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CAPÍTULO 5 – A AMARRAÇÃO SINTHOMÁTICA: AS CERZIDURAS

5.3 Os shifters na linguagem da criança

O diálogo, na clínica psicanalítica, implica – pela transferência – o desencontro, contrapondo-se ao diálogo intersubjetivo que prevalece em abordagens interacionais sobre esse tema, tanto na clínica da linguagem e seus trabalhos na fonoaudiologia como na Linguística, em que o aparelho de comunicação de Jakobson e o aparelho formal da enunciação de Benveniste implicam a boa relação entre falantes, na concordância. Contudo, na clínica psicanalista, o interesse é precisamente na discordância. Dizendo de outro modo, o diálogo, nessa clínica, é uma discordância e há que causar discórdia entre sujeito e Outro. Também, lembro que minha tese se funda na subversão do que chegou como uma constatação: “Ele não se comunica.”

Esse encontro entre falantes, na Linguística, é tomado como uma enunciação, no sentido de que o falante ao colocar a língua em uso por um ato individual instaura seu interlocutor: é a relação eu – tu, cujas posições enunciativas podem se alternar, conforme Benveniste (1989), e esse ato é ato de concordâncias.

Todavia, nessa clínica, essa alternância enunciativa não pode se dar, haja vista que a posição analista/criança supõe um saber demandado de um ao outro, assim como aqueles que chegam a essa clínica o fazem, minimamente, por causa de algum mal-estar no encontro com o outro. O mesmo se dá, em se tratando de constituição psíquica: as posições sujeito e Outro somente se juntam na antecedência do desejo do sujeito, porém não se alternam. Desse modo, a enunciação, para a Psicanálise não é relação entre um eu e um tu. Também, vale lembrar que a instância tu não é correlato de Outro e nem eu é correlato de sujeito do inconsciente, em nenhum de seus esboços, seja pelo Imaginário, Simbólico e Real.

De início, o Outro antecede o sujeito e estamos na ordem do inconsciente e não da superficialidade da linguagem: estamos na sua hiância. Desse modo, pensar em enunciação, na Psicanálise, é situar-se nos acontecimentos em torno dessa hiância, nos não ditos e nos inesperados, nos vazios de sentido que possibilitam ao sujeito enunciar-se. Em um contraponto com o aparelho formal da enunciação de Benveniste teríamos, na Psicanálise, uma estrutura de linguagem constituída de furos, impasses e desencontros marcados, entre

seus elementos pelas trocas entre significantes. Nesse sentido, um elemento como o pronome eu funcionaria na enunciação como um shifter designando o sujeito da enunciação em sua versão imaginária, mas que não o define como sujeito do inconsciente.

Diante disso, proponho as diretrizes enunciativas para esta pesquisa.

Benveniste (1995), ao tratar da estrutura das relações de pessoa na categoria gramatical dos verbos conclui que a categoria pessoa, na língua, “pertence” a essa categoria verbal e que as pessoas verbais não são homogêneas. Enquanto a categoria Eu e Tu (primeiras e segundas pessoas do singular, respectivamente) são consideradas pessoas do discurso (é preciso essa semantização, pois os pronomes puros, na língua, são formas vazias), o Ele/Ela, da terceira pessoa do singular, na verdade corresponderia à categoria não-pessoa. Conforme esclarece Benveniste (1995, p. 250): “Estamos aqui no centro do problema. A forma dita de terceira pessoa comporta uma indicação de enunciado sobre alguém ou alguma coisa, mas não referida a uma “pessoa” específica.” Dessa forma, a dita terceira pessoa está fora do enunciado em termos de referenciação, ou seja, é preciso que ela seja apontada e suposta com base na enunciação. Para mim, ela somente reitera a existência insistente de uma forma vazia na linguagem.

Além disso, Benveniste (1995, p.250) considera que a diferença entre as categorias de pessoa é uma diferença estrutural e trata-se de uma pessoa (de certa subjetividade), porém inespecífica, ausente, ou ainda, que estaria em outro lugar que não no enunciado.

Para a Psicanálise, o sujeito do inconsciente é sempre dito por um ele, justamente por essa ausência presentificada no enunciado e pela opacidade da não especificidade da pessoa80. Também, o Eu e o Tu (aquele que fala e aquele a quem nos dirigimos) não interessaria à Psicanálise.

Benveniste (1995, p.252) chama a atenção, também, para a diferença de planos entre as duas primeiras pessoas e a terceira: “Segue-se que, muito geralmente, a pessoa só é própria às posições ‘eu’ e ‘tu”. A terceira pessoa é, em virtude de sua própria estrutura, a forma não pessoal da flexão verbal”. Há, também no pronome Ele uma natureza impessoal, de acordo com o autor: Ele, pode ser uma infinidade de sujeitos ou nenhum, enquanto Eu e Tu estão

80 Segundo Lacan (1964/2008, p.33), o sujeito do inconsciente é indeterminado: “[...] Vocês verão que, mais

radicalmente, é na dimensão de uma sincronia que vocês devem situar o inconsciente – no nível de um ser, mas enquanto pode se portar sobre tudo, isto é, no nível do sujeito da enunciação, enquanto segundo as frases, segundo os modos, se perdendo como se encontrando, e que, numa interjeição, num imperativo, numa invocação, mesmo num desfalecimento, é sempre ele que nos põe seu enigma, e que fala, - em suma no nível em que tudo que se expande no inconsciente se difunde, tal o micelium [o umbigo do sonho de Irma], como diz Freud a propósito do sonho, em torno de um ponto central. Trata-se sempre é do sujeito enquanto que indeterminado.”

definidos e podendo se alternar no enunciado, sempre no registro imaginário. Contudo, o Ele como uma forma vazia, um furo na linguagem. Ainda, essa terceira pessoa não designa nada, nem ninguém: “[...] a ‘terceira pessoa’ é a única pela qual uma coisa é predicada verbalmente.” (BENVENISTE, 1995, p.253); esse sujeito alhures nunca pode, então, ser proposto como pessoa (Eu e Tu), sempre proposta no ato de linguagem na parte de seu predicado, na lógica do verbo nas línguas. Nesse sentido, é que se poderia dizer que o sujeito do inconsciente é predicado do enunciado, por não ter marca de pessoa. Também, ao discutir sobre a pluralização, esse autor esclarece que somente essa terceira “pessoa”, por ser uma “não-pessoa”, admite-se o verdadeiro plural (Eles) devido à sua inespecificidade e indeterminação.

Logo, essa natureza do Ele mostra como no enunciado a dita terceira pessoa é índice de indeterminação do sujeito e como opacidade na linguagem, possibilitaria apostar no efeito de significantes. Cadu se enuncia pelas vias dessa terceira pessoa (“Lavô cabelu”; “Cê vai

comprá”)81, em que essa indeterminação é uma possibilidade de sujeito, e a terceira

(não)pessoa, indiferenciada em sua fala da criança, marcaria essa possibilidade de sujeito. Nesse sentido, em termos diacrônicos, a efêmera emergência de um Eu nessa cadeia sintagmática significaria a criança falando, no sentido de não ser falada mesmo que em termos imaginários, pela reprodução. Na fala de Cadu, é possível ver uma passagem da indeterminação, vazio na cadeia, para o Ele (inversão pronominal) e, depois, para um Eu. Porém, sabe-se que um Eu pode ser fruto da reprodução por espelhamento e um Ele das ecolalias. Isso me leva a supor que a emergência dessas “pessoas” e da “não-pessoa” teria efeito significante, produzindo o sentido. Também, essa reprodução poderia implicar uma saída dessa posição, pois reproduzir o que vem do outro é reconhecer haver esse outro.

Outro aspecto que merece atenção, em relação às “pessoas” de um enunciado, é o fato estrutural de que essas pessoas só existem em função do verbo, daquilo que, na língua, é ação, é seu predicado. No caso da importante terceira (não)pessoa, esta seria o próprio predicado. Ou seja, estaria o sujeito do inconsciente fadado à hiância, ao discurso sem palavras?

Benveniste (1949/1995) sustenta, ao tratar da natureza dos pronomes, que estes são, antes, um problema de linguagem e não apenas da língua. Lembro que para esse autor se trata de língua e discurso, da linguagem como semiótico e semântico, forma e sentido, em sua duplicidade. Em suas palavras:

81 Essa delimitação é possível, pois na transferência a posição de analista e criança estão estabelecidas, mas nem

É como fato de linguagem que apresentaremos aqui, para mostrar que os problemas não constituem uma classe unitária, mas espécies diferentes segundo o modo de linguagem do qual são signos. Uns pertencem à sintaxe da língua, outros são característicos daquilo a que chamamos as ‘instâncias do discurso’, isto é, os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra, por um locutor. (BENVENISTE, 1949/1995, p.277)

Com base nessas discussões de Benveniste (1949/1995), nesse texto sobre a natureza dos pronomes, considero fundamental a realidade que define um Eu, um Tu e o Ele. Em contraponto à natureza de Ele, que acabei de abordar, o Eu não pode ser definido como um signo nominal, mas em termos de ‘locução’, pois trata-se da pessoa que se enuncia no discurso, a própria instância enunciativa do Eu: Eu sou quem diz Eu, é uma existência linguística (com referente e referido), é a consistência imaginária no enunciado; O Tu, por sua vez, é definido em termos de ‘alocução’, ou seja, instaurado como instância do discurso pelo Eu, alocado na enunciação pelo Eu.

Ainda nesse texto, esse autor apresenta os indicadores de subjetividade na linguagem que somente podem ser compreendidos no discurso, os dêixis (os articuladores, os shifters determinados por Jakobson). Esses indicadores correspondem ao modo como o Eu vincula-se ao discurso e são temporais, de objeto e de pessoa, espaciais e verbais, como os pronomes demonstrativos, os advérbios, as locuções adverbiais, os verbos (e seus tempos), as expressões que nos indicam a relação da ‘pessoa’ com a enunciação: eu-tu-aqui-agora, por exemplo. Essa dêixis discursiva é contemporânea à instância do discurso, pois estabelece a relação entre o indicador e a pessoa do discurso. De acordo com Benveniste:

Tratamos muito levemente e como incontestável a referência ao “sujeito que fala” implícita em todo esse grupo de expressões. Despoja-se da sua significação própria essa referência se não se discerne o traço pelo qual se distingue dos outros signos linguísticos. Assim, pois, é ao mesmo tempo original e fundamental o fato de que essas formas “pronominais” não remetam á “realidade” nem a posições “objetivas” no espaço ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que as contém, e reflitam assim o seu próprio emprego. A importância de sua função se compara à natureza do problema que serve para resolver, e que não é senão o da comunicação intersubjetiva. A linguagem resolveu esse problema criando um conjunto de signos “vazios”, não referenciais com relação à “realidade”, sempre disponíveis, e que se tornam “plenos” assim que um locutor os assume em cada instância de seu discurso. Desprovidos de referência material, não podem ser mal empregados; não afirmando nada, não são submetidos à condição de verdade e escapam a toda negação. O seu papel consiste em fornecer o instrumento de uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem em discurso. [...] (BENVENISTE, 1949/1995, p.280)

Desse modo, é no exercício de uma linguagem que comporta signos vazios em que não se diferencia a linguagem como sistema de signo da linguagem “assumida como exercício pelo indivíduo”, portanto, língua e discurso, que a língua é atualizada. Todavia, Benveniste (1949/1995) ainda se pergunta o que acontece no exercício de linguagem em relação à chamada terceira (não)pessoa82. Ou seja, qual a relação dos indicadores de subjetividade com essa instância de não pessoa com o Ele e o Isso? Para ele:

A “terceira pessoa” representa de fato o membro não marcado da correlação de pessoa. É por isso que não há truísmo em afirmar que a não-pessoa é o único modo de enunciação possível para as instâncias do discurso que não devam remeter a elas mesmas, mas que predicam o processo de não importa

quem ou não importa o que, exceto a própria instância, podendo sempre esse

não importa o que ser munido de uma referência objetiva. (BENVENISTE, 1949/1995, p.282)

Por certo, para esse linguista, a função dessas instâncias seria apenas de representação sintática, substituindo um ou outro dos elementos do enunciado. Entretanto, não se trata de uma subjetividade: Esta criança escreve melhor agora do que o fazia no ano passado, é o exemplo que ele nos oferece na sequência dessa citação feita, em que a forma o substitui o ato de escrever. Mas, não há, nessa sentença uma indeterminação, já que o referente na sintaxe está definido em relação à sua forma remissiva.

Assim sendo, esses elementos não seriam indicadores de pessoa, de subjetividade, e também não construiriam em seu entorno os shifters enunciativos, conforme Benveniste (1949/1995).

Porém, em se considerando a linguagem atualizada na clínica – portanto, em sua possibilidade enunciativa –, a relação entre linguagem e constituição subjetiva, e o fato de o locutor na situação referir-se a si mesmo pela indeterminação ou pela inversão pronominal, pergunto qual a relação dessa (não)pessoa com sua enunciação e o que os shifters mostram dessa relação com o campo da linguagem? De fato, é preciso situar que a dita (não)pessoa em questão seria justamente o Isso, o sujeito do inconsciente em constituição. Nesse sentido, esses indicadores mostrariam a relação que é possível entre sujeito e campo da linguagem e que poderiam até ter efeito de significante possibilitando, na narrativa enunciativa, mostrar ou não isto, dada que narrar comporta pessoas, tempo, espaço, percurso, entre outros e, como um

mito, deve versar sobre o ser de que se trata. Também, ressalto que esses shifters comportam as manifestações imaginárias nesse percurso de constituição do sujeito e, isto não é pouca coisa frente aos impasses nesse percurso, já que, por vezes, é pelas vias do Imaginário que o pequeno sujeito se arrasta antes sua possibilidade de autismo.

Por fim, são esses funcionamentos de língua (ecolalias, reprodução por espelhamento, repetição, paralelismo sintático e na entonação, o ritmo repetitivo, a indeterminação pronominal e os shifters) que Cadu lança mão para atar-se como sujeito: constituem sua língualinha, esta com estatuto de amarração sinthomática, fazendo o contorno ao imperativo do Real em seu impasse subjetivo e cerzindo uma hiância nessa estrutura e, diante disso, ser sujeito do inconsciente não é, para Cadu, sucumbir ao Um solitário, ao império de gozo irredutível.