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A tradição do romance histórico e o seu sobredeterminado relançamento

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3. História e ficção na narrativa contemporânea

3.1. A tradição do romance histórico e o seu sobredeterminado relançamento

A narrativa, enquanto modo literário, não pode ser alheia às inflexões dos vários movimentos literários, nem às transformações e preocupações globais,

(11) - Cf., entre outros, Isabel Roman, «La organization enunciativa de la novela histórica» in Discurso, N°2, 1988, p. 119.

(12) - Maria de Fátima Marinho, O romance histórico de Alexandre Herculano, Porto, 1992 (sep. de

Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras, II série, Vol. LX), pp. 98, 99.

ideológicas ou filosóficas, que àqueles subjazem. É, pois, natural que a narrativa evolua e reflicta as grandes questões de cada época.

Ora, nesta perspectiva, há que reconhecer e valorizar mais uma vez o interesse que pelo passado nacional se torna hoje bem notório - não como facto inédito, mas como relançamento de uma tendência oitocentista. Com efeito, o interesse pela História e, em especial, pela Idade Média, era elemento constitutivo da estética romântica, realizado sobretudo no drama e na narrativa historicistas.

O cânone do romance histórico, tal como o estabeleceu Herculano em nota da revista Panorama, aponta para a revivescência da poesia nacional e popular, para a representação da vida íntima das épocas passadas e para a ressurreição estética da vida social da época histórica em que decorre a acção novelística, expressando o modo de sentir e de existir do Povo (isto é, de uma nacionalidade, conduzida pelo seu Volksgeist) u. Este cânone é, aliás, o que se pode deduzir da

leitura dos romances de Scott.

A narrativa histórica, inicialmente, obrigava à colocação da diegese em épocas históricas remotas, à utilização de estratégias narrativas capazes de reconstituírem com minúcia ambientes e lugares, e, ainda, à colocação das figuras referenciais muitas vezes em segundo plano, não só para protecção da imagem dessas mesmas personalidades como para facilitar a liberdade do escritor, na sua

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tarefa criativa.15

«Aquela mania que [...] se apoderou de nossos autores de chamar as personagens de romances e melodramas de Carlos Magno, Francisco I ou Henrique IV...»16 era uma 'mania' elucidativa dos interesses e gostos daquele

momento histórico.

Se em quase todas as épocas da História se cria uma utopia, geralmente prospectiva, verificamos que, curiosamente, a utopia romântica tem a particularidade de se projectar sobre o passado, de aparecer afinal como utopia retrospectiva - embora visasse antes ser genuinamente refontalizante, mas não menos interventiva. Querendo-a compensação ou factor de reconversão das realidades presentes, os românticos, antes de a colocarem no futuro, fizeram-na, originalmente, atravessar o passado.

A busca de uma identidade nacional, abalada pelas convulsões sócio-políticas dos fins do século XVIII e inícios do século XIX, provocou um revisitar da Idade Média no intuito de encontrar, nessa época de formação das nacionalidades europeias, os fundamentos de soluções para os problemas coevos. Idênticas razões explicarão hoje a emergência pujante do romance ou da

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novelística histoncista.

(15) - Cf. G. Lukács, Le roman historique, Paris, Payot, 1965. Sobre este paradigma e sua realização oitocentista, veja-se, além do estudo citado de Maria de Fátima Marinho, a obra de Harry E. Shaw, The

Forms of Historical Fiction - Sir Walter Scott and his Successors, 2" ed. Ithaca/London, Cornell

University Press, 1985.

(16) - Alfred de Musset, «Cartas de Dupuis a Cartonei», apud Luzia Lobo, Teorias poéticas do

Romantismo. Porto Alegre, 1987; Jacques Leenhardt, «A construção da identidade pessoal e social através

da história e da literatura», in J. Leenhardt e Sandra J. Pesavento (orgs.), Discurso Histórico e Narrativa

Literária. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998, p. 41.

(17) - Cf. Adriana Alves de Paula Martins, História e Ficção - Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed., 1994, pp. 17-21; Maria de Fátima Marinho, «O romance histórico pós-moderno em Portugal», in Actas do

«Assim, se tentarmos analisar com imparcialidade crítica a criação literária em Portugal pós-25 de Abril, chegamos rapidamente à conclusão de que cada era nova se contempla no espelho imaginário da sua própria história. É essa uma procura essencial de identidade. Eis a razão por que os temas da revolução republicana de 1910 ou o da revolução liberal de 1820 ou o da revolução de 1383 ou ainda o tema longínquo, mas omnipresente na sua essência mítica, das Descobertas, ou até o tema da fundação de Portugal estão a surgir frequentemente em romances, novelas, poemas, teatro, ensaios literários ou de história, mesmo quando conjugados com o testemunho imediato.».18

Por um lado, é pois um problema de reequacionação de identidade que poderá explicar o relançamento actual da narrativa histórica, não só quantitativamente mais relevante, mas também redireccionada. Na verdade, enquanto até aos anos sessenta a ficção de inspiração histórica (narrativa ou dramática) visava, como no modelo romântico, a intervenção de certa literatura politicamente engagée (Sttau Monteiro, Cardoso Pires, Bernardo Santareno...) através da transposição de questões de actualidade para situações e agentes de tempos passados, agora a ficção historicista, com a subversão daquele modelo,

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visa outras formas de conhecimento e uma nova reflexão sobre a identidade nacional e sua incorporação na história da Humanidade.

Quer as obras ensaísticas - que vão desde a perspectiva sociológica pós-marxista de um Boaventura Sousa Santos sobre um Portugal que (pretensamente) «não tem destino»19 até às perspectivas mais matizadas de

Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do imaginário nacional e da inquietação ontológica de Portugal como Destino™, ou às perspectivas mais mitófilas e etnocêntricas de um Agostinho da Silva21, ou à ontologia de Portugal

desenvolvida por António Quadros nos parâmetros mentais da «filosofia portuguesa»22 -, quer em obras de carácter ficcional (José Saramago, Agustina

Bessa Luís, J. Cardoso Pires, Almeida Faria, Mário Cláudio e, entre outros, A. Cândido Franco), verificamos que o problema nacional de desterritorialização (consumado em '74 com o 25 de Abril) e de reterritorialização (ainda em curso, com a integração numa Europa com quem vivemos de costas voltadas tantos séculos) nos tem vindo a causar trauma profundo, para o qual ainda não conseguimos superação.

Por outro lado, como ressalta por exemplo na narrativa de Mário de

(19) - Esta é uma das teses anti-tradicionalistas de Boaventura de Sousa Santos em Pela mão de Alice. O social e o politico na pósmodernidade. Porto, Afrontamento, 1994.

(20) - Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1978; idem, Nós e a Europa ou as duas razões, 3" ed., Lisboa, INCM, 1990; idem, Portugal como Destino. Lisboa, Gradiva, 1999.

(21) - Agostinho da Silva, Considerações e outros textos. Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.

(22) -António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1986 e 1987; idem, A ideia de Portugal na literatura portuguesa nos últimos cem anos. Lisboa, Fundação Lusíada, 1989. Cf. também, entre outros, António Telmo, História Secreta de Portugal. Lisboa, Ed. Vega, 1977; idem, Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Lisboa, Guimarães Ed., 1981; idem, O Horóscopo de Portugal. Lisboa, Guimarães, Ed., 1997.

Carvalho , têm actuado novas cumplicidades genológicas numa idêntica ambição discurso historiográfico, por oposição ao discurso literário, era considerado objectivamente referencial.

É certo que, por parte do leitor dos estudos de História e das criações de Literatura, é diferente a atitude perante os dois discursos narrativos - pressupondo-se na recepção do historiográfico que os referentes textuais são congruentes com os factos do mundo empírico (natural e histórico) e que os enunciados transmitem informação veraz e pertinente para a integração cognitiva e prática do leitor nesse mundo empírico, e pressupondo-se na recepção do literário que essas regras semântico-pragmáticas são suspensas e a mensagem só tem de responder, num regime de referencialidade mediata e de ficcionalidade polivalente, a regras estéticas.24

Todavia, discurso (de relato) historiográfico e discurso (de ficção) literário podem assumir aspectos bem comuns: são construções em linguagem verbal (mas no fundo semioticamente heterogéneas) de tipo narrativo25 que estão na dependência

duma categoria temporal e que pressupõem selecção e organização daquilo que vai constituir-se em centro da narração. É evidente que, ao seleccionar e organizar, o historiador (tal como o escritor) está a fazer opções em que imparcialidade e objectividade são impossíveis de pôr plenamente em prática com rasura das injunções da sua própria historicidade e subjectividade; há critérios implícitos ou explícitos de escolha que podem ter carácter ideológico ou outro.

(23) - Maria de Fátima Marinho, «O sentido da História em Mário de Carvalho», in Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras do Porto, Vol. XHI, 1992, pp. 257-267.

(24) - Cf. Siegfried Schmidt, La communicazione letteraria. Milano, il Saggiatore, 1983, pp. 57-88; idem,

Foundations for the empirical study of literature. Hamburg, Helmut Buste Verlage, 1982, pp. 49-55.

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Afinal, enquanto (trans)linguísticos construtos humanos, ambas as narrativas - relato historiográfico e ficção literária - não se distinguem claramente num horizonte de plausibilidade; e, no horizonte interpretativo de hoje, o próprio leitor cada vez mais aproxima as formas efectivas do real empírico e as formas virtuais do que poderia ter sido - «mundos possíveis» historicamente irrealizados e literariamente viabilizáveis. A verdade e a reelaboração da verdade quase se misturam; instalada a atitude de dúvida,

sobrevêm o processo de reflexão ideológica.

Aliás, como Nelly Novaes Coelho refere, uma nova atitude narrativa de teor surrealista fez-se sentir em Portugal, surgindo assim uma nova visão no que diz respeito à apreensão do real objectivo. Este deixa de ser apreendido como um fenómeno estável e passa a ser entendido como um processo que precisa de ser descoberto no seu devir pela imaginação criadora. A «palavra-depoimento» dá lugar à «palavra-invenção» na redescoberta do real, promovendo ou gratificando a adesão à ambiguidade.

Esta tendência desenvolve-se na década de sessenta e agudiza-se na de setenta, até porque a própria revolução do 25 de Abril obriga à reorganização da nossa auto-representação histórica. Na década de oitenta o diálogo entre História e ficção agudiza-se; José Cardoso Pires e Augusto Abelaira introduzem uma nova fase naquele diálogo; Almeida Faria e Saramago avivam a atitude de incerteza e levam à pulverização da identificação do discurso da História como discurso do factual.

(26) - Cf. Nelly Novaes Coelho, «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea», in

Colóquio/Letras, N° 12, Março 1973, pp. 68-74, e Adriana Alves de Paula Martins, História e ficção - Um diálogo. Lisboa, Fim de Século Ed., 1994, pp. 18-19.

Viajar nessa literatura é procurar encontro com outro ou outros de quem nada conhecemos ou que embora conhecidos têm sempre algum recanto mais sombrio ou insondado - sua face lunar (como no canto de Rui Veloso). É, em última instância, encontrarmo-nos com algum eu nosso, também até aí meio obscurecido. Múltiplos eus, múltiplos eles, múltiplos tempos e espaços, velho desejo infantil não confessado de superiormente, fora do tempo, vaguear sem fronteiras, lançando um olhar indiscreto (como o narrador de Jacques Tati que em Playtime destapa telhados) sobre o passado, o presente e o futuro.

Esta curiosidade quase mórbida, movida por uma interrogação universal, traduz a busca forte e incessante do ser individual e do ser nacional. Esta viagem pelos imaginários do autor e do leitor, em que, pelo menos do ponto de vista das expectativas, se cortam amarras com o real empírico, seduz profundamente sobretudo quando os elos civilizacionais são cada vez mais sofisticadamente enleantes e decepcionantes e a cidade tece em volta dos seus habitantes teia dia a dia mais apertada.

O enorme poder que a linguagem e o discurso literário têm de criar mundos ficcionais converte-se, pois, em alimento básico do solitário e desidealizado homem finissecular. Este facto tem vindo a revelar-se excepcionalmente fecundo, quer do ponto de vista individual, quer do ponto de vista social e até político. O sonho, o idealizado, o projecto caminham sempre à frente, ou traçando caminhos ou provocando desafiantes interrogações. É pois natural que, após a "morte de Deus", da crise da crença no Progresso, nas ideologias e até na Razão, o Homem ensaie resolver

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o puzzle que arquitectou arduamente, para assim fugir ao inevitável suicídio pessoal e colectivo.

Se esta atitude é percepcionável em casos individuais, muito mais claro é o mal-estar nacional de que as produções literárias em língua portuguesa desta década são sinal. São múltiplas as publicações que mostram os portugueses como náufragos, loucos, cegos, em rota da conquista territorial ou marítima da sua História. As incoerências estratégicas de teor cultural e político dividem opinões e colocam profundos problemas de identificação a nível da Nação. No que a tal concerne, há um sentimento difuso de crise; e perante os discursos identitários (e os que em registo de crítica sociológica os enfrentam) - frequentes, como já referimos, a nível do ensaio filosófico, literário, histórico ou político, como a nível das criações literárias - o que mais importa aqui pôr em destaque é o interesse que o tema parece despertar, na ansiedade da inventariação de hipotéticas soluções para que os vazios sejam preenchidos.

Género literário de relançamento assim plurimotivado, o romance histórico actual cruza-se com outros géneros narrativos, num hibridismo tão conforme ao gosto sociocultural da nossa época e da estética pós-moderna.27 Usa registos

diversificados, permite discursos vários, desvanecendo limites e barreiras numa estética simultaneamente sedutora e assustadora pela abertura que a distingue. Se para o Romantismo, dada a sua conhecida complexidade, Paul Valéry já afirmava que para o definir ter-se-ia primeiro de perder a noção de rigor, hoje, neste

(27) - Linda Hutcheon, A Poetics of Posmodernism - History, Theory, Fiction. New York/London, Routledge, 1988.

atender, no plano da estruturação do discurso, à complexa fragmentação do eu, à multifacetada zona obscura da pessoa, a todos os mecanismos de frustrações e transferências pessoais ou colectivas que a psicanálise e outras ciências têm cuidado de desvendar.

De resto, o romance histórico contemporâneo insere-se num momento da evolução da mentalidade ocidental ao mesmo tempo agnóstica e religiosa, materialista e ocultista, anarquista e revivalista, céptica e sequiosa de Absoluto, irónica e passional - enfim, mais um dos periódicos «fins de tempos» de ressonância bíblica, em busca de novas e adequadas soluções discursivas.