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História, mito e fuga ficcional em António Cândido Franco

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MARIA LEONOR F. A. DE SEABRA PEREIRA

HISTÓRIA, MITO E FUGA FICCIONAL

EM

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

PORTO

1999

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HISTÓRIA, MITO E FUGA FICCIONAL

EM

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

PORTO

1999

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Dissertação de mestrado

apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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A presente dissertação sobre a ficção histórica de António Cândido Franco vem na sequência dos Seminários de Mestrado em Línguas Românicas Modernas e Contemporâneas e traz marcas indeléveis do que, quer na fase lectiva, quer na de preparação e discussão dos respectivos trabalhos, essa experiência intelectual para mim significou. Por isso esta dissertação acaba por reflectir, dentro embora do respeito pela sua especificidade académica, esse vector de continuidade - na escolha do tema, na eleição da perspectiva de análise e também na opção por abordar certos aspectos da Vida de

Sebastião Rei de Portugal através de sucessivas aproximações em diferentes capítulos.

Concebida e realizada em condições nem sempre propícias à pesquisa e à elaboração textual, a presente dissertação testemunha sobretudo da minha relação com aquelas Presenças Reais de que nos fala Georges Steiner - os textos literários e os sentidos que neles nos solicitam. E, ciosa sem dúvida da atitude de seriedade que lhe subjaz, esta dissertação assume as modestas ambições de contributo inicial para outro estudo mais profundo, isto é, pretende apenas apresentar uma sondagem de formas do conteúdo e da expressão através das quais a narrativa de António Cândido Franco busca

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II um sentido transmanente para o Homem e a História - um sentido no Amor que se gera e manifesta na Vida que lhes é imanente, mas que misteriosamente parece querer transcendê-la.

Devo uma sincera palavra de agradecimento aos orientadores dos Seminários que tão proveitosamente frequentei - Profs. Doutores Ferreira de Brito, Isabel Pires de Lima, Celina Silva e Maria do Nascimento Carneiro.

Lembrarei sempre com profundo reconhecimento a orientação deste trabalho por parte da Prof. Doutora Maria de Fátima Marinho - calorosa no acolhimento, solícita na sugestão, generosa na facultação de bibliografia, certeira no discernimento e justa na correcção.

Porto, Páscoa de 1999

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Introdução

Confrontando-me com a obra de António Cândido Franco, nesta nossa época ao mesmo tempo afecta e relapsa a valores decisivos do tradicional património da História («o enfraquecimento da ideia romântica de nação, o ocaso das grandes narrativas, o cepticismo acerca das lições do passado, a consequente incerteza quanto ao futuro, etc.») \ proponho-me intentar uma leitura estruturante e tematologicamente orientada (História, Mito, Amor, Sagrado e Identidade nacional) de um discurso literário que, embora com a dominante de ficção narrativa, me interpela por fundir essa ficção com o relato de evocação historiográfica e com especulação mitográfica, tal como intermitentemente funde o modo narrativo com o modo lírico - entre uma extrapolação aforismática, afectiva e sapiencial, tributária de Agustina Bessa Luís; e variantes mitigadas da ressurreição fantasmática e paroxística de certo Raul Brandão

(1) - Isabel Pires de Lima, «Tempos sebásticos: os fins de século», in Marie-Hélène Piwrák (ed.), Regards sur

deux fins de siècles (XDC-XA). Bordeaux, Maison des Pays Ibériques, 1996, pp.. 57-59 e 70; F. J. Vieira Pimentel, «Em tomo do ensino das literaturas nacionais: algumas considerações», Arquipélago-Linguas e

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(liminarmente convocado para, em pregnante epígrafe extractada do Húmus1, tonalizar

a atmosfera e patrocinar o ethos de Vida de Sebastião Rei de Portugal).

De Memória de Inês de Castro (e seu peculiar contraponto diegético) a Vida

de Sebastião Rei de Portugal (em que aquele contraponto cede lugar a único, mas

desconcertante, veio diegético), a narrativa de inspiração histórica de António Cândido Franco ultrapassa em estranheza estrutural o que de «género híbrido» sempre teve o romance histórico, mesmo quando os seus autores ensaiavam uma relação metafórica com modelos arquetípicos. 3 Conjuga, antes, uma ambígua condição discursiva que

diríamos similar à dos derradeiros livros de Oliveira Martins - quando, como se ressente na reacção epistolar de Eça de Queirós, a «lógica da ficção» progride ironicamente através dos próprios excessos de pormenor na descrição evocativa (e que, em vez de credibilizarem documentalmente a referencialidade, confortam com «efeitos de real» a recriação ficcional) - com um desdobramento de inferências especulativas e gnómicas (que tanto soam num timbre nietzscheano, como num timbre lusíada à maneira de Pascoaes e da «filosofia portuguesa»). Depois, a narrativa de António Cândido Franco conduz-nos para uma mais insólita condição discursiva que,

(2) - «Através da paciência e da mentira, todo o esforço do homem tende para outro homem para o homem ideal, para a figura de sonho, que há-de ser um dia a criação dos vivos e dos mortos - o sonho realizado - o universo realizado.»

(3) - Veja-se G. Lukács, Le Roman Historique. Paris, Payot, 1977; Carlos M. Rama, La Historia y la novela, 2a

ed., Madrid, Ed. Tecnos, 1975; Joseph Turner, «The Kinds of Historical Fiction: An Essay in Definition and Methodology», in Genre, Oklahoma, tXII, 1979, 333-355; Harry Shaw, ne Forms of Historical Fiction, T ed., Ithaca & London, Cornell Univ. Press, 1985; Elisabeth Wesseling, Writing History as a Prophet

-Post-modernist Innovations of the Historical Novel. Amsterdam &Philadelphia, John Benjamins Publishing

Company, 1991 (pp. 42 segs., a propósito de Manzoni); Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique (Mann,

Brecht, Doblin). Paris, P.U.F., 1996 (sobretudo p. 42); Celia Fernandez Prieto, Historia Y Novela: Poética de la Novela Histórica, Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1998.

(4) - Cf. Carlos Reis, «Fait historique et référence fictionelle; le roman historique», in Dedadus (Revista Portuguesa de Literatura Comparada), N° 2, Dezembro de 1992; idem, «Estatuto ideológico y semionarrativo de la novela histórica», in Maria Gracia Profeti et ai, Refundación de la Semiótica. Sevilla, Editorial Don Quijote, 1993, pp. 33^9.

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sem abdicar daquelas ressonâncias, tonaliza-as talvez mais por uma narrativa de «paixão do conhecimento» à maneira de Agustina e sujeita-as a todas as experiências pós-modernas, por vezes arrastando numa vertigem de deslocações espácio-temporais, de proliferação de motivos e símbolos, de dispersão por figuras histórico-culturais e por personae, que subverte a reestruturação da narrativa pela «arte da rosácea» imperante no romance lírico de Vergílio Ferreira ou de Agustina Bessa-Luís (como sabemos com Robert Bréchon e com Álvaro Manuel Machado).5

Por outro lado, sem embargo das perturbações trágico-cómicas ou mesmo grotescas , deparo-me com difusa ilustração diegética de uma valorização sófica da simbiose esotérica do erotismo e do sagrado (à maneira de uma Natália Correia) e, sobretudo, com uma difusa ilustração diegética do programa de palingenesia e prognose do narrador, que conjuga interpretação iniciática (e mítica) do Amor, visão mítico-profética (mas não escatológica, nem providencialista)7 da História e filosofia

arracionalista e milenarista do destino português.

No fundo, nesta narrativa que não se apresenta interessada em encorpar a bibliografia "séria" sobre o sebastianismo como episódio histórico ou sobre o

(5) - Robert Bréchon, «Prefácio à tradução francesa», in Virgílio Ferreira, Alegria Breve, 5' ed.. Lisboa, Bertrand, 1981, pp. 7-11; Álvaro Manuel Machado, Agustina Bessa-Luís: O Imaginário Total. Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1983.

(6) - No sentido (aliás brandoniano, como outros rasgos de A. Cândido Franco) de que o grotesco «has a harder message» do que a tragicomédia: «It is that the vale of tears and the circus are one, that tragedy is in some ways comic and all comedy in some way tragic and pathetic.» (Philipe Thomson, The Grotesque. London, Methuen, 1972, p. 63).

(7) - Cf. Antonio Quadros, A Teoria da História em Portugal, Vol. n, A dinâmica da História. Lisboa, Espiral, s./d.

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sebastianismo como mito cultural (mas apenas interessada em manipular os seus dados), nem pretende deixar-se assimilar pelo saturado corpus literário (narrativo, dramático e sobretudo lírico) de tradicional exploração panegírica9 e/ou elegíaca dessa

temática sebastianista10, pode-se descobrir uma tenção profética paradoxalmente

etnocêntrica e ecuménica (além de paradoxalmente caricatural como «mentira» artística11 e de paradoxalmente metaficcional como pós-moderna narrativa narcisista ).

De facto, sob a acracia e o humor, não se descarta a utopia de Portugal como Nação Precursora, cumprindo um messianismo universal, não já militar, ou político, ou

económico, mas antropológico; e a atribuição dessa vocação messiânica implica veladamente a integração superadora, em irónico regime agnóstico, da interpretação paracletiana dos Descobrimentos portugueses (que assomou em Jaime Cortesão e requintou até ao neo-franciscanismo joaquimita de Agostinho da Silva) e, menos veladamente, do neo-sebastianismo linguístico-cultural (oriundo de Pascoaes e de Pessoa e apropriado pela «filosofia portuguesa», em geral, e por António Quadros, em

(8) - Veja-se sobretudo A. Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, 2a ed., Lisboa, Ed. Rolim, 1982; João Lúcio de

Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, 2" ed., Lisboa, Clássica Editora, 1947; Joel Serrão, Do Sebastianismo

ao Socialismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1969; António Machado Pires, D. Sebastião e o Encoberto, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1969; José Alberto Veiga, Fonction et Signification Sociologique du Messianisme Sébastianiste dans la Société Portugaise, Paris, Sorbonne (éd. Polie), 1979; António Quadros, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 2 Vols., Lisboa, Guimarães Ed., 1982-83; Eduardo Lourenço,

«Sebastianismo: imagens e miragens», in Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, pp. 133-142.

(9) - Até porque, em António Cândido Franco, «Sebastião, o rei português, vale não porque a sua história seja, nos seus valores, para ser tomada a sério, como modelo adulto e estrutural, como pensou o Malheiro Dias» (Vida

de Sebastião Rei de Portugal, Lisboa, Publ. Europa-América, 1991, p. 205).

(10) - As obras de A. Machado Pires e de António Quadros citados na nota (8) incluem larga colectânea dessa literatura tradicional de inspiração sebástica.

(11) - «A arte tem de mentir para deixar o terreno da realidade e se fazer ideal» (Vida de Sebastião Rei de

Portugal, p. 15); «É como caricatura, e por conseguinte como arte, que o sebastianismo me interessa, e não como

sinto», afirma a dado passo o mesmo narrador (Lisboa, Publ. Europa-América, 1993).

(12) - Na acepção proposta e fundamentada por Linda Hutcheon, Narcissistic Narrative: The Metafictional

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particular) . Assim, através de personagens e acontecimentos da intriga, através de símbolos e mitos, e, sobretudo, através da marginalia interpretativa e sentenciosa que incessantemente o narrador vai tecendo, ressalta a justificação e o projecto de Portugal como lugar e agente da simbiose étnica e histórica da terra e do mar, do Norte e do Sul, do Cristianismo e das demais grandes religiões - assim abrindo caminho para uma nova e superior condição universal da Humanidade, dimanada enfim da primazia do Amor. E ressalta que é o ethos amoroso que distingue D. Sebastião, que o irmana a D. Inês de Castro, que de ambos faz as únicas figuras genuinamente «poéticas» da história de Portugal e, até, seu alfa e seu ómega.14

Opto, pois, liminarmente, por uma espécie de exercício de crítica de identificação, em que por vezes fosse dado quase por adquirido, e pudesse portanto ter menos extensas interferências, o momento de «descida à materialidade do texto» (como diria Jean Starobinski) e me fosse permitido situar-me mais no plano empático da «relação crítica», isto é, da possível coincidência da minha consciência cognoscente de leitora com a consciência do mundo inscrita na composição formal e no imaginário do texto (como diria Georges Poulet)15.

(13) - Cf. António Quadros, Portugal - Razão eMistério, Vol. 1,2a ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p.25.

(14) - De acordo com proposições da «Introdução» de Vida de Sebastião Rei de Portugal: «Sebastião interessa-me porque vejo nele o que vejo em Inês de Castro, o amante. O amante é o louco e também o mistificador» (p.

11 ), «Sebastião é, além de Inês de Castro, a única figura verdadeiramente poética da história de Portugal» (p. 11), «a história de Portugal está toda compreendida entre Inês de Castro e Sebastião, duzentos anos de vida a criar mundos desde as Canárias até às Molucas» (p. 11), « Se as feridas de Inês foram a fonte onde Portugal bebeu ao peito o leite genesíaco do seu nascimento, as feridas de Sebastião foram a fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da velhice e da ressurreição» (p. 11 ).

Sobre a produtividade paralela dos dois mitos (inesiano e sebástico) na literatura, veja-se Maria Leonor Machado de Sousa, Mito e Criação Literária, Lisboa, Livros Horizonte, 1985.

(15) - Sobre estas noções básicas da crítica de identificação da escola de Genève, em especial do Georges Poulet de La Conscience Critique e do Jean Starobinski de La Relation Critique, veja-se Robert R. Magliola,

Phenomenology and Literature -An Introduction, West Lafayette-Indiana, Purdue Univ. Press, 1977, Part 1,

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Em contrapartida, corro o risco de a minha intervenção, selectiva e associativa, com os elementos do texto parecer de quando em vez relevar da heresia da paráfrase (já condenada pelo New Criticism). Mas creio que não haverá razão para a confundir com mera paráfrase fluida, apesar das eventuais (e pertinentes) homologias com uma narrativa que afrouxa os nexos lógicos e privilegia a sinuosidade simbólica e profética em desfavor da clara e ordenada discursividade.

Com efeito, se pensarmos que (para utilizarmos termos oriundos de Wolfgang Iser)16 as estruturas de solicitação à resposta do leitor ínsitas na narrativa de António

Cândido Franco são de impulso para a apreensão de múltiplos sentidos (errantes e esquivos, ou reiterados e entrecruzados), não tomei isso como convite a uma leitura desconstrutivista: respeitando a diferença (à Derrida) na obra, não reivindico tanto a leitura como diferença desconstrucionista, mas antes, vendo essa obra como dinamismo de sentido policodifícado, procuro uma leitura que a coloca semioticamente «num universo codificado» .

Dentro da perspectiva adoptada, privilegiei na obra de António Cândido Franco, para objecto do meu estudo a narrativa Vida de Sebastião Rei de Portugal, tendo em conta a superior amplitude dos vectores ideotemáticos e o superior alcance dos problemas técnico-formais que apresenta. Achei, porém, pertinente abrir o meu trabalho por uma breve análise da narrativa antecedente, Memória de Inês de Castro,

(16)- Veja-se sobretudo The act of reading e Prospecting. Baltimore, The Johns Hopkins Univ. Press, 1989. (17)- O. Calabrese, // linguagiodell'arte. Milano, Bompiani, 1985.

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constituindo assim o Capítulo I em verdadeira introdução ao estudp da ficção de António Cândido Franco; e julguei também pertinente não abdicar de relacionamentos com aquele dos ensaios do autor (Teoria e Palavra) que me pareceu mais conexionável com as questões suscitadas por Vida de Sebastião Rei de Portugal.

Na análise e interpretação desta obra, certos aspectos - tratamento de espaço e tempo, caracterização de personagens, composição narrativa, etc. - podem ser focados nos Capítulos II, IH, IV e V. Não se trata, porém, de meras retomas intermitentes para enfatizar as minhas observações. Trata-se de aproximações conscientemente graduadas e diferenciadas, não só porque vão passando de breves e sintéticas (Capítulos II e III) a extensas e analíticas (Capítulos IV e V), mas sobretudo porque derivam de ópticas diversas, indo da perspectivação de categorias semióticas da narratologia até à captação e valoração das formas do conteúdo do texto.

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CAPITULO I

MEMÓRIA DE INÊS DE CASTRO

E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE

«Já em outro [livro] falei de Inês de Castro...», diz a determinada altura o narrador de Vida de Sebastião Rei de Portugal1. E, com efeito, a narrativa de António

Cândido Franco faz caminho para Vida de Sebastião Rei de Portugal através de

Memória de Inês de Castro, num duplo sentido: o mais óbvio, que é o da ordem

cronológica num trajecto de maturação ficcional e estilística; e outro mais profundo, que é de ordem semântico-pragmática e técnico-formal, na medida em que Memória

de Inês de Castro explora já macro-signos (temas, motivos, mitos, arquétipos,

personagens...) que serão decisivos em Vida de Sebastião Rei de Portugal, ao mesmo

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tempo que ensaia já vários processos retórico-estilísticos do seu narrador pós-moderno2.

Por consequência, parece-nos oportuno, se não indispensável, que o nosso estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal faça também caminho através de uma leitura introdutória3 de Memória de Inês de Castro e do que nela já condiciona o

confronto dos receptores com aquela obra seguinte.

1. Amor e linguagem, conhecimento e criação

Amor e identidade constiruem-se também hoje em questões vitais, que originam apaixonada busca de um conhecimento totalizante e, dialecticamente, de reinventar o mundo e o Homem, numa reinvenção das palavras já inventadas, à maneira de Almada Negreiros.

Se este pressuposto e este desígnio constituem vectores principais de Memória

de Inês de Castro, também lembrando que os «limites do meu mundo são os limites da

minha linguagem» (no dizer de Wittgenstein)4 entendemos a extrema atenção que

(2) - Embora a desconcertante ousadia estrutural da narração de Vida de Sebastião Rei de Portugal só parcialmente se entremostre na estrutura narrativa de Memória de Inês de Castro, onde reina um contar quase tradicional dentro da alternância, na rede de parentescos dinásticos peninsulares, de dois veios diegéticos centrados, um, em Portugal e outro nos restantes reinos ibéricos.

(3) - Dado esse carácter introdutório deste capítulo não o sobrecarregamos com reflexões possibilitadas pela vastíssima bibliografia inesiana, em tempos inventariada por Adrian Roig (Inesiana. Coimbra, B.G.U.C, 1986). Veja-se, apesar disso, Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro na literatura portuguesa. Lisboa, ICLP, 1984; Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro - Um Tema Português na Europa. Lisboa, Edições 70, s./d.; Maria de Fátima Marinho, Inês de Castro Outra era a vez.... Porto, Separata de Línguas e Literaturas

-Revista da Faculdade de Letras do Porto, 1990.

(4) - Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico Investigações Filosóficas. Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, p. 114.

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António Cândido Franco - o ensaísta de Teoria e Palavra5, o crítico empático de

Pascoaes e do Saudosismo6, o ficcionista de temática sebástica e inesiana - concede

não só àquele binómio mas também à linguagem que se quer a primeira e que, por isso, pretende atingir a verdadeira nudez, donde lhe virá a força ímpar.

Na sua obra, o autor textual assume-se como o poeta, o criador da palavra e o progenitor dos «mundos possíveis», ou o místico, o do ministério do silêncio ou da oração - seres privilegiados que vivem pela imaginação e que se aproximam do fundo e da nudez, centro pleno das coisas. É assim que o sonho («revelação profunda duma existência encoberta que vive em nós»), a imaginação e a memória se podem articular harmoniosamente. Para o narrador de Memória de Inês de Castro, o ser que sonha é um ser em contacto com a origem do mundo, com a infância original do homem e da criação. No dizer de António Cândido Franco «A faculdade que faz com que a poesia se possa actualizar em espírito (...) é a imaginação.7 E a actividade imaginai que faz

com que a cada instante o significante puro apareça carregado de sentido (...) A criação é uma forma de saturação ou de excitação da imaginação (...) que é a faculdade humana que aproxima o homem de um sobrenatural».

(5)-A. Cândido Franco, Teoria e Palavra. Lisboa, Átrio, 1991.

Além deste ensaio, Cândido Franco intemou-se também nos domínios da teoria da linguagem e da teoria da literatura com Teoria da Literatura na Obra de Álvaro Ribeiro (Lisboa, 1993) e com Poesia Oculta (Lisboa, Vega, 1996).

(6) - Além da sua dissertação de doutoramento (ainda inédita) sobre Teixeira de Pascoaes, veja-se sobretudo O

mar e o Marão (Lisboa, 1989), Eleonor na Serra de Pascoaes (Lisboa, Átrio, 1992) e Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaes (Amarante, Edições do Tâmega, 1990).

Para a pragmática da leitura (e seus factores contextuais) da ficção narrativa de António Cândido Franco não é despiciendo ter presente esta apaixonada devoção por Pascoaes e pelo Saudosismo e a tensão (entre apreço pelo seu moderno messianismo e desejo de revalorização do seu discurso em clave não-referencial) que lhe está no cerne.

(7) - António Cândido Franco, Teoria e Palavra, Lisboa, 1991, p. 16. (8) - Idem, Ibidem, p. 17.

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Este poder da imaginação confiinde-se afinal com o poder divino, conferindo assim ao homem a possibilidade de colaborar com a própria obra de Deus.

Situando-se o autor de Memória de Inês de Castro num contexto em que a palavra e o poder criador são assim entendidos, que papel é então atribuído ao par humano (Homem/Mulher) no encontro marcado com o Amor? E qual a razão da escolha da situação amorosa para se cruzar com a questão política e nacional? Afinal, que consequências identitárias, individuais e colectivas, tem esse encontro? E sendo Pedro e Inês o par amoroso português por excelência, como Tristão e Isolda nacionais, que significados advêm daí?

Neste fim de século, em que o amor está «estragado», como afirma Miguel Esteves Cardoso , é forçoso que, sendo força regeneradora do próprio Homem, ele se torne amplamente fecundo. Ainda acompanhando o mesmo autor, «escreve-se sobre o amor porque não se pode falar dele. Uma história é a única maneira de passar a palavras que nos envolvem, mesmo que embaracem toda a gente (...) Quando se trata de uma história de amor é preciso não perder o amor de vista. Tê-[lo] presente nem que seja como saudade do que nunca chegou a acontecer (...) Em O Amor éfodido10 é

a primeira vez que consegui falar do amor sem o trair (...) Quis mostrar que pertencia ao mundo onde o amor (...) existe só por si.».11

(9) - Miguel Esteves Cardoso, «As minhas desculpas pelo romance que escrevi», in A Phala, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 4-5.

(10)-Idem, O Amor éfodido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.

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Tão longa citação só se justifica porque penso que o livro de António Cândido Franco, dá, antes de mais, atenção ao fenómeno amoroso em si, pois a ligação deste par é apresentada como se se tratasse da primeira e absoluta ligação amorosa da nossa História. É a ligação primigénia e por isso, tal como nas culturas míticas, passível de

ser actualizada em qualquer tempo e espaço.

2. Sinais esparsos do misterioso e do genesíaco no processo amoroso

O aparentemente discreto, mas explosivo, encontro amoroso entre Pedro e Inês começou por intrigar e impressionar o príncipe apaixonado. As sensações provocadas pelo súbito enamoramento e desejo são de uma violência bem patente nas palavras escolhidas: «os cabelos desta pareciam despedir labaredas [...] o rosto tinha uma luminosidade anormal [...] os dedos queimavam. Todas as margens do ser [...] foram incendiadas [...] energias adormecidas [foram acordadas]. O amor é tão inesperado como a chegada da Primavera [...] A terra é já aí céu tal como cada pedra é já uma estrela.».12

O poder da metáfora torna evidente a capacidade transformadora do Amor e a ânsia profundamente humana de realização amorosa. Por seu turno, o ambiente colectivo de festa (a festa de S. Martinho) vem cruzar-se com a própria festa

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interior do Infante; a embriaguez, motivada pelo vinho, confundia-se com outra embriaguez interior. «A loucura de uns era a loucura de outro».13

Nesse momento intensamente vivido «a palavra tem pouco sentido [...]. Pedro deixou cair a fala como deixou cair o coração».14 O silêncio permite uma

riqueza interior sem dúvida tumultuosa, mas profunda. «As coisas passam a ser percebidas como imagens e como Deus fala por imagens o que perde a fala é uma espécie de Deus».15

Passos como estes conduzem à experiência iniciática e genesíaca do Amor, cumprindo-se na História humana, com componentes ou momentos de espanto, de euforia dionisíaca, de recolhimento silente e, sobretudo, de autenticidade vivencial (mesmo se não conforme às normas socialmente instituídas). Por isso, o narrador de Memória de Inês de Castro considera que «O encontro com a mulher só faz sentido enquanto revelação dum eco cósmico. O amor quando vivido como modelo, e não como figurino social, acorda [nos] que o vivem um sentido religioso. Quando uma sociedade evolui num sentido decisivo, transmitindo aos seus filhos sucessivas descobertas aquilo que aparece não é um sábio, um queremi, mas antes um par de amantes. Os amantes coroam sempre as mais altas exigências dum momento. Por isso estão prontos para a morte, despojamento último».16

(13) - Idem, ibidem, p. 83. (14) - Idem, ibidem, p. 83. (15) - Idem, ibidem, p. 84. (16) - Idem, ibidem, p. 84.

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3. A excepcionalidade dos amantes

3.1. Inês

Antes de mais, Inês era mulher; e, dentro do mundo romanesco de

Memória de Inês de Castro, «Podiam-se fazer ou desfazer reinos consoante a

existência ou não existência dum certo tipo de mulheres. Conferia-se à mulher um poder simbólico, que, apesar de aparentemente vazio, tinha mais efectividade que qualquer outro. Passiva, silenciosa (...) ausente, a mulher aparecia-nos como um ser contemplativo que mudava o mundo consoante a sua própria sorte. Não tinha o dom frontal da palavra, o que a afastava dos lugares do Estado, nem o dom da força, o que lhe vedava desde logo os lugares da guerra, mas tinha a irrequieta beleza das coisas intemporais, que a levava por vezes a ser o bojo desconhecido de todos os destinos. Pode-se comparar, nesse tempo, a mulher com uma flor ou com um pássaro (...) o seu poder era imenso. Cantava em segredo, no recôndito dos

IT

quartos e dos seres, como um enigma uma diferença que todos admiravam».

Com seu ar andrógino, de cabelo ruivo cortado rente, a jovem aia de Constança Manuel tem uma estranha «ingenuidade infantil» que, aparentemente discreta, chama a atenção. «Inês vivia a dialéctica da ocultação e da revelação».

(17) - Idem, ibidem, p. 15.

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A sua personalidade e a sua vida relacional eram feitas de diferenciações e, contrariamente, de esbatimento das demarcações. Como galega, usava o seu idioma, mas este ainda não se autonomizara do português; filha do Norte e princesa cristã, tinha uma escrava árabe, chamada Fátima (como a filha de Maomé), a quem os Castros crismaram de Teresa para ocultar o contraste étnico e religioso.

Meticulosa na preparação da bebida a dar a Pedro (até escolher um vinho verde, vinho opaco e de pouca exposição ao sol, um vinho do Norte minhoto), ela julgou, sem saber porquê, que ao beber o vinho Pedro «beberia a sua alma».19

Por outro lado, dela se desprendem fortíssimos fluxos de impacto passional e erótico. «De forma inesperada Inês encostou-lhe os dedos à face (...) Aqueles dedos (...) se se tivessem encostado aos muros de Roma teriam aberto aí frechas enormes».20

Esse poder é tanto mais estranho quanto Inês se apresenta como mulher frágil e silenciosa. Mas confirma-se quando ela retira do dedo o seu anel e o envia a Pedro através de Fátima/Teresa: «É um sinal de que a unidade dos dois seres está consumada e que nada pode já impedir o convívio entre os dois. (...) Ao tirar o anel ela despiu interiormente o vestido da alma (...) É um despojamento que tem por objectivo uma dádiva a um ser e que tem a certeza íntima de que essa dádiva é sentida pelo outro como um enriquecimento. E Inês quer literalmente oferecer a

(19)-Idem, ibidem,?. 80. (20) - Idem, ibidem, p. 81.

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sua alma a Pedro, não como emblema do corpo mas como plano transcendente». Na circularidade inquebrável do anel, está a imagem da totalidade a que o Homem pode aspirar.

O viver de Inês era discreto. O facto de ser silenciosa e pouco comunicativa não impedia que um pequeno culto lhe fosse votado. Qual Eva original, «Inês tinha uma dimensão quase obscura, determinada pela sua extrema beleza e pureza. Os frades de Alcobaça consideravam-na uma Virgem, no sentido de mulher que pariu a divindade». Estes poderes de fecundidade - «Certos despojos de Inês poderiam, segundo ideia da época, provocar fertilidade; e, em Maio, muitas mulheres vão em peregrinação quase inconsciente, tocar o miolo carcomido e bichoso» da árvore em que, pela última vez, se sentou23 - têm na relação com Pedro qualquer coisa de

orgiástico e de louco.

3.2. Pedro

Pedro começa por se distinguir, em prenúncios de índole e destino excepcionais, pela sua ascendência.

Com efeito, era bisneto de Pedro de Aragão, que tinha o «poder de espiritualizar a matéria»; era neto de poeta (D. Dinis) e de mística (a Rainha Santa Isabel). Era filho de Afonso IV, o rei que «defrontara à mão o leão solar de Roca»,

(21) - Idem, ibidem, p. 85. (22) - Idem, ibidem, p. 86. (23)-Idem, ibidem, p. 147.

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num embate em que tudo é misteriosa promessa de sabedoria e redenção: Afonso tem então a idade de 33 anos; o confronto dá-se numa serra pedregosa, onde a floresta se precipitava em abismos e deixava entrever «seculares raízes» que punham à mostra «o ventre da terra»,24 e cuja neblina fantástica fazia adivinhar

esconderijos dos «génios de fumo»; o animal magnífico atacou-lhe as pernas, isto é, as raízes humanas, e, incrivelmente, depois de dominar Afonso, afastou-se em direcção ao mar, como se fosse «um mensageiro, com o seu andar prudente da imagem».25

Por outro lado, Pedro foi criado na província, entre mulheres do povo, «ao colo de camponesas e serviçais bojudas»26. Essas mulheres tinham «peitos batidos

mas tenazes, escuros, que o leite tornava ainda rijos e direitos»27 - como que

garantindo o vínculo às fontes naturais da força (telúrica, animal, humana primitiva).

Sempre em contacto com a natureza, seduziam-no a floresta, o rio, o mar, a ilha com as brumas. Em Atouguia apreciava os trabalhos da forja e em Atouguia construirá o touril, seu primeiro acto político e simultaneamente seu primeiro acto simbólico - propiciatório do «sol negro da morte que o touro corporiza» e da força humana «que está decidida a fitar as trevas de frente».28

(24) - Idem, ibidem, p. 13. (25) - Idem, ibidem, p. 40. (26) - Idem, ibidem, p. 23. (27) - Idem, ibidem, p. 37. (28) - Idem, ibidem, p. 37.

(23)

Pedro viveu sempre longe dos pais e nunca teve por modelo o pai. Respeitava-o apenas. Sempre aceitou modelos bem diferentes, que passavam tanto pelo campino bravo e meio-árabe das planícies de além do Tejo, como o romeiro galego de olhos claros e pele rosada. O Norte e o Sul coexistiam desde cedo na vida deste rei, dando-lhe originalidades que fariam prever já acontecimentos desagregadores, significativos e também reestruturantes.

Os próprios sonhos ou visões são elucidativos da sua condição excepcional. São eles que ao serem vivenciados por Pedro levantam frequentemente «certezas inelutáveis» e «premonições inabaláveis». Em visão onírica surge, desde logo, nas longas noites de lua nova, a figura salvadora da mulher, fogo e labaredas, mas também água e silêncio - prazer e revelação («A mulher dá-lhe o seio moreno e Pedro, que estava deitado, levanta-se de olhos abertos...»)29. Noutra visão onírica,

é o arqueiro que o atinge em pleno coração; noutra ainda, é o Pássaro que o fitava «com rosto humano»30 e que deposita junto dele três fios sedosos «três longos

cabelos femininos que tanto podiam ser da cor do ouro como da cor do fogo» - e a carga simbólica do número três consolida-se, noutro passo de romance, com as três línguas de fogo do Espírito Santo, portadoras das conotações de luz e conhecimento.

Por outro lado, no domínio do premonitório os sonhos cruzam-se com outros tipos de eventos com ressonâncias extraordinárias. Assim, mais à frente, a

(29) - Idem, ibidem, pp. 38 e 39. (30) - Idem, ibidem, p. 62.

(24)

personagem masculina avistou um pássaro que pela sua beleza era assustador: «Havia nele algo de infinito (...) uma revelação (...) surgia uma equivalência entre o perfil de Inês e o deste pássaro».31 Mas de novo voltará, em sonho, a visão de

um outro pássaro na árvore fantástica à beira-mar, qual Fénix das cinzas renascida. Se, por um lado, os sonhos são fundamentais, por outro não menos importantes são os confrontos de Pedro com a morte, ou através da relação com Inês, ou através do exercício do poder régio, ou na luta com os touros.

Os touros são vistos como seres surgidos «do ventre da eternidade caótica (...) únicos capazes de se prestarem ao sacrifício» (palingenésico?). Ora, em Atouguia, Pedro vence «o touro da direita, o pensativo, o sentimental», mas vem a ser gravemente ferido pelo touro da esquerda, «o emotivo e apaixonado»; mas sobre esse dramático lance pairam as virtudes que lhe atribui o narrador: «A terra bebe sangue (...) Nas suas origens, na Ibéria, o homem que morria trilhado pelo touro era não só o herói, como aquele que haveria um dia de retornar»32. A morte,

trazendo consigo as forçosas conotações de sofrimento e sacrifício, atingia assim dimensão sagrada e de cariz religioso, sobre cujas raízes étnico-culturais o narrador pós-moderno não se coíbe de especular e dissertar.

«A tauromaquia é o encontro da terra e do céu, do touro e do centauro voador, pégaso alado e mítico que deposita o homem ao pé das urnas íntimas da terra. (...)

(31) -Idem, ibidem, p. 90. (32) -Idem, ibidem, pp. 166, 171.

(25)

20

A tauromaquia era momento originário da poesia, e talvez de toda a arte, porque era, entre os iberos, o momento da tragédia. Em vez de um caprídeo, bode helénico, nós na Ibéria inventámos o touro como momento representativo original. O touril era uma pequena Ibéria minúscula onde o touro nascia, trazendo consigo a plenitude sombria duma natureza virgem que, pelo sacrifício, se haveria de tornar sagrada.

O sacrifício é o elo entre a morte e o amor.»33

Também os confrontos com a necessidade de Pedro fazer justiça e a sua notória, mas sublimada, anomalia, sob o signo mágico da simbologia tradicional tão relevante desde o índice anteposto («Eu sou o cão», clama, quando a multidão recua ao vê-lo devorar o coração de Pêro Coelho) tornam Pedro o iniciador de um novo ciclo. Ele - que a narração contrapontada (e tão posmodernamente minuciosa e desconcertante) da história político-militar do Portugal trecentista e das Espanhas coevas mostra insolitamente desinteressado dos conflitos e conluios, expedientes e golpes, casamentos estratégicos e coonestações passionais que lavrassem para lá das fronteiras - substitui, no seu processo de vingança, a guerra pela justiça. Nos três momentos cruciais de aplicação dessa justiça o ideal cavaleiresco já não está presente. A justiça não serve mais a classe nobre e «com Pedro o rei emancipa-[se] da sua própria classe»34, num projecto a que, para o

narrador, o amor não podia ser indiferente. Por isso, quando a condenação à morte

(33) -Idem, ibidem, pp. 166-167. (34) - Idem, ibidem, p. 200.

(26)

étnico-religioso a que pertencia, enquanto o narrador acrescenta que «O amor tinha-lhe dado uma universalização que situava o homem português, pela primeira vez, no lugar verdadeiro do seu ser e não no fictício da sua condição social ou étnica».35

Da mesma maneira, Martim Bubal veio a ser condenado à morte e degolado por ter mandado arrancar a barba, pelo por pelo, a um funcionário régio que exigira o pagamento de certa contribuição fiscal.

Por outro lado, o último acto de justiça do seu reinado é a trasladação de Inês, com tudo o que tem de consabido em desígnio simbólico e em assombro expressionista, mas também de potencial profético, na antecipação do ciclo político dos nossos dias, pois o cortejo processional chega a Alcobaça por volta do meio-dia do dia 25 de Abril e certa «gente humilde dos campos, (...) espécie comum de vadios (...) Tinham posto na lapela cravos vermelhos que eram como nódoas de sangue».36

Para o narrador de Memória de Inês de Castro, Pedro fez na sociedade o que Isabel de Aragão parece ter feito no espírito: «(...) Pedro levou para a política um amor, quase hedonista, ainda que sacro, enquanto que Isabel trouxe a essa mesma política um amor de tipo místico, profundamente inspirado no exemplo de S. Francisco de Assis».37

(35) - Idem, ibidem, p. 203. (36) - Idem, ibidem, p. 225. (37) - Idem, ibidem, p. 201.

(27)

22

3.3. A relação (erotismo, natureza, espírito)

O encontro com o amor tem um grande poder transformador e provoca uma abertura aos segredos profundos da vida e da natureza.

O narrador de Memória de Inês de Castro afirma explicitamente que «A descoberta do amor é talvez tão importante como a descoberta do fogo, e entre as duas há decerto relações ontogenéticas profundas. A descoberta do fogo, que não é apenas a descoberta do seu uso e da sua manipulação, mas a descoberta do seu poder, agregou o homem em círculo, enquanto que o amor deu ao homem a ideia do encontro com uma totalidade, mas é também o sentido de unidade. A única diferença que há entre o mundo antigo e o homem novo é a que o amor estabelece. A modernidade começou com a descoberta do amor, tal como a história começou com o uso do fogo».

É por causa das poderosas forças do amor que a interioridade se aprofunda, de preferência numa relação silenciosa com a fértil natureza.

As frequentes imagens oriundas do campo semântico da terra e da água põem em evidência a sugestão constante de fecundidade, de gestação, ou renovo. Tanto a vegetação abundante, como as úberes zonas ribeirinhas, ou os leitos dos rios cheios de peixe, mostram os poderes de uma natureza disponível e pronta a abrir-se ao Homem que a entende e a busca. As raízes, que procuram a humidade

(28)

estabilizadora e tonificante desse chão, revitalizam-se de seiva e florescem em copas protectoras de pássaros que preferencialmente cantam em auroras de meses primaveris. O ninho, as searas, os animais (sobretudo os pássaros e o touro), a caça, a pesca, são outras tantas referências constantes ao longo do romance e que se tornam ricas em conotações, pela sua bruteza ou pelas sugestões líricas, na autenticidade pacificante de um percurso.

Os frequentes sonhos das personagens surgem em espaços em que o telúrico se impõe e é também essa situação que estabelece uma aproximação profunda entre o Homem e a terra onde tem raízes, desenvolvendo um processo de identificação não só pessoal mas também colectivo, que constantemente ganha sabor de revelação.

Não esqueçamos que, como o narrador valorativamente testemunha, na serra «o homem (...) falava com as vacas (...) A mulher amassava o pão (...) Herdava-se pouco e construia-se muito (...) É que na serra cada homem era rei e cada mulher uma rainha que modelava nas mãos o próprio mundo, ou seja, o pão. (...) O homem que ama valoriza a natureza. A frontalidade com que o homem enfrenta a paisagem é sempre a mesma frontalidade com que enfrenta o seu próprio corpo». E se pensarmos que é difícil enfrentar o corpo (pois, em nós, o corpo é o outro...), avaliamos como o desenvolvimento desta relação humana com a natureza nada tem de evasiva.

(29)

24

Por outro lado, a relação amorosa de Pedro com Inês só chega à pragmática sexual depois de um longo processo. Neste processo intuímos o que, segundo o narrador, se comprova: «O verdadeiro erotismo é um alto enlace espiritual, a que só a linguagem dos místicos, pode, como emblema, aceder».

É por isso que o entendimento espiritual, pouco comum, existente entre Pedro e Inês, faz deles um par de excepção que na natureza e no silêncio procuram

ouvir os ecos primitivos de puras verdades. É na descrição da cena da nudez de Inês na véspera da partida de Alenquer, qual deusa saída das águas - Pedro «entrou no quarto e viu-a nua. (...)» - que nos é dito que «A humanidade tinha-se calado para dar lugar aos deuses» e que «o mundo regredia à idade mitológica». Se juntarmos a estas afirmações as palavras de Inês - «chama-me mãe» - e o canto de um «canário de oiro»41 somos remetidos para a evocação de um estádio

edénico.

3.4. Os filhos

É natural que um par com tais carismas, e que consuma a união entre o norte e o sul, estenda as marcas da excepcionalidade aos filhos.

Já antes do nascimento do primeiro filho de Inês, «uma velha que, envolvida em panos pretos limpos e brilhantes, fitava a ocidente o mar»,

(40) - Idem, ibidem, p. 92. (41) - Idem, ibidem, p. 98. (42) - Idem, ibidem, p. 111.

(30)

profetizara - «Tal filho vejo-o eu (...) capaz de aspergir a água e purificar com ela não só a vossa casa, mas (...) o próprio mundo. O seu nome (...) não pode ser senão João»43 - envolvendo assim o nascituro numa aura de Baptista, sagrador do

advento redentivo de novo ciclo do Humano.

Sintomaticamente, a primeira criança de Pedro e Inês nasceu a 25 de Dezembro, ao meio-dia, num ambiente de pobreza e austeridade em clara consonância, mas em variante solar, com a história bíblica da Natividade de Jesus. Além disso, consequentemente, um monge de Alcobaça tentou a todo o custo chamá-lo Emanuel; e a figuração dos progenitores confunde-se intencionalmente com S. José e a Virgem, «uma virgem já modelada pelo verbo de S. Bernardo e pelas estórias exemplares de Tristão e Isolda».44

Porém, será com o filho de Fátima, o mestiço João (afinal, o futuro Mestre de Avis), que advirá uma mutação alternativa, no mesmo sentido do que se pressentia na aplicação da justiça com que Pedro causara espanto e mesmo reprovação: «como quis um historiador do fim do século XIX, a primeira transformação de fundo no organismo social português»45 (comenta o narrador

pós-moderno).

(43) - Idem, ibidem, p. 112. (44) - Idem, ibidem, p. 171. (45) - Idem, ibidem, p. 164.

(31)

26

3.5. Fátima

É que, afinal, outra personagem do romance se vem a revelar não menos importante que Pedro ou Inês: Fátima.

De dignidade aprumada, era limpa como as raparigas algarvias que se moviam entre perfumes e flores, sendo, por isso, apreciadas pelos senhores da guerra. Figura de mulher inicialmente apagada, surge-nos como mera trabalhadora dos campos dos Castros; mais tarde converte-se em criada de quarto. Inês «que a tratara sempre por Fátima», apesar de, como já assinalámos, os Castros lhe chamarem Teresa, por razões étnico-religiosas - «sentia-a como presença indispensável, presença irremediavelmente ligada à sua».

Esta personagem está presente em todos os momentos importantes na vida da sua ama seja no primeiro encontro com Pedro, seja no momento em que vai entregar o anel de Inês ao seu amado, seja nos tempos de difícil coexistência com Constança. É ainda ela que leva consigo as crianças aquando do assassinato de Inês.

A força interior desta figura romanesca vai-se acentuando, ou porque o narrador diz abertamente que «substituía Inês junto dos miúdos», ou porque, mercê de verdadeira aparição, surge junto de Pedro protegendo-o e lavando-lhe os ferimentos provocados pela luta com os touros de Atouguia.

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Mais tarde, de volta a Moledo, o Infante viu Inês nesta rapariga que era sua criada, «Uma Inês transfigurada pela morte e revelada no único corpo possível: o de Fátima». Então, num dos passos mais representativos do discurso típico de

Memória de Inês de Castro e mais eficazes como aproximação ao discurso de Vida de Sebastião Rei de Portugal (pela desenvoltura com que o narrador estrapola

significados e estabelece correlações do particular ou ocasional para o essencial, explorando miticamente estruturas antropológicas do imginário e antecedentes históricos e étnicos, aludindo ao saudosismo gnóstico), o que Pedro vê «não é a mulher amada, mas sim a sombra dessa mesma mulher. A mulher amada está no Céu e a sua sombra na terra (...) Inês era a estrela, Fátima uma espécie humilde de flor. Se Inês era feita de fogo, Fátima era as suas trevas (...) vinha do Algarve e a sua ascendência era uma mistura, já secular, de sangue árabe e berbere (...) Fátima é um contraponto eficaz de Inês e a sua expressão de saudade».47

Serena e silenciosa, a relação de ambos em breve é marcada por um sonho: Fátima vê vir um pássaro transportando «uma espada viva que mais parecia uma roseira. Nela brotavam rebentos e escorriam gotas duma lava esbranquiçada e ardente». Tal como nos textos bíblicos, o anjo disse: «estás fecundada pelo poder milagroso de Deus (...) eu sou o mensageiro da aurora, o pombo que desce do céu como o correio divino (...) o teu filho é predestinado a ser a hora, a luz que se eleva da chama».49

(47) - Idem, ibidem, pp. 176 e 177. (48) - Idem, ibidem, p. 179. (49) -Idem, ibidem, p. 180.

(33)

28

No capítulo denominado «A Fénix», Pedro tem outro sonho em que, junto de uma falésia que abruptamente caía sobre o mar, uma «árvore fantástica» queria chegar ao céu; um enorme pássaro colorido, que Pedro confronta com outro que lhe aparecera quinze anos antes, parecia renascer das cinzas outonais, tal como a Fénix mítica; e se um deles, garça real, podia identificar-se com Inês, o outro, mais misterioso, podia ser Fátima, a sombra de Inês.

Só que a sombra de Inês era mais forte do que a própria Inês. Pedro não sabia que enigma obscuro envolvia a sua vida, capaz de explicar a influência que uma mulher algarvia tinha num príncipe herdeiro de dinastia tão elevada como a de Borgonha. As surpresas aumentam no nascimento do filho de Fátima: as dores de parto acometem-na no barco à vista de Lisboa e prolongam-se por três dias, pondo mãe e criança em perigo; a parturiente exânime adormece e é dentro do sono que pede a Pedro que mande tocar os sinos da Sé, pois o nascimento daquela criança dependia disso; o filho da criada algarvia nascia sobre a mobilidade fria e húmida das águas, o que lembrava a enigmática profecia da peregrina que anunciara que com a água viria o futuro; o próprio rei D. Afonso IV morre no momento em que o neto nasce. Um mundo novo parecia ter chegado, plurivocamente envolto em sinais alarmantes.

Pedro, atentamente, reflecte nas origens de Fátima e confronta-as com as de Inês - sobressaindo então o carácter contextualmente escandaloso desta ligação com Fátima, tendo em conta os aspectos étnicos, sociais e religiosos, aliás logo denunciados pelo contraste com o tipo físico europeu. Ao tempo cria-se que o Norte continuava a ser o «único cadinho possível de uma civilização portuguesa

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perversão do próprio sentido político português». E, de facto, para o narrador de

Memória de Inês de Castro, é porque essa perversão se consumou que a Ia

dinastia chegou ao fim; mas logo acrescenta: «Uma perversão profundamente positiva, diga-se, porque decisiva para o delineamento da missão de Portugal».50

Começa-se agora a esboçar, com mais precisão, a importância decisiva que vai ter esta figura de mulher algarvia (alusivamente retomada em Vida de

Sebastião Rei de Portugal) 51. «Há no Algarve o mistério duma outra coisa que

não sendo Portugal o é também (...) A mulher algarvia foi o que faltou para cimentar Portugal, tal como mais tarde a mulher índia ou africana serão a parcela que faltava para criar o mundo», especula o narrador pós-moderno, que logo, em rasgo tão familiar a um António Cândido Franco enquanto estudioso devoto de Pascoaes e da sua dialéctica mnésico-prospectiva da Saudade, sentencia: «A mulher algarvia é uma espécie de memória colectiva que não se limita a recordar o que passou, mas também recorda o que há-de vir (...)», daí partindo para considerações historiosóficas de que Jaime Cortesão (jovem poeta saudosista e, depois, intérprete neo-franciscanista da Expansão) fora mediador: «Foi ela que autonomizou Portugal, dando-lhe um destino ultramarino e atlântico, e garantindo para sempre que as pretensões centralizantes de Castela não seriam aqui bem sucedidas. Não que o português não veja idealmente a unidade ibérica como um

(50) -Idem, ibidem,?. 181. (51) - Cf. infra, Cap. IV.

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30

marco decisivo do seu destino, mas porque considera que isso se há-de fazer não a partir de Madrid mas a partir dos povos periféricos».

De resto, tal como «O ventre da mulher algarvia foi o ventre que, por excelência, concebeu Portugal»52, também será nos ventres anónimos que deram

ao homem português dimensão africana que residirá o mistério da sobrevivência de Portugal e, ainda, do seu desaparecimento - segundo o Agostinho da Silva invocado pelo próprio narrador de Memória de Inês de Castro.

Para tal narrador, o promontório de Sagres é simbolicamente também o ponto de convergência de dois mares, duas religiões, duas cores de pele e duas culturas. Com o Algarve, Portugal poderia ter como objectivo não a (re)construção de um simples país mas a construção do universo.

A relação de Pedro e Inês/Fátima constitui-se, pois, num dos vínculos essenciais da formação e da concretização deste significado existencial português, conjugando os valores dos antigos godos germânicos e os caracteres das minorias semitas.

Convirá sublinhar que esta relação toca até o poder político em Portugal. Passa-se de uma luta de morte entre árabes e cristãos, lógica continuação do

Salado, a uma aliança amorosa e até a uma cooperação. É a inflexão de um sentido político que resulta no melhor da nossa existência histórica e mítica. Não é uma dissolução mas uma aculturação que produziu novos filhos, novos povos e novas nações.

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Ousadamente, a narrativa de António Cândido Franco projecta estas observações nos nossos dias e afirma que «ainda não exaurido, Portugal pode hoje, num derradeiro esforço criativo, que será todavia o último, criar o mundo, num universo sem fronteiras»53 onde os povos e as nações cooperem. Portugal morrerá

mas dará lugar à fraternidade universal que é hoje o sentido último e definitivo da sua existência.

4. Alcance do mito inesiano

Do amor de Pedro e Inês surgiram três níveis de leitura diferentes mas que coincidem na estrutura: a narrativa histórica, a lenda mítica e a imaginação saudosa. Nem sempre a narrativa histórica dá fundamento ao mito. No entanto, frequentemente a propensão bem portuguesa para a hiperbolização do sublime nacional tem produzido frutos. É a qualidade do amor que uniu Pedro e Inês, qualidade sobrehumana e imortal, que os coloca no horizonte primordial do mito.

Esta excepcionalidade habita carne débil e começa na própria morte, sacrifício e sofrimento redentores. É pela destruição que se atinge a possibilidade de reconstruir a vida e o mundo. Ora, só a dimensão mítica possibilitará ao par amoroso ter a missão de fundar o reino perpétuo do amor entre Homem e Mulher. É que os mitos mantêm-se na «semiconsciência da alma popular», para parafrasearmos Afonso Botelho no cuidadoso modo de não falar no inconsciente

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de Freud, «caos de forças inominadas, cujo império não poderá dar ao homem a unidade e a harmonia que ele espera de um verdadeiro Deus». No dizer do mesmo Afonso Botelho, «é indispensável que a origem mítica religue Deus à humanidade através do sonho e não através do vácuo do inconsciente de que dimanam fantasmas tão poderosos quanto desconhecidos.»54.

Não esqueçamos que o mito como biografia divina foi posto em causa pelo Cristianismo: Deus revela-se através do Mistério, ou através da sua presença espiritual onde e como quer, mas sempre de modo a aumentar a inteligência humana. Nesse sentido é que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos no Pentecostes, sob a forma individual de língua de fogo.

O mito pode ser fundado pela inteligência da individualidade humana, assistida pela revelação divina, embora se conserve, se altere e cresça pelo rito de um povo. Foi porventura em António Patrício que se descobriu e recuperou a razão mítica de Pedro/Inês. Esse retorno à origem tem de ter em conta a simbolização do corpo e a criação do reino de supervivência do amor. E que contrariamente a Tristão e Isolda, a nossa narrativa mítico-amorosa começa pela realidade da morte que tinha de ser superada.55

Em Memória de Inês de Castro de António Cândido Franco, a necessidade de superação da morte é também uma linha profundamente trabalhada apesar da convivência amorosa do par concentrar fortemente a atenção do narrador. Quanto

(54) - Afonso Botelho, «Mito da supervivência do Amor», in Independência - Revista de Cultura Lusíada, Lisboa, N° 7,1994, pp. 9-12.

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mais intrigantemente a divinização do par se operar, mais fácil depois se tornará interpretar dados que confirmarão posteriormente aquele carácter sobrenatural. «Os amantes são seres religiosos que encarnam em si a mentalidade primitiva do sacrifício: eles entregam-se à morte como o homem se entregava ao touro nas origens da Ibéria. Enfrenta-se a morte como se enfrenta o amor e tudo na morte sacrificial é a representação do amor (...) A morte é a imitação do amor e só morre, de forma absurda para além da divindade, o ser apaixonado ou amoroso»56.

Ao elevar o corpo da amada Pedro trilha já o caminho da ressurreição. A Encarnação propicia a Ressurreição mas não esqueçamos que o corpo, durante tanto tempo depreciado, encontra aqui um seu hino. Inês é a excelsa mediadora do eterno presente do mito e Pedro é o sofredor que cria o tempo e o espaço da saudade que vai conferir perpetuidade ao mito.

5. Inferências prospectivas

A subjectivização do romance de linhas históricas - tendência dos finais deste século XX, na lição de Elisabeth Wesseling e de Linda Hutcheon, entre outros - aparece bem documentada nesta obra.

Os símbolos valorizados e os sonhos constantes mais não são que futuros projectados a partir de seres históricos e passado reais. Em contrapartida, apesar do fio narrativo principal aparentemente se diluir, as duas figuras centrais não me

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parece rarefazerem-se, ao invés do que afirma Estela Guedes em recensão crítica a

Memória de Inês de Castro. " Pelo contrário, o par emerge com mais força desse

universo histórico de intrigas paralelas entre as quais são estabelecidas correlações várias.

É neste quadro de construção ficcional que o passado memorial é raiz de um futuro que se quer eufórico e é premonitoriamente anunciado pelos múltiplos sonhos, visões, profecias, pelos elucidativos encontros com animais (leão, dragão, pássaros - garça ou fénix, canário dourado), em ambientes de «serra pedregosa» que se esventra em raízes e é propícia a fantasias («sob cada uma das pedras se escondia um génio»), ou de beira-mar aurorai, ou ainda de pequenos bosques junto à terra húmida muito fértil. Estes ambientes põem em evidência a riqueza de seiva da Natureza-Mãe acolhedora, ninho de novos e diferentes filhos.

O intenso amor deixa um rasto de fogo que por si só tem força expansiva. É um fogo carnal e espiritual, imanente e transcendente. Porém, se Inês é Ignis, é também Agnus, o cordeiro imolado; e ao amor vem, pois, juntar-se a ideia de sofrimento sacrificial. Pedro vem manter o calor inesiano, como pétreo que é, alimentando assim a faceta mítica.

Importa, aliás, evocar o que no outro ambíguo romance de António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal, o narrador homólogo diz

(57) - Maria Estela Guedes, «António Cândido Franco, Memória de Inês de castro», in Colóquio/Letras, n° 120, Abril-Junho 1991, pp. 218-219.

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acerca de Inês de Castro: «Para mim, o ventre de Inês de Castro é essencial à nacionalidade, e é nessa terra mole e patriótica que eu vejo brotar o sangue luminoso das quinas. Elas só se rasgaram definitivamente no coração de Portugal com as feridas de Inês de Castro, essa fonte que alimentou Portugal ao peito e que ainda hoje nos dá a beber o leite genesíaco do nascimento da criação».58

António Cândido Franco deixa pois claro, pela voz do narrador, a importância histórica e política daquela figura feminina mitificada, que a pode aproximar de Átis ou Osíris: «Foi ao peito opulento e genesíaco de Inês que Portugal ganhou fé num destino do tamanho do mundo, porque acho que só o amor é que dá aos homens e às nações o sentido da liberdade e da aventura (...) A história de um povo [vale] pela intensidade instantânea com que as suas figuras viveram as suas experiências [concretas]»59.

Em António Cândido Franco, autor que se inscreve na corrente dos tempos que são os seus (em que raízes pessoais e colectivas não encontram segurança na terra onde mergulham), a ficção ultrapassa a história, tal como, por exemplo, em A

Margem da Alegria de Ruy Belo, sobressai não tanto a história antiga mas a

capacidade de evocação e memória ou do que essa memória representa no inconsciente de uma colectividade (como evidencia Fátima Marinho).60 Nessa

ficção, todavia historiosófica, tais são as raízes agora muito mais esquecidas. E se,

(58) - António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, p. 11. (59) - Idem, ibidem, p. 64.

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como no caso português, mergulham no mar, ainda maior é a sensação de desnorte, maior é a necessidade de mobilizar dados históricos num voo louco mas tentador de fazer renascer um futuro luminoso, elevado, quente, credível, pessoal mas com conotações universais.

É assim que a Lídia Martinez de Cartas de Pedro e Inez - O mel do meu

consolo, no texto «Das origens...», à maneira de nota e aviso «à intenção do leitor

que percorre estas páginas», escreve: «A identidade sagrada reclama a língua primeira, mas por vezes, fora de vista, longe do quotidiano, ela oculta-se deixando que uma tome forma e corpo, impondo-se. Conforme o instante, segundo o intuito, ambas se proporcionam (...) As minhas raízes andam no chão do mar em que me vou afundar».61

Em textos líricos datados de '83 a '94 e escritos em Lisboa, Paris e Nova Iorque, o autor procura-se, num desvario dos sentidos e do pensamento; e é curioso sublinhar como só em Pedro e Inês o autor julga poder ancorar e aninhar as suas ansiedades. Como a hora é de questionação, o mel do seu consolo poderá ser encontrado na descoberta de que Amour est le mot.

Tal como outras obras contemporâneas de difuso parentesco temático, esse livro revela preocupações de grande elevação interior, mas através de imagens de um expressionismo chocante e provocatório. Aí, como em Miguel Esteves Cardoso, a provocação e até a obscenidade podem ser facetas da amargura desesperada de quem procura plenitude e só encontra mediocridade.

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Aproxima-se o fim do milénio que traz consigo traços de indeterminação e de medo perante o desconhecido. É que o fim de milénio é portador, por causa do peso que sobre nós e a nossa cultura os símbolos adquiriram, de um conjunto de opostos que Calabrese enumera e de entre os quais faço ressaltar a esperança e o temor, o progresso e a decadência, a renovação e a catástrofe. Por um lado, o simbolismo sobrepõe-se à moral e à violência da significação, por outro só a compreensão permite escapar à violência. Mas talvez todos os projectos de compreensão não escapem (como acontece com a semiótica em Calabrese)62 à

suspeita de que não passam de utopias.

Também o Homem português tenta varrer o marasmo, nas crises cinzentas de abatimento servindo-se de figuras míticas, catalisadoras de forças desconhecidas ou soterradas e que é preciso redescobrir, reanimar, relançar. A sociedade actual, na sua ausência de fundamentos e ideologias, mergulhada num relativismo total, dilui o élan pessoal do homem reduzido à dimensão social. O indivíduo mais do que nunca assume-se numa dimensão social, tal como para o Portugal dos nossos dias vem analisando Boaventura de Sousa Santos.63 Mas é,

justamente, essa hiperbolização sociologizante da dimensão exterior que corre o risco de lhe criar um vazio interior insuportável - como, aliás, teme o Gilles Lipovetsky de O Crepúsculo do Dever.64

(62) - De Ornar Calabrese, além da obra atrás citada, veja-meM/Z/e di questi anni. Roma, Laterga, 1991.

(63) - Veja-se sobretudo Pela Mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade. Porto, Ed. Afrontamento, 1994.

(64) - Gilles Lipovetsky, O Crepúsculo do Dever - A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa, Dom Quixote, 1994.

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38

CAPITULOU

UMA NARRATIVA PLURICODIFICADA (VECTORES

DE MODOS, GÉNEROS E SUBGÉNEROS EM

VIDA DE SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL)

Instruídos pela análise e interpretação de vectores temático-formais de

Memória de Inês de Castro e pela consequente constatação das reconversões

estruturais que o seu tratamento peculiar implicou para a narrativa de inspiração histórica, ficamos mais aptos para o estudo de Vida de Sebastião Rei de Portugal, mas também predispostos a encetá-lo pela problemática da sobredeterminação do corpo textual pelas entrecruzadas interferências de diversas categorias arquitextuais (nomeadamente de códigos de modos, de géneros e de subgéneros literários) - condição prévia para a tentativa de compreensão do universo simbólico dessa narrativa de António Cândido Franco.

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1. As interferências de dois modos literários

Partindo desta perspectiva de problematização estrutural, ressalta um primeiro nível de ambiguidade na codificação do texto que põe em causa a sua pertença exclusiva ao modo narrativo. Com efeito, ao iniciar a leitura de Vida de

Sebastião Rei de Portugal damo-nos conta de que a dimensão poética deste

romance é inegável.1

Em correlação com a recorrência de motivos, de imagens, de simbologias, avultam a tentativa (em parte gorada) de comando melódico da prosódia de páginas e páginas, a subalternização da função habitual das descrições, a atemporalidade provinda da fusão do tempo presente, passado e até futuro, do tom de interiorização sumular do narrador («Sebastião [é] o amante [...] o amante é o louco e também o mistificadon>)2, do alcance mítico e nacional de certas

(1 ) - Aliás, António Cândido Franco e também autor - com Murmúrios do Mar de Peniche (Lisboa, 1977), Conto

de Inverno (Lisboa, 1983), Na Roménia do Coração (Lisboa, 1984), Matéria Prima (Lisboa, 1986), Arte Régia

(Lisboa, 1987), Corpos Celestes (Porto, 1990) e Estrela Subterrânea (Porto, 1993) - de poesia lírica «afim da proclamação hierático-hermética, onde as figuras cósmico-astrológicas respondem à operatividade alquímica da imaginação desveladora do jogo de correspondências, permutas e metamorfoses do macro e do microcosmos, do céu e da terra, do homem e do universo» (Paulo A. E. Borges, «António Cândido Franco», in Biblos

-Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. Verbo, Vol. H, 681-683).

(2) - António Cândido Franco, Vida de Sebastião Rei de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-América, 1991 p.ll.

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afirmações3, a subject!vização e reflexividade da narrativa4 tal como dela fala

Elisabeth Wesseling em Writing history as a prophet, a quase ausência de diálogos, pois em tão distendida narração as únicas sete ou oito falas que surgem em discurso directo não passam de afirmações com carácter de monólogo (não se sabendo sequer a quem pertence uma delas - todavia, tão importante que dela dependia a sorte da batalha de Álcacer-Quibir: «Mas foi nesse momento que se ouviu a voz que disse: - Ter! Ter! Volta! Volta! A batalha perdeu-se [...] por causa dessa voz [...] Resta-nos saber quem deu aquela voz de «ter» [...] Eu pessoalmente estou convencido que uma voz de comando deste tipo [...] só poderia ter partido do rei»).5

Como é peculiar do modo lírico, o obscuro, o irracional, o pulsional não se representam em clara ou linear discursividade e o nosso narrador parece querer ardentemente libertar a palavra da univocidade e as categorias da narrativa de uma velha arquitectura.

Estamos, pois, perante um caso de hibridismo e até de desconstrução. Não

(3) - («[se] Inês é fonte que alimentou Portugal ao peito e que ainda hoje nos dá de beber o leite genesíaco do nascimento e da criação [...] Sebastião é fonte onde Portugal bebeu, moribundo, o leite da velhice e da resurreição [...] A loucura de Sebastião não é [...] caso patológico pessoal [...] toda a dinastia de Avis, criada nas planícies do sul onde só ardem horizontes infinitos [tinha] nos olhos um Sonho [...] na boca uma sede de Além [...] Da sua paixão [Fernando e Henrique] nascerão continentes inteiros como mais tarde Sebastião com essas mesmas forças fará nascer a Ilha do Encoberto [...] continente muito mais importante que a América [porque] supra-existe como supra-existe uma estrela a quinhentos milhões de anos-luz [...] Falar de Sebastião é falar do fim, mas falar do fim é para mim começar do princípio.» idem,

ibidem, pp. 11, 12,13,14,15).

(4) - «É na derrota que ele é grande [...] Assim com a batalha perdida e com dez mil guitarras atrás [...] Sebastao foi mais um homem interessado em inventar as coisas impossíveis do que em administrar o visível» (idem, ibidem, p. 15).

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podemos negar que o texto é basicamente uma narrativa, mas uma narrativa em que o contar é desvelar e atingir novos sentidos, e sempre no âmbito do discurso centrado na subjectividade do narrador.

As categorias tradicionais da narrativa são portanto aqui recriadas, recombinadas, reorganizadas. A acção não é estanquemente exterior, nem se circunscreve à que decorre da actuação do rei Sebastião, nem nela fundamentalmente reside. É que paralelamente ao evoluir do já de si desconcertante rei-Messias que se torna mito, e que é bufão, e que quer a derrota, existe um narrador que busca sem cansaço um quotidiano vivo, que desfaça a cinza da mediocridade e que seja génese da galvanização de um colectivo que é o povo português.

A preponderância do narrador sobre o narrado e a sua configuração excêntrica exigem um trajecto sinuoso de discurso. A narração, por outro lado, utiliza múltiplas focalizações de personagem, aumentando a sinuosidade discursiva.

As descrições quer de espaços (Ribatejo, Alentejo, Algarve, enfim o Sul e a planície sem fim; ou Sintra, a floresta fecunda e avassaladora; ou o mar, o rio, a água, em que o fluir imparável se cruza com semas de infinito e fertilidade), quer de pessoas (os familiares, já por si seres de excepção; os amigos, de uma originalidade premonitória; o próprio povo, antevendo a maravilha das gerações) pretendem apenas reforçar características e propensões especiais da subjectividade axial - Sebastião ou o próprio narrador -, aproximando-se ainda do papel que no modo lírico costuma caber às notações de espaço e tempo, ou aos passos de

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descrição e narração.6

Do ponto de vista do tempo, podemos afirmar que há um sem número de subversões gradativas, que vão provocar a vigência de uma indefinição cronológica ou de uma certa atemporalidade tão próprias do discurso lírico e mitificante («Tal como eu vejo [...]» «A história de Sebastião não acabou ali [...]» «Morrera com o fim do dia e levantara-se com as estrelas da noite [...]» «Imagino-o [...] encontrei-o» «A primeira vez que vi Sebastião...» «voltei a encontrá-lo...» «Observei-o mais de perto...» «Só o voltei a encontrar mais tarde...»).7

As estratégias para a criação dessa indefinição temporal ou dessa atemporalidade são progressivamente mais fortes e repetidas, resultando de vários procedimentos como a frequente sobreposição de duas temporalidades diegéticas - a que envolve o protagonista e a do narrador, a propósito de um mesmo lugar ou situação ou personagem (tal como em «Chegou a Ceuta [...] Conheço bem Ceuta», ou em «Pedro de Alcáçova Carneiro [tem] senso do oportuno [contrariamente ao que acontece hoje em que a] política é força de fracos e aparente inteligência de outros...»).8

A intriga é múltipla. Há mesmo episódios que se justapõem como os que contam acontecimentos que se passaram com os progenitores e antepassados do jovem rei, com os aios que para ele foram escolhidos e com os amigos, de algum

(6) - Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 4" ed., Coimbra, Almedina, 1982, pp. 550-572.

(7) - A. Cândido Franco, op. cit. pp. 116, 170, 171, 177, 178, 179, 180. (8) - Idem, ibidem, p. 117, 140.

Referências

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