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A fecunda ambiguidade dos códigos de géneros

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL)

2. A fecunda ambiguidade dos códigos de géneros

Além da problemática do hibridismo de modos literários, levanta-se também a questão do hibridismo de géneros na concretização textual da narrativa - que

per se não distingue o discurso historiográfico de outros tipos de discurso10 - em

Vida de Sebastião Rei de Portugal. É biografia? É ensaio? É ficção novelesca?

No fundo, a obra de António Cândido Franco, como várias outras da literatura contemporânea, e em especial do Pós-Modernismo, agudiza um fenómeno literário raro até ao Pré-Romantismo, mas mais ou menos recorrente

(9) -Idem, ibidem,?. 140.

(10) - Cf. Hayden White, The Content of Form - Narrative Dircourse and Historical Represention. Baltimore/London, The Johns Hopkins Univ. Press., 1987, p. 29.

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desde a revolução romântica: uma mesma obra pode acolher, ou buscar, e fundir «programas» de mais que um género ou subgénero, assim tornando complexa a codificação da mensagem e polivalentes os elementos da sua sintagmática, sem deixar de facultar ao leitor os meios para uma recepção integrada da mesma obra.11

Provocatoriamente introduzida pela inserção da obra em determinada colecção editorial, a plurivocidade genológica instaura-se desde o título. Este, de facto, e de acordo aliás com a integração numa série editorial de BIOGRAFIAS, parece prometer, ao sabor de compreensível voga recente desse género12, uma

biografia. Mas tudo isso se vem a revelar catáfora ardilosa, pois em excursos de natureza ficcional e em intrusões anisocrónicas do autor textual/narrador a narrativa ultrapassa até o que seria comportável pela modalidade mista de existência própria duma biografia romanceada13 e pelo desenvolvimento dum plot,

na acepção de E. M. Forster14, numa ambiguidade que se mantém na maior parte

do livro. «Neste livro vou falar do rei Sebastião», anuncia de chofre esse autor textual/narrador; e depois, quase no fim da introdução, afirma: «É a história do mais estranho rei de Portugal que se vai contar a seguir»; de permeio, sublinha: «Acho que a história e as aventuras de Sebastião, tão quixotescas, são mais

(11) - Cf. Maria Corti, «I generi letterari in prospecttiva semiológica», in Strumenti Critici, VI, 1, 1971. (12) - Cf. Maria de Fátima Marinho, «Isabel de Aragão, Rainha Santa: entre o romance e a biografia», in

Vitorino Nemésio, Vinte anos depois, Lisboa/Ponta Delgada, Ed. Cosmos & S.I.E.N., 1998, p.681 (e

segs.).

(13) - Sobre a problemática e as concepções contemporâneas de narrativa biográfica, veja-se o vol. colectivo Le Désir biographique, N° 16 dos Cahiers de Sémiotique Textuelle, Paris (Univ. Paris X), 1989. (14) - E. M. Forster, Aspects of the novel. London, Edward Arnold, 1937, pp. 113 segs.

apropriadas a serem contadas a uma criança que a um historiador. [...] Mattoso15

deve achar um aborrecimento atroz essa figura [...] Sebastião é mais um herói infantil [...] que um herói da História.». Mas, em contrapartida, considera que «Fazer da história uma imaginação onde todos os prodígios conseguiram ser verosímeis foi a virtude rara deste rei português, que, se foi inconscientemente para Alcácer-Quibir de guitarra fadista, teve bom-senso suficiente para reaparecer depois de morto.».16

Ora, o processo que o narrador usa para se referir ao rei é o de ir desvalorizando o seu interesse histórico lentamente, para, ao mesmo tempo, o ir fazendo entrar na ficção. A utilização recorrente de um processo de repetição surte efeito; e nós assistimos, com naturalidade, à messianização da figura por causa das constantes aproximações e até comparações com o Messias cristão - no nascimento tão desejado, no carácter de excepcionalidade de Sebastião (em que, de início, são paradoxalmente feitos sobressair a sabedoria e o bom-senso), etc. É também devido à recorrência dessa ideia, segundo a qual Sebastião constitui um ser marcado e predestinado, que o mito nasce e cresce - com tal força que chega a haver pretensas reincarnações do protagonista nas vicissitudes do trajecto quotidiano do narrador (que, coincidindo com o autor textual, se permite incidentalmente cruzar a sua suposta "biografia" com a não menos suposta

(15) - Parecem óbvios os efeitos conotativos contrapolares retirados da evocação contrastiva deste antropónimo - nome de um dos mais importantes historiadores da actualidade (e o que mais se consagrou ao estudo medievalista da Identidade de um Pais...) e do seu antepassado autor de manuais de historiografia que formaram gerações de jovens portugueses.

"biografia" do protagonista histórico).

Não entendamos com isto, de modo algum, que o histórico é esquecido. As informações de base historiográfica são abundantes; e as suas fontes são meticulosa e profusamente indicadas. Estas informações têm como objectivo manter o jogo, o disfarce de preocupação histórica. Para dar credibilidade ao que conta, o narrador afirma que, «para escrever este livro», teve de «subir as apertadas ruas de Tânger e andar no meio dos passeios apinhados de gente em Alcácer-Quibin>17, numa atitude de reconhecimento dos locais por onde o rei

andara.

Constatamos, portanto, que a ambiguidade de que falávamos continua a vir à superfície em múltiplos momentos (enquanto, lembre-se, o narrador, tal qual o entrevimos fazer em Memória de Inês de Castro, vai interminamente entretecendo a sua especulação ensaística de antropologia cultural e de filosofia da História). Com o desenrolar da narração, a ficção parece ir cavalgando cada vez mais o histórico, sem que no entanto esta dimensão alguma vez venha a desaparecer. Ora se destaca a loucura genial e divinal do menino, ora surge a preocupação de apontar dados que reforçam o posicionamento histórico. O narrador convoca, para a criação de um universo que é ficcional, dados efectivamente oriundos da História de Portugal, figuras representativas do mundo da arte (pintura, escultura, fotografia, cinema, teatro e literatura) nacional ou internacional, e ainda perspectivas proféticas singulares ou pertencentes a um imaginário colectivo.

Num rasgo simultaneamente lúdico e pregnante, como parece próprio da narrativa pós-moderna, tornam-se abundantes as alusões (cuja importância relativa ponderaremos noutro capítulo) a figuras míticas ou a figuras históricas que depois foram envolvidas em fumos imaginativos como D. Afonso Henriques, Inês de Castro, os Cavaleiros da Távola Redonda e Dom Quixote. A carga cultural está à vista, devendo-se ainda pôr em destaque referências a Aristóteles e a Platão, a textos sagrados de orientações religiosas diferentes (a Bíblia e o Corão), etc. Outras relações com personalidades das ideias e das artes são estabelecidas. Podem ser portugueses do passado: António Ferreira, Camões, Camilo, Oliveira Martins, Sampaio Bruno, Fialho de Almeida, António Nobre, João Lúcio, Pascoaes, Mário Beirão, Sá Carneiro, Fernando Pessoa (e Alberto Caeiro), A. Botto, António Sérgio, Aquilino, etc. Podem ser portugueses do presente: Luís Pacheco, Paulo de Carvalho, Raul Solnado, Almeida Faria. Podem ainda ser estrangeiros como Exupéry, Grouxo Marx, Holderlin, Cervantes, Oscar Wilde, Andy Wharol, Wagner, Goethe, Racine, Frank Sinatra.

Através de todas essas convocações - tão díspares no tempo, no espaço, na índole -, o que sobressai é a sua função instrumental para a persistente digressão mental do autor textual/narrador em torno duma mancheia de interesses antropológicos e políticos.

De facto, um vector que tem muita força ao longo da obra é a reflexão (metalinguística, metaliterária, meta-histórica, etc.) constantemente presente na intromissão de um narrador que opina sobre a palavra e o conhecimento, a verdade e a mentira, os acontecimentos e as personagens, ou que especula sobre o trágico e

o cómico, ou que se pronuncia sobre a própria arquitectura da obra, etc. Um forte sabor de ensaio vai-se assim instaurando. É mais um caminho discursivo que amplia, numa perspectiva aparentemente desconstrutivista, a polivalência de um universo de sentido que se quer insolitamente construído.

Tal não parece suficiente para considerarmos esta obra prevalecentemente ensaística e não narrativa (entre ficcional e historiográfica). Porém a assiduidade e o carácter ostensivo que assumem, nessa narrativa em princípio heterodiegética, as intrusões do narrador em registo de discurso abstracto e as consequentes digressões, parecem pelo menos justificar que encaremos Vida de Sebastião Rei de

Portugal na perspectiva genologicamente híbrida do romance-ensaio, neste caso

centrado num problemática e orientado por um pensamento que têm também genealogia híbrida (de que surgem sinais esparsos ao longo do texto).

Estamos, na verdade, perante um romance-ensaio que retoma uma temática cara a correntes tradicionalistas - a identidade nacional e o papel precursor da Nação portuguesa no devir da História humana -, mas para a reequacionar numa óptica ao mesmo tempo documental e especulativa, crítica e mítica.

Estamos, enfim, perante um romance-ensaio que visa tanto o reencontro de Portugal com o seu ser profundo, quanto (de certo modo na linha de projectos libertários) o entendimento dessa sua ontologia como missão de mediador para o advento de um novo ecumenismo cultural (osmose de religiões, de raças, de padrões axiológicos e éticos, de costumes e artes, etc.) e de uma nova forma de a Humanidade estar no mundo (uma nova ordem internacional, já não ditada por conflitos de Poder, mas por harmonias de Amor).