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Para a compreensão da narrativa histórica pós-moderna

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3. História e ficção na narrativa contemporânea

3.2. Para a compreensão da narrativa histórica pós-moderna

Género narrativo de larga projecção cultural, ao mesmo tempo com os benefícios da popularidade e da atenção crítico-compositiva por parte dos seus cultores, o romance, como de resto é consabido, tornou-se a partir dos finais do século XVIII o mais importante dos géneros literários modernos. Particularmente adequado para modelizar em registo ficcional os conflitos, as tensões e o devir do Homem inscritos na História e na Sociedade, o romance revelou desde então enorme capacidade de rejuvenescimento técnico e de renovação temática. Fenómeno multiforme, num tempo em que se não justificam já constrições de Poéticas (porque ele foi alicerçar a sua vitalidade exactamente a partir da época

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em que tais constrições se desagregaram), o romance constituiu e permaneceu género de difícil definição, mas simultaneamente de inigualáveis potencialidades expressivas; e, por isso, nos nossos dias surge de novo privilegiadamente posicionado para o equacionamento literário da crise deste fim-de-século.

Sobejamente entendemos agora que «o romance é uma resposta dada pelo sujeito à sua situação na sociedade [...]. Essa resposta supõe uma operação textual sobre o real que vem a ser assumido por uma narrativa que implica um ou vários narradores».28

Daí que, quando se analisa uma narrativa que, pelas suas dimensões e pela profundidade do universo diegético representado, solicita o nome de romance (distinto de outras narrativas como o conto e a novela), uma das questões fundamentais a estudar seja, antes de mais, a do estatuto da autoria e da enunciação. Esta questão conduz naturalmente à das relações autor/narrador.

Ao instituir um narrador, que é uma entidade ficcional, o autor avança opções que se traduzem em estratégias narrativas várias. A noção de estratégia surge aliada à concepção de comunicação literária como prática de linguagem-em-contexto. Segundo H. Parret, a ideia subjacente à caracterização da rede de estratégias pragmáticas «está ligada a uma certa visão integrada e dialectizante incorporando o homem, o seu mundo e o seu discurso.» W. Iser,

(28) - W. Krysinsky, «L'énonciation et la question du récit», in M. Arrivé e J. C. Cognet (eds.),

Sémiotique enjeu. Paris/Philadelphia, Hades-Benjamins, 1987.

vendo o fenómeno literário como prática interactiva, diz serem as estratégias que «organizam simultaneamente o material do texto e as condições em que ele deve ser comunicado».30

Não esqueçamos, complementarmente, que o narrador é detentor de uma voz, adopta uma situação narrativa, coloca-se em determinado nível narrativo e configura o universo diegético que modaliza.

As estratégias narrativas, accionadas por esse sujeito de enunciação que é o narrador, destinam-se a provocar junto do leitor (e nalguns casos do narratário) certos efeitos de compreensão, de persuasão, etc. Para atingir os objectivos perseguidos, o narrador opta por uma certa organização do tempo, pelo destaque conferido a uma ou outra personagem, por cuidadosa tessitura de uma ou várias perspectivas.

Se introduzirmos, ao lado destas noções, as instruções de U. Eco, que julgamos operativas na análise de qualquer romance, para a actuação de um «leitor

modelo»31, creio termos circunscrito alguns dos aspectos que, sendo importantes

para a compreensão de qualquer obra de carácter narrativo, se revelam especialmente oportunos perante as obras congéneres de António Cândido Franco.

Temos, porém, de levar em conta que, se o romance se tornou género de difícil caracterização sobretudo após a anterior crise de fim-de-século , essa

(30) - W. Iser, The act of reading. A Theory of aesthetic response. Baltimore/London, The Johns Hopkins, Univ. Press, 1980.

(31) - Cf. Umberto Eco, Leitura de Texto Literário. Lector in fabula. Lisboa, Editorial Presença, 1983, pp. 53 segs.

(32) - M. Raimond, La crise du roman. Des lendemains du Naturalisme aux années vingt. Paris, Libraire JoséCorti, 1965.

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dificuldade de análise aumentou na sequência das inovações modernistas e das roturas vanguardistas, e, mais recentemente, das experiências desconstrutivistas e dos hibridismos genológicos promovidos pelo Pós-Modernismo e que têm vindo a tornar mais complexa toda a sua estrutura ou a sua aparente desorganização - quer no âmbito global de modo e género, quer especialmente na sua vertente de inspiração histórica.

Partindo do século XIX,33 Elisabeth Wesseling procura analisar as

inovações verificadas no romance histórico do Pós-Modernismo (que para a autora, mais não é que «a specific collection of contemporary litterary text») e pôr o acento no que chama de «self-reflexive and uchronian variant».

O diálogo de ficção e História parece ir por caminhos inesperados, desde que a literatura pós-moderna simultaneamente «reinstalls historical contexts as significant and even determining, but in so doing, it problematizes the entire notion of historical knowledge»35. A atitude de auto-reflexão vai fazer misturar elementos históricos com

questões epistemológicas que dizem respeito à natureza e inteligibilidade da História; a ficção de auto-reflexividade histórica não só representa o próprio passado, como a problematização do presente na recriação do passado e na projecção do futuro; os romancistas pós-modernos partem do romance histórico tradicional para inventarem visões alternativas da História e para porem em evidência grupos que

(33) - Wesseling, no prefácio do seu marcante livro Writing history as a prophet (p. VU), afirma explicitamente que «this book pays considerable attention to the classical ninetenth century model of the historical novel, as well as to modernist innovations of the genre».

(34) - Idem, ibidem, p. VI.

na historiografia oficial têm sido relegados para situações de insignificância.

Assim, "What would have happened, if...?" é a estratégia necessária para introduzir todo um potencial utópico que torna ucrónica a narrativa ficcional. E evidente que estas opções narrativas têm implicações políticas iniludíveis, sobretudo quando pensarmos que a História é reescrita na perspectiva dos "losers" e expressa anseios emancipalistas. Por outro lado, a atitude descontrutivista mostra como da desagregação real das categorias do género, de verdade, de poder e de saber, poderá ressurgir uma nova articulação de conceitos e realidades.

O Pósmodernismo, que tem como uma das características o ocaso das ideologias (ou o colapso no campo sociopolítico das grandes "narrativas" ideológicas, na acepção de Lyotard), descontrói categorias de "gender, race" e torna-se crítico perante as noções essencialistas e mineralizantes de verdade, de saber e de poder. O Pósmodernismo elimina as grandes teorias em favor da particularidade dos teóricos, explora as convenções linguísticas e literárias (um objectivo ao serviço de uma outra exploração virada para a busca de um futuro de contornos indefinidos), «manipula as categorias de narração e de focalização» , mostra o paradoxal, o caótico, o amorfo de uma realidade numa perspectiva só de aparência antimimética. Torna central a questão da incerteza ontológica; suspende a distinção entre facto e ficção; falsifica a História como estratégia de construção ficcional do passado.

(36) - Cf. E. Wesseling, op. cit., pp. Vl-Vm, e Richard Pearce, "Enter the frame", Triquarterly, 1974, N° 30, pp. 71-82.

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Esta perspectiva pós-moderna insinua-se (em ironia utópica e ucrónica) como não-referencial, ahistórica, apolítica; é auto-reflexiva na engenhosa promoção de uma não inocente «presence of past»; é não-nostálgica e devotada à sua autonomia no problemático diálogo com o passado. A dedicação à conquista da autonomia da expressão verbal é notória: se ela não é a criadora da própria realidade é a informadora de uma consciência.

O presente do passado opõe discursos de contraculturas ao discurso da cultura oficial utilizando várias vozes, subverte o carácter mimético do texto, implanta elementos contestatários, assume posições irónicas, suspende hierarquias e antecipa um imaginativo e utópico futuro. Os artistas pretenderiam ultrapassar o estado de coisas do mundo actual pelo funcionamento exaustivo e inovador das convenções sociais, literárias e linguísticas: no dizer de E. Wesseling, «By evoking and altering historical facts, they ironically recycle historical materials...they envisage possibilities for the future transformation of society from a stand point in the past».39

A poética do Pósmodernismo levanta inequívocas confrontações: uns afirmam que é estranho que, utilizando materiais históricos, a sua produção se torne ahistórica; outros, como Linda Hutcheon, afirmam que ela é «fundamentally contradictory, resolutely historical, and inescapably political».40 Wesseling crê que

se vai ao passado para procurar as não realizadas possibilidades de certas situações históricas e imaginar em seguida histórias alternativas que talvez possam vir a ser

(38) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 39 epassim. (39) - Elisabeth Wesseling, op. cit., p. 14. (40) - Linda Hutcheon, op. cit., p. 3.

verdadeiras num futuro.

Seja como for, alguns Accionistas pós-modernos descobriram um modo de inserir momentos utópicos nesses materiais do passado. Evocando-os e alterando-os ironicamente, eles reciclam aqueles materiais históricos. Encaram assim a possibilidade de a partir do passado gerarem um futuro outro.

Neste contexto - e o contexto é decisivo na instituição social do género enquanto «the set of strategies, expectations and knowledge mutually shared by the participants in a communication situation and which are relevant to that situation» -, o género do romance histórico vive como reportório convencional de motivos e temas sujeito a uma mutabilidade complexa, em que um passado vai sendo alterado por um presente «Once upon a time....» é sinal (e é senha) que activa uma expectativa, tal como os nomes de figuras históricas e de acontecimentos activam conhecimentos que se podem assim integrar discretamente numa ficcionalidade em que escritor e leitor se coloquem num mesmo patamar.