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CAPÍTULO 5 – A AMARRAÇÃO SINTHOMÁTICA: AS CERZIDURAS

5.1 Dos fenômenos de linguagem à amarração sinthomática na psicose e no autismo

De modo geral, para a psicanálise elaborada por Jacques Lacan, os aspectos da linguagem sempre possibilitaram as investidas em novas provocações conceituais e, em consequência, a proposição de novas abordagens para os problemas sobre o psiquismo humano. Entre essas provocações, estão aquelas estabelecidas com base nas ditas psicopatologias. De modo mais específico, Lacan partiu das psicoses, até então (início dos anos de 1930), um assunto mal resolvido pela Psicanálise. Das investidas de Lacan sobre esse assunto, recorto aquelas concernentes aos conhecidos fenômenos elementares de linguagem, da psicose. Isso se justifica, por se ter, no funcionamento em jogo, a possibilidade de haver sujeito [na psicose].

A psicose sempre nos ofereceu os mais inesperados e complexos fenômenos de linguagem e, é nesse contexto que Lacan inicia sua relação com a linguagem (e com a Psicanálise). Especificamente, nos trabalhos Esquizografia, de 1931 e O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência, de 1933. No primeiro texto, Lacan trabalha com as cartas de uma paciente esquizofrênica identificando, na escrita dessa paciente, os aspectos característicos de um quadro de psicose com base nas irregularidades de seu grafismo sem rasuras, como a perplexidade semântica, as interpretações delirantes, entre outros. Lacan se debruça sobre os quatro ‘distúrbios’ de linguagem identificados na clínica das ditas afecções psiquiátricas: distúrbios verbais, ou formais da palavra falada; distúrbios nominais, ou do sentido das palavras usadas para nomear; distúrbios gramaticais/sintáticos; e os distúrbios semânticos.

Ao discutir sobre esses distúrbios de linguagem presentes na grafia da paciente esquizofrênica, Lacan (1931/2011) se fundamenta na psicologia e na filologia. Ou seja, delimitando essas áreas, a linguagem está submetida ao pensamento e à história das línguas e, com isso, a leitura de Lacan das cartas da paciente são interpretadas com base na filologia, melhor dizendo, com base naquilo que a história das línguas diz sobre sua gramática ou semântica. Não se tratava, portanto, do funcionamento dos elementos constitutivos da língua. Além disso, há, nesse trabalho de Lacan, uma ausência total de certa terminologia e parâmetros da Linguística (que já havia sido fundada como ciência nessa época, o que implica que seu objeto, a língua, já havia sido definido), prevalecendo a linguagem psiquiátrica, como é o caso do uso do termo ‘distúrbios’. Todavia, no segundo o texto supracitado, O problema do estilo, Lacan (1933/2011) irá sugerir que a arte e a antropologia sirvam de parâmetros para compreensão dos mecanismos da paranoia, nesse sentido, já apostando que não se trata da ordem de um funcionamento mental, mas algo fora que antecederia o sintoma paranoico. Nesse segundo texto, podem ser vistos os primórdios da relação psicose (paranoica) e linguagem:

Podemos conceber a experiência vivida paranoica e a concepção do mundo que ela engendra como uma sintaxe original, que contribua para afirmar, pelos elos de compreensão que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe nos parece uma introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da arte e, muito particularmente, aos problemas do estilo – a saber, das virtudes de convicção e de comunhão humana que lhe são próprias, não menos que aos paradoxos de sua gênese –, problemas sempre insolúveis para toda antropologia que não tiver liberada do realismo ingênuo do objeto. (LACAN, 2011/1933, p. 400)

Nessa citação, a existência da lógica de uma sintaxe original, particular do paranoico, é fundamental no que proponho, pois há, de modo rudimentar, um fazer com a estrutura comum ao paranoico e que é levado a cabo, por Lacan, na tese Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, texto de 1933, um saber fazer original e arbitrário.

Desse texto, se sobressai o uso que Lacan faz do termo estrutura (da personalidade de Aimée) e do termo fixação (objetal e narcísica de traços psíquicos). Iniciando o trabalho a partir da nosografia psiquiátrica da psicose, ele termina o trabalho abordando os fenômenos elementares da psicose, embasando-se na Psicanálise e citando Freud em vários momentos, para sustentar que a psicose corresponderia, de modo geral, à fixação de determinados traços psíquicos que determinam a estrutura de personalidade psicótica [de Aimeé]. Também, é a língua (e a linguagem) de Aimée os fundamentos de sua hipótese sobre essa estrutura de personalidade em uma extrema e radical relação linguagem, psicose e inconsciente74.

Anos depois, Lacan (1955-1956/2002), em seu Seminário sobre as psicoses, estabelece os fenômenos elementares que possibilitam ao presidente Schreber suportar sua loucura75. De modo específico, esses fenômenos são: a dissociação semântica, na perplexidade do psicótico diante de sua ruptura nas relações (no laço social), as alucinações visuais e auditivas, as interpretações delirantes (e delírios), o afrouxamento dos elos associativos e as mais variadas alterações de linguagem.

Desse modo, partindo da linguagem como língua e discurso, a possível desorganização estrutural (na psicose) mantém o sujeito aquém do discurso, em dificuldades de estabelecer laço social, pois a significação está prejudicada sem o jogo metafórico que possibilitaria a inscrição da metáfora paterna. Porém, é importante frisar que o psicótico não estar fora do discurso não é o mesmo que o psicótico estar fora da linguagem, pois nesta, ele vai operar com a língua, como atestam os fenômenos elementares de linguagem.

Tanto nesse Seminário sobre as psicoses, como nos textos anteriores a este, e, também, em trabalhos posteriores como no texto Formulações da causalidade psíquica (1946) e, ainda, no texto Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957/1958), um aspecto dos então nomeados fenômenos elementares de linguagem são determinantes: é o fato de que o sujeito não “reconhece” a língua que lhe constitui e isto lhe dificulta sua dialética com o

74 Ressalto que são mesmo primeiras investidas de Lacan na questão constitutiva do psiquismo e que prevalece,

ainda, uma lógica do particular e de formação de uma personalidade, muito atrelado, ainda, à subjetividade. Coisa, aliás, que Lacan irá rechaçar veementemente a partir da lógica significante e, irá negar totalmente com o objeto a.

75 Interessante que esses fenômenos elementares ajudam o sujeito a suportar a loucura eclodida em Schreber. Em

Joyce, vinte anos depois, Lacan sustenta o sinthoma como aquilo que suporta um sujeito supostamente louco, porém sem enlouquecer.

Outro; consequentemente, é improvável a ele localizar-se no campo do Outro, decorrendo daí, os fatos de linguagem como a alusão a um terceiro na referência a si mesmo. De fato, há uma língua funcionando em uma ordem que foi foracluída. Outro aspecto fundamental, diz respeito à não inscrição da metáfora paterna, já mencionada: se não há a metáfora definitiva do sujeito, a linguagem na psicose pode ser pensada como uma linguagem “desmetaforizada”, prevalecendo os deslizamentos metonímicos e, ainda, pode-se considerar não haver um sujeito constituído.

Conforme Lacan (1955-1956/2002), na ordem do significante os fenômenos de linguagem são mecanismos como a reorganização discursiva por meio de neologismos, os denominados distúrbios de conexão em que as frases são interrompidas no ponto em que poderia emergir a significação e, a holófrase, contrário do anterior, em que uma palavra equivaleria a uma sentença. Esses modos da linguagem funcionar, na psicose, não indicam um problema cognitivo ou até mesmo um problema de encadeamento linguístico, mas correspondem aos modos do psicótico se relacionar com a linguagem que o constitui. De todo modo, nessas manifestações de linguagem e em seu funcionamento significante, o que não se efetiva é a falta, a hiância entre a língua e o discurso com paradoxo entre sujeito e Outro, não demarcado pela inscrição metafórica: o intervalar é o que falta na psicose.

Na sequência de seu Seminário, Lacan (1955-1956/2002, p. 153) apresenta assim a relação psicose e inconsciente:

Em resumo, poder-se-ia dizer, o psicótico é um mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto. O neurótico também é uma testemunha da existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto que é preciso decifrar. O psicótico, no sentido em que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha, e de partilhá-lo no discurso dos outros.

Nesse sentido, há algo no adulto [psicótico] a ser testemunhado entre o sujeito e o Outro. Todavia, trata-se de um testemunho sem condições de restaurar o sentido do que ele testemunha, sendo preciso seu deciframento. Na criança, a possibilidade do impasse psicótico (ou outros modos de operar seu impasse subjetivo) testemunha sempre a própria (im)possibilidade de estruturar o inconsciente, de constituir-se sujeito, de enlaçar-se com o Outro. Na ausência das faltas que lhe direcionam no campo da linguagem, a criança (refrataria do sujeito em constituição) testemunha o percurso dos significantes que lhe efetivarão sua

posição no mundo e, também, a perda daquilo que determinará seu desejo, portanto, testemunha a efetivação da condição duplamente faltosa, por isso o ciframento desse inconsciente que se estrutura, e que mesmo vindo a céu aberto, não pode ser decifrado.

Lacan (1955-1956/2002, p. 192), então, se refere à ordem significante, aquela que interessa na relação linguagem e psicose:

A partir de quando passamos ao que é da ordem significante? O significante pode estender-se a muitos elementos do domínio do sinal. Mas o significante é um sinal que não remete a um objeto, mesmo sob a forma de rasto, embora o rasto anuncie, no entanto, o seu caráter essencial. Ele é também o sinal de uma ausência. Mas, na medida em que ele faz parte da linguagem, o significante é um sinal que remete a um outro sinal, que é como tal estruturado para significar a ausência de um outro sinal, em outros termos, para se opor a ele num par.

Desde as primeiras elaborações de Lacan com os elementos da linguagem, prevalecem os traços, os rastros e os significantes. E, com a psicose, ele confirma que a língua funciona mesmo em detrimento da significação.

Em se tratando de linguagem, qualquer criança (sempre atravessada pelo que vem da boca do Outro) reorganiza seu discurso, cria palavras para nomear o mundo ao toque de homofonias, homonímias, onomatopeias, concatenações, como se pode ver em ocorrências cotidianas de crianças falando.

Em uma situação específica, uma criança diz “cacaco” para se referir ao desenho de um “macaco” que um adulto havia lhe mostrado dizendo “Olha o macaco.” Essa criança se apropria da fala do outro, mas é possível ver aí um desencontro necessário entre a fala da criança e a fala do adulto no ponto mínimo da substituição por distinção entre os fonemas [c] e [m].

Também, Certa criança tem por hábito sempre interromper suas frases quando se percebe (ou pelo menos desconfia) estar na congruência de sustentar um dizer ou mesmo um ato qualquer, como na situação em que a mãe diz ao pequeno filho, quando este se senta à mesa para almoçar: “Vi que você lavou as mãos sem eu ter que mandar. Muito bem! Lavou lá fora ou no banheiro?”. Ao que a criança responde: “Hum...Foi...Hum...”, abaixando a cabeça, sorrindo e escondendo as mãos embaixo da mesa. Na cena, é possível vê-lo limpando as mãos no forro da mesa e, as hesitações em sua fala denunciam sua subversão como pequeno sujeito construindo saídas aos seus impasses cotidianos na interação com seus semelhantes.

Ainda, existem aquelas crianças que produzem holófrases que poderíamos chamar de cotidianas (como são nas línguas criolas), como uma criança que responde ao pai ao ser indagada, por ele, sobre o dia na escola, assim, de modo condensado, metafórico: “Tinánan.” Ao que o pai traduziu como: “Tinha nada não?” E a criança: “É”.

Há ainda aquelas crianças que se satisfazem com a lógica do significante, como um menininho que, passando com a mãe em frente a uma revendedora de tratores e instrumentos agrícolas e, ao ver um desses minitratores usados em pequenas plantações, diz à mãe: “Mãe... quero um trator pequeno daquele (apontando)”. Ao que a mãe pergunta: “Pra quê menino?” e, ele responde: “Pra brincar. O trator é de brinquedo”. A mãe, por sua vez, continua: “Tá. Vou te dar um trator de brinquedo”. Nessa magnífica rede associativa e metafórica entre pequeno e brinquedo há a significação (efeito desses significantes em oposição, pelo jogo semelhança/dessemelhança) e é de absoluta permuta entre a mãe e a criança, entre a demanda ao Outro e o desejo do sujeito.

Vale ressaltar, que nesses breves episódios de fala entre adulto e criança, existem algumas evidências: o diálogo, a criança e o adulto, a heterogeneidade e o espelhamento, em que o funcionamento da linguagem permite – pelas vias do Imaginário – ver e compreender a relação dialética entre sujeito e Outro e os momentos em que o sujeito subverte essa dialética pelo jogo entre significantes, se presentificando como sujeito do enunciado. Tudo isso é, do meu ponto de vista, o distanciamento entre a linguagem da criança em impasse subjetivo e a linguagem da criança cuja estruturação caminha sem impactos severos sobre sua constituição, e tem a ver com a dialética que instaura a diferença constitutiva. Para a criança em impasse subjetivo falta a falta, a hiância que instaura a diferença entre sujeito e Outro e a possibilidade de subverter essa relação.

Lacan (1998/1946), ao expor suas formulações sobre a causalidade psíquica, apresenta outro importante e interessante fenômeno de linguagem da criança que mostra a relação entre a constituição do sujeito e a linguagem. Retomando o ponto zero como o tempo da matriz simbólica que antecede à identificação da criança com o Outro, ele apresenta uma singular “forma de relação [da criança] com o mundo”, especificamente o transitivismo:

Essa reação, com efeito, embora jamais se elimine por completo do mundo do homem em suas formas mais idealizadas (nas relações de rivalidade, por exemplo), manifesta-se inicialmente como matriz da Urbild do Eu.

Constatamo-la, de fato, a dominar significativamente a fase primordial em que a criança adquire essa consciência de seu indivíduo que sua linguagem traduz, vocês sabem, na terceira pessoa, antes de fazê-lo na primeira. (LACAN, 1946/1998, p.181)

Desse modo, conforme essas palavras de Lacan, referir-se a si mesmo, na terceira pessoa, mediante o advento do primeiro esboço do sujeito do inconsciente, aquele que se efetiva no estádio do espelho, é um funcionamento de linguagem próprio e constitutivo da criança e ratifica que o sujeito, desde sempre, se constitui do que vem da boca do outro (o que interessa da boca, do olho é que estes têm borda). Geralmente, a referência a si mesma é pelo nome que a criança ouve da boca do Outro até que possa instaurar o eu e o tu, no diálogo. Como é possível ver no acontecimento seguinte, em que Maria, pegando um brinquedo, e trazendo junto a si, diz: “É da Maria”. Essa fala é o espelhamento da fala de um adulto que, ao lhe dar o brinquedo, disse: “Olha o brinquedo da Maria”. Existe, nesse episódio de fala, uma reprodução por espelhamento, pois há um reconhecimento de si nas palavras do Outro que ela toma para si, por se encontrar nelas, situando-se no discurso desse Outro. Mas, essa reprodução, situada e discursivizada, não é como uma ecolalia. Tempos depois, em situação parecida com o mesmo brinquedo, Maria diz: “É meu, né teu”. Agora a repetição é criativa e inesperada pela contundência na fala da menina. Porém, um funcionamento como esse, na criança em impasse subjetivo, se caracteriza por uma indeterminação frente a uma inversão pronominal, insistente, sem continuidade e nem deslocamento da criança para a posição de quem responde por sua condição de falante.