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Hibridismo histórico-ficcional

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL

1. Hibridismo histórico-ficcional

Hibridismos, pluralidades - pluralidade de vozes, pluralidade de tempos, pluralidade de perspectivas para uma articulação interactiva de pontos de vista, no dizer de Bakhtine1 -, enfim uma estética da abertura tão ao gosto pós-moderno, e

numa narrativa cuja tónica é pensar o passado para compreender o presente, tão ao gosto nietzscheano - eis o que também ocorre na Vida de Sebastião Rei de Portugal, de António Cândido Franco.

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Como já sabemos de capítulos anteriores2, dentro das consequências habituais

dos factores contextuais e das pressuposições motivadas cataforicamente, a pragmática da leitura conduziria a uma recepção da obra como relato historiográfico, particularizado no género biográfico. Todavia permanece duvidosa a natureza da narrativa, em termos de convenções comunicacionais de ficcionalidade e referencialidade. É biografia? É ficção? Germinante logo no título, a ambiguidade mantém-se em quase toda a narrativa.

Num primeiro momento de contacto com esta obra de António Cândido Franco, as expectativas de que se vai 1er uma biografia de alguém que teve importância histórica decisiva no trajecto colectivo de um Povo são alimentadas quer pelo seu título Vida de Sebastião Rei de Portugal, quer ainda pelo índice anteposto, em que surge uma introdução - parte determinante em obra que se pretende inculcar como tendo (também) dimensão de discurso científico -, por um capítulo X intitulado «Notas sobre o Encoberto», e no final, como encerramento, por um espaço reservado à indicação de fontes e denominado mesmo «Fontes». No mesmo sentido actuam o teor das notas ao longo do livro e ainda, mais curiosamente, as ilustrações atinentes ao confronto dos exércitos luso e mouro em Alcácer-Quibir.

Porém, mal lê a introdução do livro o leitor dá-se conta que grande

subversão genológica começa a ser anunciada, para depois a ficção se ir instalando ao longo da obra.

É verdade que já na própria capa e na folha de rosto da publicação, se observarmos bem a mancha gráfica do título verificamos que o nome Sebastião está em caracteres que têm o triplo do tamanho (quer em altura, quer em espessura) dos outros que lhe estão próximos. Supremacia clara de uma figura face a uma simples vida de um Rei de Portugal, se é que para tal elemento peritextual poderemos fazer esta leitura em termos de cratilismo secundário. Muito mais longe iremos, à medida que formos penetrando na narrativa.

Desnorte, curiosidade, sem dúvida interesse, para quem gosta de viagem que, acredita-se, possa ser inesperada e aventurosa. Viagem ao redor de uma figura histórica, ao sabor da imaginação, através de múltiplos espaços, de plurívocos tempos - ambição primordial de entrar em poderosa máquina de tempo que faculta visitas a eras variadas, sem documentos de passagem, sem limitações; enfim, desejo profundo de abalar impunemente o presente pelo passado e pelo futuro.

A escrita, ao mesmo tempo simples, por vezes quase desleixada, e provocatória de tão desconcertante, é convocada para a criação desse momento subversivo que a obra quer ser: «cita-se assim a escrita com o mesmo à-vontade com que num redondel se cita [...] um touro».3

Para que a luz surja mais esplêndida e a vida tenha dimensão plena, para

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que o real empírico seja interrogado e dilucidado em sentido transmanente, para que a identidade pessoal e colectiva se indague, entende o autor textual e narrador que «É preciso fazer da escrita uma lareira tão pacífica como o Inferno» e é preciso que «A caricatura [estimule] a inteligência».4

Assim, desde início a leitura fica solicitada ambiguamente a acompanhar um suposto estudo de ciência histórica e a descobrir que o acto de criação ficcional do escritor provocará a emergência de novos mundos.

É verdade que boa parte do que é narrado acerca de Sebastião assenta em dados históricos, mas é facto também que a fantasia pancrónica se infiltra de modo inequívoco. A acção da narrativa não é sempre exterior ao narrador; quando assim se apresenta, apenas em parte assim se mantém; e mesmo quando mais o induz, sob as intermitentes aparências de recondução ao relato biográfico, está longe de se circunscrever à acção que prepara ou traduz a actuação de Sebastião como figura histórica de rei ou que dela decorre. É que, paralelamente ao evoluir do já de si desconcertante rei, a figura e o trajecto do protagonista, retractados pelo narrador, projectam-se oscilantemente com traços messiânicos e mitificantes, mas também com figura e projecto de bufão que quer a derrota, etc. Não esqueçamos que o narrador sublinha que «Sebastião é mais um herói infantil que um herói da História», acrecentando que um historiador como «Mattoso deve achar um aborrecimento atroz essa figura»5; mas ao mesmo tempo Sebastião é mitificado e até aproximado do

(4) - Idem, ibidem, p. 206. (5) -Idem, ibidem, p. 16.

Messias cristão, pelos dons extraordinários quer de sabedoria, quer de episódica sensatez.

Os próprios laços com elementos virtualmente tão comuns e anódinos na referencialidade como na ficcionalidade - o espaço, por exemplo - tornam-se importantes para delinear alguns traços da natureza extraordinária de Sebastião. A sedução pela planície de indefinidos horizontes no sul alentejano, pela floresta fecunda e avassaladora de Sintra e pela água, marca claramente a sua abertura ao infinito utópico.

Do mesmo modo a excepcionalidade (quer em sentido positivo ou negativo) dos seus ancestrais - pais, avós ou primos - marcam o jovem rei, mas também a narrativa que o recria (e os contrastes que explora, como por exemplo quando os avós de Sebastião são também apresentados de maneira a que se sinta, por oposição, que o seu neto tem uma genialidade e uma abertura a projectos intemporais que o tornam incompreendido e consequentemente mal avaliado).

A excepcionalidade a nível dos familiares mais directos de Sebastião é extensiva quer aos seus mestres, meticulosamente escolhidos, quer àqueles que constituem o grupo de amigos mais chegados e com quem vai estabelecendo um caminho de amadurecimento - também ele premonitório da aparente desgraça da derrota e da prevalência do mito através dos séculos. Este percurso de formação dado através de uma profunda alteração da estrutura tradicional do Bildungsroman (comum também no romance pós-moderno, como já atrás vimos que observou Wesseling) contribui para o hibridismo da sua codificação e para o refazer da sua técnica de composição.

Destas várias formas, o ficcional - e um ficcional estranho, por vezes anómalo, e apresentado por um discurso não menos estranho do ponto de vista retórico-estilístico e não menos insólito do ponto de vista técnico-compositivo - subverte o primeiro modelo narrativo implantado no horizonte de expectativas do leitor. Mas, em contrapartida, outros abundantes, recorrentes e ostensivos elementos de Vida de Sebastião Rei de Portugal actuam em sentido contrário, não deixando a leitura acomodar-se numa perspectiva genológica, nem estabilizar sequer num protocolo assente nas convenções comunicacionais de ficcionalidade e de polivalência.

Com efeito, no quadro desse regime discursivo em Vida de Sebastião Rei

de Portugal os elementos históricos estão sempre presentes. As fontes são

meticulosa e profusamente indicadas. As notas de rodapé surgem para deixarem supor uma ligação ao romance do século XIX, mas como que ultrapassando o seu cuidado de certificação histórica (embora o carácter de erudição extemporânea quase torne despiciendo esse aparente intuito e relance o efeito de manipulação lúdica).

De resto, não se afigura menos dúbia esta estratégia de certificação, pois imediatamente nos apercebemos de que os dados históricos são como que reciclados de modo a readquirirem novas significações. As datas e as atestações precisas contrastam com o tom do discurso, ora especulativamente mitificante, ora parodicamente corrosivo. E nomes (e autores) tão díspares como Barbosa Machado, Jorge Ferreira de Vasconcelos, José Pereira Baião, Aleixo de Meneses,

João de Castro, Sales Loureiro surgem, com desenvoltas anacronias, para manter o jogo e o disfarce da preocupação historiográfica.

O apêndice, com uma listagem que se pretende aparentemente exaustiva das «Fontes», a referência metatextual na parte final à narrativa como testamento (à boa velha maneira de Eurico, o Presbítero de Herculano) e ainda frases pontuais alusivas às ruínas e às madeiras apodrecidas, mostram-nos os matizes com que este romance, se assim pode ser chamado, ao mesmo tempo pode evocar no leitor o paradigma de matriz romântica e se insere numa linha de inovação da narrativa pós-moderna do século XX - pois a ostentação de tais elementos, pretensamente documentais e revivalistas, só acentua as conotações paródicas e/ou mitófilas de que o cotexto fantasista ou profético os impregna no quadro, como veremos, de uma mais vasta componente de relacionações culturais tão desconcertantemente heterogéneas que impõem ao texto e à leitura uma indelével tonalidade lúdica.

A medida que a narração avança, a ficção irónica de desconstrutivismo histórico e de projecção profética vai cavalgando cada vez mais o suposto relato biográfico, sem que, no entanto, tal dimensão venha a desaparecer. A duplicidade mantém-se até ao fim : ora a ficção investe na desconcertante bizarria e na loucura genial e divinal do «menino»/«meninotauro», verdadeiramente fecunda, transtemporal e que se espera futuramente salvadora; ora surge a preocupação de apontar dados que reforcem o posicionamento histórico.

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