturação e isso merece que se considere que um impasse de fato pode mostrar o pequeno ser fazendo-se com sua possibilidade estrutural.

Sobre a ecolalia, Oliveira (2001) se pergunta: Quem fala nessa voz? Essa autora parte da importante diferenciação entre as modalidades do repetir e a especularidade, tal como definida por De Lemos (1985), esta como incorporação da fala do adulto pela criança (o espelhamento) e a ecolalia, como uma repetição estranha (e familiar) na fala da criança. Mas, ambas, para a autora, são dependentes da fala do outro:

Na especularidade, a criança incorpora fragmentos da fala do outro – fragmentos que retornam para uma cadeia/texto – e antecipa-se ali como falante. Esse movimento entre falas – entre todo e parte – é decisivo no que diz respeito à aquisição da linguagem e, consequentemente, ao processo de subjetivação. O outro/falante, ao incorporar os fragmentos produzidos pela criança em seu dizer os reconhece como fala e a criança como falante. Não é o que ocorre no caso da repetição patológica [a ecolalia] em que, via de regra, o outro não acolhe as produções da criança como falas e nem esta

como falante. Como se vê, há diferenças a considerar entre especularidade e ecolalia. (OLIVEIRA, 2001, p.13)

De fato, há diferenças entre esses dois modos de funcionamento da fala, contudo, existe uma diferenciação que não dependeria apenas do outro, dada a dialética entre sujeito e Outro já estabelecendo uma relação com a constituição do sujeito e sua relação com a língua. A elaboração de Oliveira (2001) cai no mesmo engodo de Kanner, situando a ecolalia apenas em termos patológicos, como fala sintomática. No entanto, é preciso ir além desse particular dos sintomas e reconhecer a função desse modo do pequeno falante usar a língua, no processo de sua constituição estrutural.

Ao se diferenciar a ecolalia em diferentes possibilidades de estruturação, na psicose parece haver, sim, o não reconhecimento do outro em relação à criança como desejante, mas há, também, o gozo operante na criança em estar nessa posição de objeto de desejo, frente à provável não inscrição da metáfora paterna. Já para os autismos, não haveria essa possibilidade de reconhecimento do Outro, pois o sujeito em posição autística não reconhece plenamente esse outro no sentido de conferir-lhe estatuto constitutivo. Desse modo, tanto na psicose como no autismo, o Outro não acolhe a fala da criança, e isto colabora com algo do tipo “Ele não se comunica”. Porém, é possível que a insistência da criança em ecoar as palavras tenha função de instaurar essa condição de falante: de fazer chegar, a duras penas, suas palavras até o outro.

Diante disso, pretendo dar à ecolalia a ênfase narcísica que lhe cabe: Eco, rejeitada por Narciso, goza na própria voz. Dessa maneira, há um valor de objeto pulsional e parcial nesse funcionamento de linguagem, pois a palavra da criança retornaria sobre o próprio corpo – já que não tem em nenhum dos casos uma demanda total ao Outro e nem resposta à sua demanda – como tentativa desse sujeito em constituição instaurar a falta que lhe seria constitutiva. Essa palavra retornando sobre si teria efeito de corte, de significante, de onde cairia seu objeto causa de desejo. Então, sendo possível lhe conferir estatuto de amarração sinthomática pelos resíduos de Simbólico que “perfurado” pelo Real retornariam sobre esse Real, fazendo contorno a isso que é incontornável.

Ainda com Oliveira (2001), a ecolalia é uma fala que não comunica. Isto, que a autora aborda em seu trabalho, é fundamental, pois, na clínica é um dos principais motivos de encaminhamento para tratamento de crianças em impasse subjetivo e que são atadas a um diagnóstico de autismo, e vem desde Kanner (1943/1968). Dessa forma, toda criança que não se comunica seria autista, estaria, portanto, fadada ao isolamento do Um. Todavia, é preciso

questionar o que é comunicar e que, em termos de inconsciente, o circuito em jogo não é o da comunicação do tipo um locutor, uma mensagem e um interlocutor. Esse circuito interessa para as formas generalizantes dessas crianças. Mas, o circuito em jogo, na questão da constituição do sujeito, é aquele que tem lugar o Outro como alteridade e o próprio sujeito, o que implica um modo singular de estabelecer uma relação, em que o que se transmite entre sujeito e Outro não é uma totalidade. Portanto, é justamente no que falha em uma comunicação que o sujeito per-siste, o que aponta para uma tentativa de fazer sinthoma e não sintoma. A questão, como venho sustentando, passa pela definição de linguagem (língua e discurso) e nos modos limitados de entender as funções dessa linguagem. Isto é fundamental em se tratando de diagnósticos diferenciais, pois a criança ‘fala’ com o outro de modos diferentes e, também, pode usar um quantum maciço de palavras e não falar com o outro.

Sobre a especularidade/espelhamento como um dos modos da criança entrar na linguagem proposto por De Lemos (1985, 2002 e 2006), este está relacionado à constituição do primeiro esboço de sujeito proposto por Lacan (1949/1998) no estádio do espelho e o que possibilitaria, também, a referência da criança a si mesma na terceira pessoa. Nessa operação, há um reconhecimento do outro como semelhante de modo que a palavra espelhada ganhe a função do olhar do outro: a de ratificar um “Eu” em relação ao outro, em um jogo de semelhança e dessemelhança. Desse modo, na especularidade, é possível que as palavras do outro sejam deslocadas pela criança ocorrendo uma primeira diferenciação para a criança do que ela é. De modo específico, em termos de fala, o “erro” representaria, como símbolo, essas primeiras diferenciações permitindo a instauração de uma suspensão entre “Eu e outro”, ou seja, o princípio de uma distancia.

Nesse sentido, esse funcionamento especular da linguagem seria, na clínica, índice de possibilidade de um esboço de sujeito em que reproduzir o que vem do outro somente seria possível após o reconhecimento de que há outro semelhante (que me reconhece) e da distância entre a criança e seu semelhante. Esse especular seria o tempo de inscrição do significante primordial, do limite entre sujeito e outro e, havendo esse distanciamento seria possível nesses “erros” de linguagem a inscrição da primeira representação imaginária do sujeito. Diante disso, a amarração sinthomática, em seu funcionamento ecolálico, romperia com os muros maciços das palavras ecoadas: o Real se encobriria pelo imaginário dessa fala.

Retomando Lacan (1949/1998), ao tratar dessa especularidade na formação da função do eu, há dois termos importantes para essa minha proposição: são os termos transformação e discordância. O denominado estádio de espelho corresponderia, nas palavras de Lacan, a uma

identificação, como “[...] uma transformação produzida pelo sujeito [...]”, (p.97- Itálico meu) ao assumir sua imago e, continua ele:

[...] Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o individuo isolado – ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], sua

discordância de sua própria realidade. (LACAN, 1949/1998, p.98 – Itálico nosso)

De fato, esse espelhamento somente formará o [eu] caso tenha efeito de discordar do outro, no ponto onde a imagem refletida pelo olhar do outro não corresponde à imagem refletida no olhar da criança. Sobre isso, posteriormente, no seminário sobre a identificação, Lacan (1961-1962/2003), radicalizando, dirá que A é justamente por não ser A, pois é preciso a diferença pura para que o outro ganhe estatuto de alteridade, de grande outro (Outro). Portanto, é esse processo o que permite o uso da terceira pessoa pela criança: se digo ele refiro-me a mim mesmo dito pelo Outro, reconheço-me na fala do Outro, o que somente é possível pela discordância: nesse ponto, o Simbólico recobre o Imaginário.

Assim, das ecolalias à especularidade tem-se o funcionamento de linguagem de repetição, em que repetir, como funcionamento da língua, somente seria possível na posição de um sujeito do inconsciente marcado pelas faltas que lhe causam e que começa a repetir como um retorno fracassado e, diante desse fracasso, só lhe resta um modo de suplência para esse fracasso. Nesse momento, amarração sinthomática ganharia o estatuto de sinthoma, pois reconhecidas as faltas, trata-se de um sujeito constituído. Contudo, nas ecolalias ainda não há uma criação porque não foi possível o (des)cobrimento dessas faltas, prevalecendo um modo de funcionar. Nesse sentido, é a repetição (Tyché) o que determina um elemento em função de quarto elo, é o que insiste apenas nesse sujeito. Cadu, aquele que não se comunica, continua a insistir como modo possível de verter essa nomeação. Portanto, não se tratando, apenas da repetição ecolálica e nem apenas da repetição especular. Diante disso, pode-se supor que nesse funcionamento, estariam em jogo as trocas metafóricas e metonímicas na cadeia significante possibilitando o advento do sujeito.

Na amarração sinthomática que Cadu vai operando com a língua, a ecolalia e a repetição correspondem ao retorno dos signos como reprodução. Entretanto, na repetição como o que está em jogo é da ordem de um recalque originário em que no primeiro

movimento de constituição estrutural, um traço significante apagado se inscreveria. Nesse tempo, a função de Tyché é fazer da língua de Cadu uma linha como na função do carretel, no fort-da do neto de Freud. Ou seja, conferir a essa língualinha a função significante que instaura a falta marcando a hiância entre o sujeito e o Outro e que faz borda ao domínio da criança e da mãe que se foi. Dessa função algo se destaca, segundo Lacan (1964/1998, p.66): “[...] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura. [...]”. Essa alguma coisinha que se tenta destacar é o objeto a, e é isto o que confere à língua de Cadu seu estatuto sinthomático instaurando a segunda falta constitutiva do sujeito e permitindo a separação, permitindo um desatamento mínimo de sua posição de alienação subjetiva, na ascensão do sujeito à psicose.

Desse modo, a insistência na linguagem, por meio do uso que Cadu faz da língua, vem atestar um sujeito faltoso, com base na relação significante, sujeito e repetição demarcada por Vorcaro:

Na medida do funcionamento da linguagem, ela se demonstra pelos seus efeitos que são sempre retroativos. Assim, ela manifesta que ela é falta

a ser: a linguagem é demanda que fracassa; não é seu êxito, mas sua

repetição, que engendra a dimensão da perda. (VORCARO, 2003)

Também, a insistência nos modos de Cadu usar a língua se realiza em níveis mais específicos da linguagem, como a insistência sonora e a insistência sintática, seu ritmo e sua entonação e estrutura sintagmática, respectivamente.

Sobre esse ritmo, na entonação e prosódia da fala de Cadu, é o ritmo do pulsional afetado por intensidades psíquicas (por afetos), é uma magnitude que, para Freud (1924/2006, p.106), não é uma questão de quantidade e nem qualidade, mas é “[...] o decurso temporal nas transformações, as elevações e as quedas da quantidade de estímulo [...]”. De modo específico, o que foi ouvido na alternância da posição zero do tempo de estruturação marca uma espécie de qualidade de afeto e se mistura aos sons que a própria criança emite.

Cadu fazia sons estranhos e vivia gritando, me disse a avó maternante e, é esse significante “estranho’ que marca a qualidade da demanda e da resposta de afeto, nessa posição, misturado ao som/corpo do bebê. Mas, é importante que esse “estranho” pode ter deixado como marca o outro como estranho, o familiar não reconhecido. Porém, antes de tudo, essa marca é uma inscrição sobre o corpo do bebê que faz sons estranhos, é estranho aos ouvidos dos outros. E, ser uma inscrição indica um modo de captura do bebê no campo da

linguagem, portanto, ele não está de todo fora da linguagem e, também, é esse traço de estranhamento (de um som estranho) que vai possibilitar tomar a língua de Cadu em função de quarto elemento em seu percurso de constituição como uma insistência que, de modo estranho e paradoxal, tanto o nomeia como o distancia de seus semelhantes77.

Na clínica, acompanhar o ritmo da fala da criança possibilita escutá-la por ser, esse ritmo, manifestação de afeto, portanto manifestação pulsional de seu decurso, manifestação de suas elevações e quedas no percurso de sua constituição psíquica. Por certo, é ritmo que marca seus movimentos de estruturação: quando o verbo não fala não se comunica, é a entonação e o ritmo desse verbo que permitem o laço. Conforme Jerusalinsky (2004, p.04) a ecolalia e a prosódia também possibilitam, à criança, operar pela oposição entre significantes, uma vez que uma entonação, uma repetição teria essa função significante, em que a tentativa é fazer “[...] na língua um brinquedo de quebra-cabeça em que termos já estão definidos a priori [...]”. Mais que um brinquedo de quebra-cabeças, a tentativa é de saber-fazer com língua uma costura nos pontos de impasse no percurso constitutivo. E, essa costura vai ao ritmo da substituição dos termos nessa língua. E, ainda, dessa língualinha algo deve se destacar escapando dessa costura.

Antes de mais nada, é um jogo infantil e, são os jogos sonoros que apontam para os traços, para as marcas da fala do Outro sobre esse corpo falante e para modo singular do sujeito fazer com a língua. Com isso, os significantes deixam nesse corpo, por meio de sua musicalidade, um registro psíquico, uma impressão acústica que entra pelos poros do corpo da criança e que retorna como apelo. Dessa maneira, a questão é mais de impressão sonora nos ouvidos da criança, com primeiro ciframento que vem do outro. Esse ciframento acompanha, também, o que vem do sujeito, pois é insistente e persistente e, pode-se supor, é o limite entre língua e lalíngua: entre o Imaginário, o Simbólico e o Real, entre Automatôn e Tyché, e esse primeiro ciframento é o índice de um inconsciente se estruturando, porque há um primeiro elemento recalcado, resto que se tem de uma primeira incidência de um traço apagado:

A incidência do recalque sobre elementos organiza o inconsciente como uma linguagem, ou seja, como uma cadeia feita de elementos cuja unidade significativa varia desde um fragmento do discurso, um segmento de frase até a letra, passando pela palavra, pelo fonema e pelo elemento de pontuação. Tal cadeia é simples escrita, que impede que aquilo que habita o inconsciente possa tomar a palavra. Se o interdito articula o desejo inerente a essa cadeia, veiculado por essa cadeia e constitutivo dessa cadeia, o sujeito

77 No capítulo de análise será possível ver como esse modo de fazer sons estranhos é o que abre um fissura no

não pode apreendê-lo ou articulá-lo. Entretanto, o sujeito pode emprestar-lhe a sua voz, sem que saiba e sem que possa comandá-lo. (VORCARO, 2002, p.67)

Esse sujeito, que não comanda seus dizeres interditos do inconsciente, ao falar apresenta um traço identificatório (segundo a autora retomando Melman), a entonação imprimida pela linguagem maternante78. Esse “canto da fala” realiza uma espécie de gozo pelo nonsense, em que a repetição caracteriza o imprevisto na fala da criança. De fato, é a lógica de Tyché, uma causa inesperada e indeterminada.