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Perspectivismo fragmentário e conotação culturalista

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL

2. Perspectivismo fragmentário e conotação culturalista

Na «Introdução», o narrador vai convocar para a narração os testemunhos dos «painéis de Nuno Gonçalves»6 e dos representantes da geração de Avis

antepassados de Sebastião, assim como vai estabelecer paralelos com outras figuras históricas, quer passadas, quer contemporâneas, ou com figuras de ficção. É assim que nomes tão díspares - quer em cronologia, quer em funções - como Inês de Castro, Spínola, Trotsky, Mattoso e D. Quixote são evocados, para já não falar de Platão, Aristóteles ou de Cristo ou Alá. Também instituições como a Academia das Ciências de Lisboa do duque de Lafões ou a Academia da História do marquês de Alegrete não fogem à citação nestas primeiras páginas.

Esta utilização de testemunhos não é nova. Não é mais que uma técnica de um certo perspectivismo. As várias vozes, paralelas e ordenadas, ou concorrentes, ou ainda misturadas, produzem visões contraditórias. A subconversação sarrauteana7 é transpessoal, atinge um nível de profundidade tão grande que o que

importa é o leitor ser convidado a compreender-se ao ser atravessado por um enunciado estilhaçado que não domina. Afinal muito importam os não-ditos dessa farândola enunciativa, em que se introduzem fragmentos textuais que parecem

(6) - Idem, ibidem, p. 12.

exteriores ao enredo e que constituem o chamado «olho da câmara», de modo que as personagens são vistas por uma grelha de perspectivas correspondente a uma espécie de consciência colectiva.

No capítulo I continua a alternância entre «João tem...», «Joana estava», «Sebastião nasce», «Luís relata-lhe» ou «A história dos pais de Sebastião é», «A doença que se declarou» e «Passados oito dias do nascimento da criança vão baptizá-la». Também neste capítulo há aproximação das personagens quer a Dante quer a Camões, quer a Luísa Sigeia, quer a Adão e Eva, quer a Jim Morrison, quer a Frank Sinatra. Dois diplomatas, Lourenço Pires de Távora e Luís Sarmento de Mendonça, são indicados como tendo papel importante na vinda (para Portugal) e no regresso (a Espanha) de Joana, mãe de Sebastião. António Sérgio e José Régio são convocados a propósito das características da criança que nascera.8

São referidos o retrato do rei Sebastião no Livro das Ensinanças del-rei D.

Sebastião e um retrato de Joana por António Moro, que se encontra em Madrid, e

ainda de uma xilogravura de João, que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid. Fala-se de um arquivista monumental, António Caetano de Sousa, e de Jorge Ferreira de Vasconcelos, quer como autor do livro Memorial das Proezas

da Segunda Távola Redonda, quer como o autor de «versos alusivos à partida da

princesa D. Joana». De novo uma instituição, agora a Universidade, através dos

(8) - A. Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 31. (9) - Idem, ibidem, p. 33

seus catedráticos, é evocada (de modo irónico!...). Acentuam-se os intuitos de corrosão de certa imagem de figuras ou instituições conhecidas. Esta subversão de imagem pressente-se pelo ridículo em que a narração as faz cair, ou pela aproximação provocatória de entidades francamente longínquas e contraditórias, ou inesperadas e excessivas.

Logo no início do capítulo II Bosh é invocado («a época ... tem a sua consciência em Bosh») , sugerindo a emergência de toda um irracionalismo profundo. Neste capítulo «era importante que se contassem as histórias da época» e que se conhecessem os ascendentes de Sebastião. São os testemunhos de Alexandre Herculano e Pedro Nunes, de Carolina Michaelis, João Leão e Nuno Henriques, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, de Barbosa Machado na Monarquia

Lusitana, das aias da princesa Leonor e do retrato do rei D. João III da autoria de

Cristóvão Lopes, que nos vão dando perspectivas diferentes de uma situação e de um quadro em que os vários fragmentos, tão ao gosto da criação romanesca no século XX, vão ensaiando uma visão de conjunto.

A intriga múltipla, com episódios quase justapostos, adquire unidade num veio intermitente (ora subterrâneo, ora patente) em que se inscreve Sebastião e o renascimento de um Eu que é também o renascimento de um Povo, isto é, em que se postula que foi através desta figura que Portugal ganhou a certeza de que o seu destino era não só de alcance mundial, mas também imortal.

Nesta tragédia do renascer o narrador vai ainda convocar figuras míticas ou

simbólicas - Castor e Polux, Dionisos e Apolo, Eros e Psique, Janus, Átis, Osíris, Adonis, Cerbero, Quiron, Édipo -, e bem assim, como já atrás assinalámos, figuras da história política, cultural e artística, recriadas ou não, do passado ou da actualidade, portuguesas - Camões, Oliveira Martins, Teixeira de Pascoaes, Pessoa, A. Sérgio, Agostinho da Silva, A. Botto, Aquilino, Luís Pacheco, Solnado, Almeida Faria - ou estrangeiras - Cervantes, Oscar Wilde, Wagner, Groucho Marx, Andy Wharol.11

Seria curioso explorar qual o sentido da introdução de cada uma destas personalidades. Parecem especialmente fecundas as referências a Pascoaes e, entre os colaboradores d'A Águia, a poetas oriundos do espaços meridionais privilegiados por Sebastião e pelo narrador (Mário Beirão, do Alentejo, e João Lúcio, do Algarve), mas também a sua cohabitação com as referências a Luís Pacheco, estranho surrealista, a Saint-Exupéry, com todo o manancial de aventura e sonho que introduz, a Oscar Wilde, sensual decadentista mas também mestre do esteticismo e da perversidade como conhecimento (sobretudo na sua ficção de especularidade culturalista), a Wharol, com os seus desenhos, pinturas e composições desconstrutivistas, a Wagner no que tem de épico crepuscular e erótico-místico, a Cervantes com a duplicidade do Quixote, a Groucho Marx com a comicidade moderna que lhe é inerente, etc.

Em todo o caso, avultam os poderes e os interesses daquele narrador, que

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gere uma intriga com as características já apontadas e que, numa perspectiva de experimentação, utiliza a expressão verbal para aprofundar apaixonadamente o conhecimento de si e do outro. Se o futuro é incerto, a expressão verbal chega-nos incertamente também, através de uma voz que ri, disfarçando assim, com máscara carnavalesca, a angústia que eventualmente sinta.

De resto, embora o autor empírico não tenha nenhum privilégio interpretativo sobre qualquer outro leitor, não deixaria de ser estimulante ver as características da Vida de Sebastião Rei de Portugal à luz do que, em Teoria e

Palavra, António Cândido Franco enuncia, quando se refere ao acto poético - «a

passagem do som ao sentido é um acto poético que por analogia se pode encontrar na passagem da realidade textual à realidade do mundo que é a magia. A magia trabalha e trabalhou em torno e a favor da reconstituição da unidade ontológica entre o nome e a coisa, unidade esta perdida com a falta adâmica» -, a imaginação - «a faculdade que faz com que a poesia se possa actualizar em espírito [...] é a imaginação. A imaginação aproxima o homem dum sobrenatural ou seja de um sentido que se desdobra infinito para dentro da sua própria interioridade [...] a exercitação da imaginação é que leva à criação [...] o homem pensa ou entende com a razão e cria com a imaginação. A criação do mundo foi um acto de imaginação o que nos pode levar a encarar esta faculdade como divina»13 -, à criação verbal e seu alcance - «Há um momento na vida em que nos

(12) - A. Cândido Franco, Teoria e Palavra, p. 17. (13) - Idem, ibidem, pp. 17-18.

sentimos como que descontextualizados em relação a tudo aquilo que nos rodeia. A necessidade de interrogação e até de reconstrução [...] nasce desse desfasamento. Há também um momento, em tudo idêntico a este, em que o texto perde todas as referências possíveis [...] é a nudez [...] o vazio branco [...] a vertigem [...] É a aptidão que o homem tem de criar com as palavras em sobremundo [...] que o homem se torna verdadeiramente ao anoitecer, quando se ouve o pássaro de Minerva, um criador».14

A ambiguidade do mundo ficcional, no que tem de efabulatório e de referencial, é a ambiguidade do signo verbal. Sem a palavra que significa, ou seja, «sem a poesia que é capaz de avançar do som para o sentido, a redenção universal das coisas e dos seres não seria possível. [...] Através da significação [...] uma pedra pode desdobrar-se em uma asa, seu duplo [...] o aprofundamento do sentido acaba por ser sempre, à medida que vai progredindo, o aprofundamento mesmo do desconhecido [,..]».15

Por isso, Jacques Lacan afirma que o literal é litoral, ou seja que toda aquela literariedade que se pode encontrar, como letra consciente, em texto poético é sempre uma litoralidade, uma estranheza que se aprofunda como espírito ou como inconsciente. Também nesse sentido se nos impõe aquilo que a dado passo o narrador pondera: «Sebastião não se limitou a ficar acordado pela eternidade fora. Ele não só recusou, como dizem as crónicas, o sono ligeiro dos vivos, como acabou por recusar o sono profundo dos mortos. Sebastião nunca

(14) - Idem, ibidem, p. 20. (15) - Idem, ibidem, p. 28

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adormeceu e arrisca-se sempre a pregar-nos a mais inesperada das partidas».