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A indução do maravilhoso pela excepcionalidade de personagens e do protagonista

FIGURAÇÃO SIMBÓLICA E MARAVILHOSO EM

4. A indução do maravilhoso pela excepcionalidade de personagens e do protagonista

Tanto as predisposições extraordinárias do rei e do núcleo sebástico, quanto a incompreensão envolvente, manifestam ao leitor que medo e fascinação, sofrimento e êxtase aventuroso, são transes (e atributos) inalienáveis para se assumir uma vivência plena de criatura e de representante salvífíco de um Povo.

Estas experiências, revelações sincopadas e lacunares de aspectos do poder divino, por um lado encontram limitações de linguagem e por outro, e exactamente por isso, motivam modos de dizer novos (não só, nem sobretudo, pelo ineditismo vocabular, mas pela translação semântico-pragmática viabilizada por inusuais associações sintagmáticas e diegéticas, por transgressões narrativas). Como a linguagem apenas pode sugerir, por termos tirados da experiência natural, o que ultrapassa essa mesma experiência, quer as hierofanias, quer a terminologia alegórica, quer a pulverização dos elementos estruturantes da narrativa, quer ainda a subjectivação da História sobrevêm, num intento de fuga à prisão de palavras, de nexos discursivos e de situações, numa tentativa de conquista de liberdade que torne possível a criação de mundos desejados.

Sebastião surge-nos desde a Introdução da narrativa com traços complexos e desconcertantes, que por vezes parecem querer-se envoltos em poética indeterminação. Trata-se, aliás, de uma aura de sugestão em torno do protagonista

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perfeitamente congruente com a decisiva asserção que, logo nos preliminares da obra, o narrador profere sobre a índole e o sentido histórico-nacional da figura de D. Sebastião: «Agora neste livro vou falar de Sebastião. Eu acho que a história de Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos de vida a criar mundos desde as Canárias até às Molucas. Se as feridas de Inês foram a fonte onde Portugal bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento, as feridas de Sebastião foram fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da velhice e da ressureição. (...) Sebastião é, além de Inês de Castro, a única figura verdadeiramente poética da história de Portugal.»

Por outro lado, de modo discontínuo mas reincidente, o narrador atribui a Sebastião (e enfatiza como traços identificadores da sua personalidade e até do seu valor arquetípico) os traços mais díspares e mais ou menos inesperados, à contraluz do horizonte de expectativas do leitor informado pelas lições tradicionais sobre a respectiva personagem histórica. Assim, ele será herói ou anti-herói, e será também o «amante», o «louco», o «mistificador», o «bufão». Por isso, num regime discursivo que, com frequentes lances de extrapolação e de redução, passa do anedótico ao mitográfico e ao historiosófico, Sebastião tanto aparece capaz de apontar uma espada, mas uma espada de papelão, numa atitude grotesca de lutador vencido, quanto se vê exaltado como digno representante da dinastia de Avis, que, criado nas planícies do Sul, vai, de costas para um Norte activo e produtivo (mas

(62) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, p. 11.

circunscrito no seu bom-senso) entregar-se, «do alto das ameias de melancólicos e esboroados castelos», «a um delírio de expansão e de além».64

Como sempre acontece, a acesa loucura traz grandiosas e trágicas consequências. Não se trata de um homem apenas desadaptado ao seu tempo, e incompreendido, e acossado por uma patologia pessoal, mas sim de alguém que é resultado de um longo processo familiar e histórico. Por isso, sendo «Santo ou criminoso», «cómico», «espirituoso» ou «fanfarrão» e «palhaço», este rei peculiar escapa-se da História com as suas dez mil guitarras, porque está interessado em «inventar as coisas impossíveis». Amando «o sentido do estranho» que os mouros possuíam, o jovem monarca era de um individualismo e de um aventureirismo que assustavam os que tinham preocupações de governação. Viajar, peregrinar, penetrar no desconhecido, eram aspirações que o arrebatavam completamente. Por isso, o narrador faz questão de inferir que Sebastião era «um ser sujeito à depressão da rotina e da urbanidade ou seja um ser destinado às origens e às rupturas mais violentas».

Sebastião não suportava a mediocridade em que queriam fazê-lo mergulhar, quer como rei, quer como homem. Fugiu espavorido da «estúpida» corte de D. João III, «farto do tio que tinha ar de caprídeo, farto da avó que era maníaca e farto das primas que passavam os dias a enfiar colares». Recusava o espaço da corte e recusava as gentes, familiares ou não, que o cercavam.

A esterilidade vigente queria ele opor a estimulação do sonho. Para que

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esta atitude criativa produzisse obra era necessário que ele se afastasse corajosamente daquele ambiente.

Um jovem com estas características, descendente e depositário da tradição de Avis, só poderia afirmar-se e realizar-se no tragicamente diferente - num trajecto de vida como que preparado pelo amor excepcional entre os seus invulgares pais, João e Joana.

De Joana destacam-se «o acarinhar entre as mãos o amor dos outros», o ser «inocente» mas «capaz de praticar certas crueldades». Tinha hábitos de alguma austeridade, «com horas muito rígidas para levantar e deitar». Tinha de fazer orações «onde ardiam velas e cheirava a incenso e outros perfumes».65 Aparece

aproximada à infanta D. Maria devido à sua «independência de modos»; e refere-se «A futura misoginia de Sebastião [que] poderá ter herdado da mãe alguma desta independência do modo de ser».66 Ao deixar Espanha chorava e mostrava uma

certa severidade na sua tristeza; porém o Tejo surpreende-a e vem alterar-lhe a sua melancolia. Era comedida, de «compostura rigorosa e rígida» embora fizesse «pequenas pantominas», sabia «piano, latim e história».67 Enfim, inculca-se-nos

que a Princesa D. Joana se deixava captar pelo extraordinário e pelo fantástico. João surge-nos como um ser com «outro ânimo, outra lucidez e uma outra bondade», «suficientemente forte para ter inspirado um poema a Fernando Pessoa,

(65) - Idem, ibidem, pp. 19, 20, 21. (66) - Idem, ibidem, p. 21.

que foi sensível ao seu destino»68, bondoso, gostando de olhar as movimentações

das nuvens e de apreciar, como que vocacionado para o enigma, os «nós» da madeira e os «entrançados» de mantas. É observador, dotado de «uma vista apuradíssima», e tem «um faro palpitante [...] mais instintivo do que reflexivo».69

O narrador sublinha que conseguira sobreviver entre nove irmãos; e, tendo uma «raridade absoluta», não só, como já vimos, é aproximado simbolicamente ao cão, como também fita o escuro «como um jovem galgo [...] tem o nervoso intenso que lhe activa mais a imaginação que a vida» e, complexo, frágil e enigmático, possuindo uma «imaginação riquíssima e uma liberdade de modos surpreendente», apreciava andar sozinho à procura de «pistas e desígnios».

Generoso e risonho, de «ar sonhador e imaginativo», o filho herdou-lhe o desejo de liberdade e a sabedoria. Sente-se bem em ambientes de «acampamento de ciganos e da feira da ladra». «Podia usar um chapéu negro de cigano ou dançar um ágil sapateado bem batido». É também aproximado aos toureiros («Tem um lenço preso à cintura, como esses rabichos que os toureiros usam às vezes no pescoço»). O seu «ar lúcido» era «o ar de estratosfera por onde andam aqueles que, como Cyrano de Bergerac, de Rostand, olham a Terra do alto. O olho esquerdo é diferente do direito e é possível que este príncipe, com alguma coisa de diamante, tivesse miopia. A astúcia domina a sua figura».71

Para o desconcertante senso interpretativo (e para o desenvolto vezo

(68) -Idem, ibidem, p. 19. (69) - Idem, ibidem, p. 20. (70) - Idem, ibidem, p. 21. (71) - Idem, ibidem, p. 33.

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assertivo) do narrador, João «Equipara-se com toda a facilidade a figuras mitológicas como Átis, Adónis ou até Osiris» («cujo corpo dava, depois de morto, espigas de trigo», acrescenta o narrador cioso de explorar o simbolismo desse deus agrário do velho Egipto, representativo do drama da existência humana enquanto votada à morte mas dela triunfando periodicamente), tal como se vê comparado também a Frank Sinatra («esse adolescente que morreu à janela, a cantar debaixo da chuva como o Frank Sinatra debaixo das luzes»).

As aproximações deste ser tímido e sonhador ao pastor alentejano (donde se pode retirar a caracterização da simplicidade originária), ao fogo puro, rápido e regenerador, ao carácter nómada da população cigana e a um ambiente, desordenado e aberto, de feira da ladra, mostra-nos alguém que permanece em busca de outro mundo, indefinido mas apelativo.

«Os olhos tinham um pouco a ver com os do pai, que eram baços e amarelados. Os dele eram luminosos e avermelhados [...] O filho herdou-lhe não só a liberdade e as palavras sábias de pequeno príncipe, como o fogo puro que tão depressa consumiu um como levedou o outro.», realça o narrador. Mas também, tal como fará mais tarde com o filho do Príncipe D. João, o mesmo narrador tanto o aproxima da figura de «bobo da corte e bufão de serviço», quanto põe em

evidência o fascínio que João sente pelo «azul do mar», símbolo, como o azul celeste, do Infinito.73

Do amor dos pais de Sebastião teríamos de reter a força avassaladora, uma energia última, profunda e sobre-humana. Era do convívio com a natureza - floresta, mar ou campos - que os seus progenitores retiravam forças, numa ansiedade doentia de viver pleno, que só se entende quando João morre, ao satisfazer uma sede física enorme que se agudiza quando «os campos estavam todos carbonizados e amarelos». Esta patológica sede insaciável mais não é do que sinal de uma outra sede de absoluto, para a qual João não encontra solução. É por isso que surge a morte como via para uma última e imprescindível abertura; é por isso que, para o narrador, «a história de ambos é tão trágica, e tão bela como a de Inês de Castro e a de Pedro».74

Filho deste raro e trágico amor, Sebastião, criado sem pai e sem mãe, é alimentado por uma misteriosa mulher que vozes sem nome e António Caetano de Sousa julgam chamar-se, elucidativamente, Inês, com todas as conotações que, neste autor ficcional, este nome acorda e reactiva.75

A seu lado, há que destacar o aio Aleixo de Meneses cujo perfil evidencia a sua rara capacidade de intuição, junto a outros traços dissonantes e intrigantes. De «ar seco e fantasmagórico e cabelo raro» faz lembrar Quixote; mas, ao mesmo

(73) - Idem, ibidem, pp. 21, 24, 24. (74) -Idem, ibidem, p. 19.

tempo, esta personagem, «espécie de aparição de neve e de nevoeiro», acrescenta à «pontualidade» e «meticulosidade» um «ar engraçado de fantasma de circo» ou de «momo de feira», ou ainda de «poeta popular».76 Pode concluir-se que as

características deste aio antecipam já potencialidades que se converterão em aspectos da maneira de ser do jovem príncipe.

Do ponto de vista familiar há ainda que pôr em evidência relações positivas entre Sebastião e seus tios Luís e Duarte. De D. Duarte herdaria a facilidade de pensamento. Quanto ao relevante poeta maneirista, Infante D. Luís, não se deixou manipular e acabou por se afastar da corte, indo para Beja «onde caça e estuda»; e, tendo-o por liberal, generoso e ágil de espírito, considera o narrador que ele deixou marcas indeléveis no sobrinho, o qual «herdou o melhor do espírito deste seu tio».7

A própria educação posterior de Sebastião ora é levada a cabo por jesuítas, como era prática selecta da época, ora se processa em experiência directa de contacto com o povo ou com filhos de aristocratas que se deixam cobrir de caracterizações de marginalidade (segundo o narrador, mais parecem «grupos de salteadores», ou «bandidos», ou «anarquistas»).

Curiosamente a escolha de mestres para este adolescente tão especial recairá sobre os jesuítas Luís Gonçalves da Câmara, professor de Humanidades descendente dos descobridores da Madeira, e Amador Rebelo, ligado a Africa e ao

{16)-Idem, ibidem, pp. 54, 55, 55.

(77) - Idem, ibidem, pp. 11,41. (78) -Idem, ibidem, pp. 114, 115, 115.

imaginário popular e conhecido por ser «meticuloso sem ser exigente».79 Também

estes mestres sentiam seduções e interesses que podiam vir a desenvolver certas apetências latentes no discípulo.

Num núcleo contrastivo de personagens temos seu avô, D. João III, que no capítulo II, «Incursões sobre a muralha», nos surge como indolente, como incapaz de adquirir rudimentos de língua latina e como um desinteressado pela poesia portuguesa. Altivo e supersticioso tem, no dizer do narrador, «qualquer coisa de sinistro» e «Em adolescente já tinha a pele amarela e húmida, gorda e cerosa».80

Chamado de bobo, fora uma criança infeliz.

Neste grupo surge também seu tio Henrique, frio de carácter, ambicioso, sem escrúpulos, intransigente, severo e até violento, embora aplicado e trabalhador.

Sua avó, Catarina de Áustria, é recorrentemente focada como alguém que não entende o neto, nem os seus interesses, nem as sua pretensas empresas. Enleada pela corte lisboeta, não intui nem consegue 1er as entrelinhas mais latentes. As ansiedades e as inquietudes dos futuros sonhados passam-lhe completamente despercebidas.

Por isso, prevalecendo-se dos recursos metacronológicos (ou anacrónicos) típicos desta narrativa pós-moderna, o narrador associa estas personagens adversas ao destino misteriosamente extraordinário de Sebastião e a paradigmática

(79) -Idem, ibidem, p. 58. (80) - Idem, ibidem, p. 38.

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incompreensão que perante esse destino manifestou António Sérgio - numa linhagem de racionalistas que não se elevam, segundo o narrador, para além do pensado ou do verificado.

Escola importante é a vida na natureza (planície e serra, campina e bosque, mar e rio, ou ria), no meio de animais (ovelhas, cavalos e touros), de dia, de noite e nos crepúsculos aurorais.

Mas se o narrador tem toda a preocupação em traçar os perfis de Sebastião e dos que lhe estão perto por afinidades electivas como «poetas», convirá explicitar ainda algumas das características inerentes a esse epíteto. Assim, para além de uma certa agilidade de espírito, rara intuição, capacidade de criação de projectos, há ainda os aspectos de incompreensão e consequente solidão social, de papel subversivo, ou de resistência selvagem aos defeitos da civilização, de transformação de uma excepcionalidade em génio, em herói e em mito.

Este aspectos ressurgem complementarmente e em simultâneo da afirmação de cada um deles.

No capítulo III, «O menino», vemos os astros a assinalar a vinda de Sebastião ao mundo, quando «os trovões do céu podiam parecer foguetes».

Sebastião começa a ter um recorte verdadeiramente original logo no

(81) - «António Sérgio chamou-lhe asno e eu acho que sim, que o burro de Balaão viu no caminho o que o profeta não foi capaz de ver (...). Um burro vê mais depressa os anjos e os arcanjos dos outros mundos que um homem, por mais letrado e filósofo que seja.» (idem, ibidem, p. 14), «a sua história, como a de um pobre tolo, está cheia daqueles disparates que acabam mais por fazer rir que chorar e cujo interesse o nosso António Sérgio não foi capaz de medir. O elogio do disparate que fez rir e a apologia dos tolos à D. Quixote, num mundo cada vez mais esburacado pelo juízo dos homens sérios e razoáveis, bem pode, ó António Sérgio, começar.» (p. 205).

(82) - Idem, ibidem, pp. 12, 24, 28 e 29. (83) - Idem, ibidem, p. 49.

primeiro capítulo, desde que se refere o secretismo do seu nascimento («correram sempre as histórias mais desencontradas e misteriosas sobre este nascimento [...] todas elas com qualquer coisa de enigmático e de verdadeiro [...] a história do nascimento de Sebastião nunca foi inteiramente clara») e se evoca a ideia corrente da «troca de crianças no berço, um pouco ao modo de Moisés».84

Do mesmo modo a excepcionalidade do príncipe é marcada pelos invulgares sinais corporais da criança recém-nascida. É um príncipe com «cara adorável», mas com «seis dedos no pé direito», «bébé ambíguo, de unhas fortes e rijas e de cor tão mimosa e tenra como uma flor», «orelhas peludas de burro e dedos de quadrilheiro» (que ao narrador fazem lembrar «o príncipe com orelhas de burro de José Régio talvez porque [...] António Sérgio chamou pedaço de asno a

Sebastião»).85

São estas marcas que se constituirão progressivamente em «sinal misterioso de uma eternidade», embora, com a «sua ambiguidade e a sua voz de falsete», tenham acusado Sebastião «de misoginia, de homossexualidade e de outras perversões mentais».86

Entretanto sobrevêm a aproximação ao Menino Jesus, que se vai tornando cada vez mais notória quer pelas situações que Sebastião vive e que se assemelham

(84) -Idem, ibidem, p. 31. (85) - Idem, ibidem, pp. 31 e 32. (86) -Idem, ibidem, pp. 14 e 51.

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à História Bíblica, quer pelas referências directas e repetitivas do narrador («Sebastião tinha alguma coisa de Menino Jesus», «O Sebastião pequenino pode ir para um altar de igreja de província entre talha dourada e mármore de Vila Viçosa», etc.)- E se «Sebastião é mesmo nesta idade de menino, o Menino Jesus da cartolinha», ele é também «o Menino Jesus entre os doutores».87

Numa primeira fase, apenas com meia dúzia de anos faz pasmar os seus mestres e a própria corte: emite opiniões pertinentes que ultrapassam a sua idade, mostra rara e alargada cultura, desenvolve raciocínios inesperados. É então que o próprio Sebastião parece dizer que «será capitão de Deus» e que afirma «Em sendo grande hei-de ir conquistar a África»88 - predição (e auto-predestinação)

que a edição da narrativa de António Cândido Franco destaca como lema ao inseri-la na capa, sotoposta ao título.

A esta maturidade pouco própria da idade vem aliar-se uma sageza intuitiva que revela capacidade de percepção sensorial e afectiva, à maneira do Petit Prince de Saint-Exupéry. Decisão de caminhos e intuição para captar o que apenas se adivinha são dois aspectos que raramente coexistem, mas que Sebastião parecia precocemente desenvolver.

Mas tal siso de criança é considerado pelo narrador como um excesso, «o primeiro sinal da anormalidade ou da loucura do rei Sebastião».89

Este desenvolvimento intelectual e moral é acompanhado também de um

(87) -Idem, ibidem, pp. 58, 59 e 60. (88) - Idem, ibidem, pp. 60 e 66. (89) - Idem, ibidem, p. 65.

desenvolvimento físico pouco comum. O bastar-se a si próprio, sem ajudas do camareiro, o modo como veste («veste-se com a rede de acrobatas»), ou os comportamentos que assume com seu «ar de artista de circo», impressionam os que o rodeiam (e note-se, o narrador), passando a ser voz corrente os seus feitos «inquietantes», ou as suas reacções tão pouco habituais e para-taomatúrgicas, como o facto de os seus ferimentos sararem «de um dia para o outro» e o seu sangue secar dificilmente onde cai. Assim ganhava aura e gerava maravilhoso: «As monjas da Anunciada e as de Xabregas tinham visões com ele.».90

Mais tarde, é em convívio solitário com a natureza que Sebastião se vai desenvolvendo fisicamente: «Onde se opera esse desenvolvimento físico é no Ribatejo, nos arredores de Almeirim e de Salvaterra de Magos, onde passa agora grandes temporadas».91

E quando, na contrafacetada página derradeira, o narrador destaca que «Ele queria era andar pelo Ribatejo que é o Tejo feito terra»92, intuímos que, sem

embargo do contexto burlesco, aí culmina um vector textual de valorização da importância do habitat propiciatório ao destino mitogenésico de Sebastião, pois terra fértil é a de aluvião, a terra ciclicamente submersa, e é neste ambiente de massa moldável que é possível a regeneração do Homem, dos povos, do mundo.

(90) - Idem, ibidem, pp. 66 e 67. (91) - Idem, ibidem, p. 66. (92) - Idem, ibidem, p. 206.

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A prática contínua de exercícios diários e violentos com sacos de areia, pedras e troncos de árvores pesados, confere-lhe uma força tal que começam a surgir «histórias inquietantes» em Lisboa.93

O espanto é geral ao saber-se que, com 11 anos, cortara com a espada uma tocha de quatro pavios e matara um porco selvagem. Esta excepcionalidade alarga-se, não incidindo apenas no aspecto físico. Outros acontecimentos são referidos como as «histórias misteriosas nos matagais», os «passeios» estranhos, «os dias perdidos entre os sobreiros» e ainda o convívio com animais, em estábulos, onde acaba por dormir, paralelamente ao ter-se tornado «num domador infalível de cavalos selvagens e em exímio corredor de touros».

Desta faceta de D. Sebastião, ou desta vertente do insólito Bildungsroman que também é Vida de Sebastião Rei de Portugal, retira o desenvolto e peremptório narrador, no seu registo sapiencial e doutrinador, associações de ludismo libertador de constrições convencionais, estímulos de desmesura temerária e qualificações ético-políticas: «Sebastião governou touros e domou potros da Golegã e de Abrantes. Aprendeu acrobacias com saltimbancos e viu engolidores de fogo nas encruzilhadas que há ao pé de Almeirim. Foi lá, no Ribatejo, em contacto